Sonhos e lutas por uma internet livre e soberana

Brasil já foi referência mundial em cultura digital. O que aconteceu com este legado? Em meio ao domínio das big techs, um movimento resiste em torno da democratização da tecnologia e do jornalismo: a Rede Sacix, que realizou mês passado seu primeiro encontro

Foto: Getty Images
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Brasil foi pioneiro nas políticas como os Pontos de Cultura e o Marco Civil da Internet, mas, ao longo do tempo, a efervescência em torno delas perdeu vigor. Há a necessidade de reinvenção da cultura digital brasileira. De um projeto de Soberania Digital que enfrente o poder das big techs. E de fomentar as mídias independentes, tão cruciais em tempos de crise do jornalismo e captura pelas corporações de internet. Ha resistência para cavar brechas para isso.

Entre os dias 21 e 23 de maio, o Centro MariAntonia da USP, no coração de São Paulo, se transformou em um território de invenção e resistência. Ali, ativistas, artistas, pesquisadores e comunicadores de todo o país se colocaram em sintonia para pensar roteiros emancipatórios no campo da cultura digital e das mídias livres no Brasil. Este foi o I Encontro Nacional da Rede Sacix de Cultura Digital e Mídia Livre, um espaço de diálogo e construção coletiva para reacender a inovação e a esperança em um futuro digital soberano e democrático.

Da memória à reinvenção: o Brasil que já foi pioneiro

A rede da cultura digital nunca deixou de existir. No entanto, o evento, que acontece no âmbito do programa Cultura Viva do Ministério da Cultura, sob a coordenação do Coletivo Digital e do Outras Palavras, permitiu ativar essa rede no imenso valor do encontro. Foi muito mais do que uma série de debates e oficinas: foi um reencontro de histórias e a germinação de futuros possíveis.

Em vários momentos, foi lembrado que, não muito tempo atrás, o Brasil já foi considerado uma referência mundial no pensamento e ativismo na internet, e a rede de Pontos de Cultura teve um papel central nisso. Pode-se citar a elaboração e aprovação do Marco Civil da Internet, conquista e construção de milhares de ativistas. Mas, sob a batuta de Gilberto Gil no MinC, os Pontos de Cultura criaram diversas inovações nas redes que só muito depois as grandes corporações foram se apropriar: redes sociais alternativas, plataformas colaborativas e sistemas de compartilhamento eram criados de forma autônoma. Na mesa “Soberania, regulação de plataformas e a cultura viva”, o professor e ativista Uirá Porã e o ex-coordenador do Cultura Viva Célio Turino recordaram detalhes dessas realizações, em momentos muito emocionantes. Helena Martins e o deputado Orlando Silva mostraram caminhos para dar corpo a essa luta política hoje.

É preciso afastar a ideia de que a esquerda não entende de internet e redes sociais, aponta Uirá: “o que aconteceu foi um desmonte, mas a capacidade de criar e resistir segue viva”.

Essa mesma energia circulou na mesa “A quem pertence a soberania?”, que se propôs a discutir alternativas concretas contra a entrega de nossos dados e inteligência às big techs. O professor Carlos Afonso, veterano do ativismo pró-internet livre no Brasil, o coordenador do Conselho Gestor da Internet, Rodolfo Avelino e a professora Flavia Lefèvre traçaram o mapa do desafio. O sociólogo Sergio Amadeu concentrou-se em mostrar o que são os data centers atuais, e como eles são predatórios ambiental, social e economicamente. O diálogo mostrou uma bandeira crucial para o campo progressista: desenvolver infraestruturas soberanas e soluções de plataformas livres podem apresentar melhores resultados que as ofertas das big techs. A pauta convergiu para a elaboração de uma política pública de construção de data centers federados sob o comando das comunidades culturais e acadêmicas, para garantir a soberania e sair da dependência das big techs.

Jornalismo em crise, democracia em risco

Se a internet está sequestrada por meia dúzia de gigantes sediados nos EUA, o jornalismo independente é uma das vítimas mais visíveis desse cenário. Na mesa sobre “Mídias livres e o resgate da internet como espaço livre e democrático”, o roteirista Leandro Saraiva, o comunicador Laurindo Leal Filho, a jornalista e presidente da Fenaj Samira de Castro e o diretor de Outras Palavras Antonio Martins se propuseram a pensar como dar condições ao jornalismo, elemento indispensável da democracia, no mundo atual.

