Um Comum subversivo, caprichoso e vulgar

Na ausência do Estado, surgem comunidades construídas a partir da necessidade de compartilhar para sobreviver. No entanto, não as queremos identitárias – mas polifônicas e feitas de diferenças, como o Carnaval

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Por Antonio Lafuente | Tradução: Simone Paz | Imagem: Héctor Carybé, Roda de Samba

O pró-Comum é o resultado de uma adaptação. É fruto de um esforço colaborativo, anônimo, secular e invisível. Os bens comuns são emergentes. Com isto, não quero dizer que eles sejam refratários ao planejamento, mas sim que eles são mais imprevisíveis do que nossos hábitos culturais modernos costumam reconhecer. Somos treinados para descobrir padrões orgânicos, maquínicos e sistêmicos em fenômenos ou acontecimentos que são menos monitoráveis do que gostaríamos de aceitar. Temos dificuldade em reconhecer os bens comuns, mas não por causa das pessoas e de seus imaginários, a dificuldade vem dos modelos que queremos — ou precisamos — impor a elas.

Esquematizações, organogramas ou mapas só dão conta do que é visível. São um alarde do qual nos orgulhamos, mas são, com frequência, cegos para o que nos acontece. Talvez nem sejam injustos, mas costumam ser beatos. Para além de bons ou ruins, são inábeis. Mais do que reais, são interesseiros. São construídos por pessoas que praticam as suas convicções com uma fé cega e sem fundamentos. Negam o valor de tudo o que não possa ser reconhecível pelos seus sensores de atividade. Tudo o que suas máquinas não veem, suas categorias ou fórmulas, são irrelevantes e ficam condenadas à condição de contestável, fútil, colateral, subversivo, frívolo ou vulgar. Mas a vida, ou ao menos parte dela, é infra-ordinária: acontece por baixo da linha d’água daquele admirável navio que chamamos de modernidade

Tudo o que nos ocorre é complexo demais para ser reduzido a um pequeno número de variáveis que podem controlar os modelos que buscam prever, mapear e/ou diagnosticar nosso incômodo, por meio dos desenhos e relatos com os que tentam nos abordar. Sabemos que não funciona. A realidade nos transborda. Talvez não tenhamos palavras para explicar isso, e nem tempo para procurá-las. Independentemente do motivo, sabemos que não nos descrevem: nos prescrevem. Nos obrigam a ser uma coisa diferente daquilo que somos. Nos querem uniformes, mas somos diversos.

Nos reconhecemos como parte de um todo coletivo e histórico. Respiramos o mesmo ar, utilizamos a mesma geometria e compartilhamos o mesmo genoma. Somos todos filhos do ciclo dos nutrientes, da fertilidade do solo, da polinização das plantas, e somos abençoados pela luz do Sol. Tudo aquilo que compartilhamos nos torna parte de uma comunidade, que não queremos que seja identitária, mas polifônica e construída pelas nossas diferenças.

A felicidade coletiva existe no carnaval, quando ninguém tem medo do que é diferente, quando podemos ser múltiplos, intermitentes, esporádicos, imperfeitos, sorrateiros e ambíguos. O Comum (a água, o microbioma, o ângulo em que gira o eixo da Terra, o clima, a paisagem, a cozinha, o folclore, as florestas e as ruas) são patrimônios invisíveis (ou deveríamos dizer “invisibilizados”?). São bens ilusórios e ameaçados. E digo mais: só se tornam existentes quando alguém os reivindica.

Como já sabemos, na sequência, contaremos com muitos motivos para ver a derrubada do Comum. Para esse cenário apocalíptico no qual habitamos e do qual só se fala (por ora) no meio acadêmico, já temos uma palavra: antropoceno. Não é apenas que o clima esteja mudando e, com ele, também, a própria geografia do planeta. É que além disso, estamos contaminando os aquíferos, destruindo a biodiversidade, intoxicando nossos solos, poluindo o ar, ameaçando nossos sistemas imunológicos, esgotando os recursos… A noção de antropoceno fica incompleta se não incluirmos nela as mais obscenas, implacáveis e predadoras práticas do capitalismo neoliberal. Multiplicam-se os negócios que transformaram a intimidade, a privacidade, os cuidados e afetos em recursos industriais, acabando com direitos sociais que acreditávamos conquistados para sempre