“Se o jornalismo é essencial à democracia, mas tornou-se descartável para o capitalismo contemporâneo, então é preciso que a sociedade mobilize-se para financiá-lo. O Estado precisa garantir que parte da riqueza social seja canalizada para produzir as informações e interpretações capazes de orientar as sociedades em suas escolhas – ou seja, permitindo-lhes retomar a democracia em suas mãos”, apontou Martins, um dos coordenadores da Rede Sacix.

Há vários caminhos para o financiamento público do jornalismo – por exemplo, recolocando as redes públicas de rádio e TV a serviço da comunicação popular, distribuição justa dos recursos de publicidade de interesse público ou de editais específicos para isso –, construir mídias sociais alternativas que distribuam conteúdo jornalístico sem passar pelas big techs e até parcerias inspiradas na experiência do Fundo Setorial do Audiovisual. Os pontos de cultura têm um papel importante a exercer nesse contexto.

Rodas, oficinas e GT

Numa roda de conversa, Fabrício Solagna explicou como funcionam os principais modelos de inteligência artificial. As IAs se apoderam dos saberes e competências de milhões de pessoas ao redor do mundo, apontou, sem que essa autoria seja reconhecida. No caso da produção cultural, isso é especialmente grave, pois rouba espaço justamente dos artistas e produtores culturais, aqueles que vivem de sua criatividade. Pensando nisso, Wilken Sanches, membro do Coletivo Digital e um dos coordenadores da Rede Sacix, puxou a discussão sobre os direitos autorais, cuja proteção nunca foi um ponto forte do arcabouço legal brasileiro. Hoje, parece ainda mais distante resolver a equação que garante a livre circulação dos bens culturais para todos e, ao mesmo tempo, assegura a remuneração adequada para o trabalho criativo de artistas, técnicos e demais profissionais envolvidos na cadeia produtiva da cultura.

No caso das culturas de matriz oral, que sempre foram muito copiadas e muito pouco reconhecidas dentro do mercado cultural global, não seria o caso de identificar e documentar os traços fundamentais dessas culturas, para que seja possível identificar de onde vêm os elementos usados nas criações contemporâneas? É o que sugeriu o Mestre Wertenberg, inspirado, também, na experiência de pontões de cultura de Matriz Africana e de Matriz Amazônica. O desafio de não deixar que os autênticos criadores e criadoras dessas culturas sejam protegidos e não sejam pura e simplesmente rapinados pelas big techs está colocado e precisa ser encarado por nós, como mostrou o evento.

A roda de conversas sobre Soberania Digital foi a oportunidade de partilhar experiências de redes que estão em pleno processo de (re)criação. A própria Rede Sacix foi apresentada nessa roda, como uma plataforma que disponibilizará algumas funcionalidades extremamente úteis para a articulação e mesmo para a vida cotidiana dos pontos de cultura, todas elas baseadas em software livres: uma instância Jitsi, que permite realizar reuniões e transmissões para dezenas de pessoas; uma plataforma de cursos de educação à distância (EAD); uma página que centraliza diversos conteúdos disponibilizados gratuitamente. Em seguida, Eduardo Lima apresentou a experiência do outro Pontão de Cultura Digital, das Produtoras Colaborativas, com a tarefa de resgate de diversas ferramentas que foram sendo criadas ao longo dos anos e que hoje se concentram em plataformas como o Rios, o Estúdio Livre, a E-Teia e a central de cursos Varal. Uma ideia sugerida pelo Zezito, de Aracaju, foi a de que procurássemos ativar a interação econômica entre os Pontos de Cultura. Por exemplo, em vez de pagar para usar as funcionalidades de e-Drives pagos, por que não usar o Rios e contribuir com as Produtoras Colaborativas? Em vez de pagar uma plataforma de transmissão, por que não usar o Jitsi da Rede Sacix e contribuir com algo também? Isso pode ser ampliado para diversos serviços e produtos que podem ser colocados em circulação entre os pontos de cultura, com base no conceito da economia solidária e circular.