O próprio trabalho continua à deriva, em direção a mais devastadora precarização. Todo o universo dos direitos trabalhistas, da solidariedade com os menos favorecidos, da proteção aos desempregados, doentes, idosos ou com necessidades especiais, está indo por água abaixo — e com tal intensidade que há quem prefira falar num “capitalceno” ao descrever o mundo que vem aí. Os corpos estão tão ameaçados quanto o meio ambiente ou os cenários jurídicos e culturais.

Os mais radicais (ou assustados), falam num mundo sem possibilidade de refúgios e num futuro entre ruínas. A concorrência como motor das mudanças nos deixará sem um amanhã habitável. O progresso leva ao cataclismo. Sabemos disso por causa de outras catástrofes pontuais, locais e limitadas. Quando a destruição atinge os equipamentos, as pessoas passam a ser a única infraestrutura confiável. Na ausência de Estado e de mercado, surgem as comunidades que se constroem a partir da necessidade de colaborar para poder sobreviver. A colaboração substitui a concorrência e, assim, os valores comunitários passam a prevalecer sobre os individuais

Os bens comuns nascem, então, de um gesto de resistência e solidariedade. São emergentes, mas, para sobreviver, devem ser bem administrados. E mais: poderíamos dizer que eles não passam de uma outra forma de gestão que cumpre certos requisitos: a principal delas, ser entre todos (e não só para todos), o que torna imprescindível que sejam (quase) horizontais, abertas, distribuídas e recorrentes; e embora nos repitam em todas as línguas do planeta e através de todos os canais à sua disposição que existe apenas uma maneira de gerenciá-los, sabemos que isso não é verdade: às vezes nos dizem que devemos ser eficientes, outras, objetivos; mas nunca compartilharão do código, e nos rotularão de paranoicos, lentos ou frios, além de pouco treinados para entender suas razões.

Os bens de que estamos falando não são divisíveis ​​da comunidade que os sustenta — e que, simultaneamente, é sustentada por eles. Às vezes será algo tão grande quanto a humanidade como um todo e, outras vezes, alcançará apenas grupos locais, mas, em todos os casos, estamos sempre nos referindo a coletivos e conhecimentos necessariamente estabelecidos e enraizados. Estabelecidos porque falam da experiência, o que é o mesmo que dizer que eles não impõem o experimental acima do que vem da experiência. E são conhecimentos enraizados porque são parte de uma decantação secular e coletiva, funcionam como o músculo ou sensorium de uma comunidade; também são imagináveis ​​como um patrimônio vivo, um tipo de inteligência coletiva que é transmitida entre gerações, mais por imitação do que por instrução, ao envolver um conhecimento implícito e não-codificado

Nossa herança está terrivelmente ameaçada. Cada vez será mais evidente o drama rumo ao qual caminhamos, seja na forma de uma crise climática, seja chamada de epidemia de fragilidade. Quase não há chances de que não proliferem comunidades de afetados mundo afora, reivindicando um bem que lhes foi expropriado, colocando em risco suas subsistências.

Cada comunidade irá adotar sua própria estratégia de luta, mas todas terão de incluir entre seus membros pessoas capazes de compreender o que acontece. Só dominar a linguagem dos direitos e das práticas de resistência não será suficiente. Sua capacidade de interlocução, sua visibilidade no espaço público, estará relacionada diretamente à habilidade de construir questionamentos, produzir outros dados, arquitetar novos mecanismos de legitimação ou erguer pequenas infraestruturas que sirvam de suporte para os desejos comunitários.

Reivindicar os bens comuns, sustentar o patrimônio, preservar a herança que ganhamos, requer a presença ativa de muitos engenheiros e pesquisadores. Desse modo, nos encaminharemos a um mundo que entregará o passado aos engenheiros, e que terá de designar o futuro para os humanistas — isso, se tiver chegado a hora que irão nos proibir de planos que não sejam realmente inclusivos

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