Essas questões também foram abordadas em oficinas sobre o Software Livre e o Fediverso, coordenada por Diego Rojas e Thiago Skarnio, assim como o uso destas tecnologias na luta cotidiana, também liderada pelo Diego.

Já o Grupo de Trabalho sobre Financiamento Público do Jornalismo, coordenado pelo professor Maurício Ayer, outro dos coordenadores da Rede Sacix, reuniu cerca de 20 pessoas, trazendo a experiência e as vozes das cinco regiões do país, de estados como Rio Grande do Sul e Bahia, Rondônia e Rio de Janeiro, Santa Catarina e Amazonas, Paraíba e São Paulo, e o Distrito Federal. Muitos temas foram debatidos, abrindo de imediato caminhos para diálogos que apenas começam a ser construídos. Mas já há alguns consensos. Por exemplo, o entendimento de que o jornalismo é uma atividade essencial para a democracia, e que ambos se encontram atualmente em crise. As big techs capturaram os principais meios de financiamento do jornalismo, inclusive o corporativo – e o submeteram. As fake news são um sintoma da destruição do espaço público empreendido pela hipersegmentação, vigilância e controle privado da informação no mundo, hoje. Neste ambiente, a extrema-direita nada de braçada. Ninguém tem saudade dos velhos tempos. A proliferação de vozes e pontos de vista na sociedade é bem-vinda, só deixa de ser saudável quando colocada a serviço dos donos dos meios. De todo modo, o fato de que cada um e cada uma possa falar não substitui o papel do jornalismo profissional, exercido com tempo, técnica e ética adequados. O jornalismo não pode estar submetido a interesses privados nem à precariedade do financiamento esporádico ou intermitente.

A ideia de encontrar meios para o financiamento público do jornalismo ganha força. Com a mesma importância, é preciso lutar para mudar o ambiente da internet, com a regulação das big techs, e o fortalecimento o Fediverso e as redes geridas livremente pelas comunidades usuárias. A informação deve circular em ambientes sem donos privados, em redes que sejam Comuns e que permitam formar uma autêntica ágora digital do nosso tempo. A solução, como sugeriu o debate, pode ser buscada em vários propostas: o direcionamento obrigatório por lei de parte da verba publicitária pública para veículos locais e independentes; a criação de um fundo para o financiamento do jornalismo (inspirado no Fundo Setorial do Audiovisual); a retomada urgente dos Pontos de Mídia Livre, na forma de editais e prêmios.

Fazer crescer o bolo da festa”

A roda de conversa sobre a “Soberania nos Territórios” contou com duas referências do Movimento Cultura Viva – Célio Turino e TC Silva – com os Pontos de Cultura. Os dois construíram uma teia de emoção e referências e projetaram o que poderia ser um novo ponto de encontro, um movimento que pode continuar vivo se construir sua afirmação num mundo mais do nosso jeito, a partir dos nossos territórios, avivando a interação permanente com nossas comunidades e o encantamento aconteceu. As várias pontas de cada uma das atividades do Encontro, as ricas percepções dos participantes foram se combinando e várias trilhas foram se iluminando.

E suscitou algumas reflexões: será que a saída para reacender a pira da esperança política não está em nos recolocar nesse lugar de potência, criatividade e invenção, construindo inovações impressionantes para enfrentar adversários gigantes sem se importar com isso? Como sair da defensiva para mostrar um Brasil potente, capaz de pensar e criar um futuro soberano, em que os jovens encontrem espaço para sonhar e realizar, crescer e fazer crescer o bolo dessa festa?

“A magia aconteceu e o encantamento se esparramou”, disse Beá Tibiriçá, coordenadora da Rede Sacix — e não por acaso: em tempos de vigilância digital, inteligência artificial predatória e monopólio das big techs, reunir quem ainda acredita na tecnologia como ferramenta de emancipação já é, por si só, um ato de coragem. “Nós enxergamos longe e sabemos onde queremos chegar”, continua ela. “O Encontro mostrou isso – somos muitos, temos força, temos vontade e vamos fazer um mundo mais do nosso jeito.”

O próximo passo? Um grande encontro em Brasília, em julho, para avançar na construção de um Plano Nacional de Soberania Digital.

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