Sobre Olimpíadas e hegemonia ocidental

Desde o Barão de Coubertin, o “espírito olímpico” foi instrumentalizado para aplacar revoltas, proteger potências imperiais e abrir mercados. História ajuda a compreender o veto à Rússia nos Jogos de Pequim e a urgência do devir multipolar

Os Jogos Olímpicos de 1904 teve uma “curiosa” exibição paralela: os Dias Antropológicos, que reunia índios, muçulmanos, pigmeus e outros povos para competirem em “esportes de branco”, como atrações de circo.
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Por Neilton Ferreira Júnior, no blog Esporte, Cultura e Luta de Classe: Interfaces

Toda quebra de ciclo olímpico se apresenta como sintoma da crise social, política e econômica do seu tempo. Mas nem por isso o movimento olímpico deixou se estabelecer no mundo de modo imperativo, independentemente das crises, guerras, pestes e genocídios coloniais em curso. Essa soberania se constitui ainda no início do século XX, contando com um poderoso suporte político e financeiro, além da infraestrutura esportiva herdada das expansões colonialistas britânica, alemã, francesa e estadunidense pelo Caribe, África e Ásia. Sim, a hegemonia planetária do esporte moderno não se explica apenas à luz da Revolução Industrial. Trata-se de um fenômeno que se desenvolveu na esteira do colonialismo, contribuindo para o desaparecimento ou marginalização de práticas corporais preexistentes.[1]

 A afirmação e estabelecimento do Movimento Olímpico não só esteve conectada, como foi convenientemente funcional aos empreendimentos neocoloniais do século XX. Sua legitimação política e cultural dependia em grande medida do apoio político e financeiro de colonialistas “notórios” como Paul Tulane e Rei Leopoldo II. E uma vez submetido à tutela das potências imperiais, o movimento liderado pelo Barão Pierre de Coubertin se notabilizaria também pela indiferença a situação colonial dos povos não-brancos, concebendo essa população como almas “carentes de civilização esportiva”.[2]

Participantes da Maratona Olímpica de 1904, Len Tau (à esquerda) e Jan Mashiani da tribo Tswana da África do Sul. Jessie Tarbox Beals. Image © historypin.org

Colonization Sportive é o termo que dá título a um artigo de Coubertin, publicado em 1931.[3] Documento que traz recomendações especiais às colônias europeias no continente africano, considerando a necessidade de se enfatizar nesses territórios as modalidades modernas individuais, à exceção a esgrima! Embora Coubertin enfatizasse que “as práticas esportivas não poderiam inspirar representações de vitória de uma raça dominada sobre a raça dominante”, ele buscava por meio de seu receituário esportivo aplacar o medo das administrações coloniais acerca da forma como os colonizados poderiam se valer do esporte coletivo para dar corpo a aspirações anticoloniais.[3]

Indiferente à subalternização dos colonizados, Coubertin seguia argumentando que, se o esporte é reconhecidamente uma fonte de acirramento de conflitos, também poderia servir à pacificação dos mesmos. Paz e colonialismo, na concepção do Barão, poderiam conviver prosperamente, de modo que a própria noção de emancipação que ele empregava se referia unicamente à possibilidade dos colonizados aderirem à disciplina esportiva moderna e participar de olimpíadas, entendendo ser esta agenda a última palavra em termos de cultura física. A passagem a seguir mostra quão alinhado Coubertin e seu movimento olímpico estavam ao colonialismo, sobretudo no que se referia às políticas imperiais de aculturação:

“As corridas, todas as variedades de salto, de subida, de lançamento, os esportes náuticos e os exercícios de ginástica com aparelhos compõem, inclusive se descartando a esgrima, um programa suficientemente amplo para dar suporte a uma abundante atividade desportiva colonial. Por outro lado, existem certas formas desportivas autóctones localizadas em uma região específica, e às vezes em um distrito, que devem ser estimuladas, mas que nunca passarão de diversão e lazer. Se quisermos estender aos autóctones dos países colonizados o que atrevidamente chamamos de benefícios da ‘civilização desportiva’, é necessário fazê-los entrar no vasto sistema desportivo de regulamentos codificados e de comparação de resultados que constitui o fundamento obrigatório dessa civilização”.[2]

No alto de sua autoridade planetária, o Movimento Olímpico dava forma ao próprio conceito de “Paz” e “Consenso”, concebendo a violência colonial (amplamente denunciada em conferências mundiais, à exemplo da Conferência de Baku, em 1922) como parte de um “processo civilizador” que encontrava no esporte moderno e no Olimpismo aliados estratégicos. O que se passava nas colônias não entrava no circuito de reivindicações de trégua e paz do Comitê Olímpico Internacional (COI). Como podemos facilmente observar, o papel diplomático do Movimento sempre esteve mais sensível às tensões e conflitos da Europa, ao mesmo tempo em que se dirigia às colônias como instrumento de apassivamento preventivo contra possíveis (e justificáveis!) revoltas anticoloniais. Nesse sentido, Coubertin tentava exortar seus interlocutores (colonos em grande medida) a não abrirem mão da disciplina esportiva colonial, sob pena de os próprios colonizados acabarem se apropriando da cultura compulsoriamente imposta, submetendo-a a seus interesses emancipatórios. Conforme enfatizou:

“Em suas colônias na África, muito bem equipadas, os alemães não temeram introduzir o esporte entre os autóctones. Na Índia, os ingleses, sem alentar muito o movimento, também não se opuseram. A Itália aceitava a ideia com benevolência sem ter tido tempo de pensar muito. A França se opôs […] Diante desse passo decisivo, ainda recuam mais de uma administração metropolitana. Terão, portanto, que se decidir… ou os autóctones chegarão a se organizar sozinhos; e depois de tudo, talvez não seja tão ruim para eles do que para seus dirigentes”.[2]

A orientação neocolonial do movimento olímpico seguiria seu curso no Pós-guerra, dedicando-se agora à contenção da influência soviética nos processos de descolonização da África. No calor da Guerra Fria, a autodeterminação dos povos africanos representava um risco às potências imperialistas ocidentais, pois implicava, dentre outras coisas, a possibilidade de reorganização da geopolítica sobre bases mais horizontais. Nesse contexto, o COI se apresentava não apenas como tecnologia de mediação diplomática, mas como infraestrutura auxiliar de afirmação dos interesses ocidentais. Não por acaso, os Comitês Olímpicos Nacionais Africanos permaneceram muito tempo sob tutela das Federações britânica e francesa – arranjo que semelhantemente se estabelecia em outros aspectos da descolonização.[4]

No plano das práticas esportivas, a orientação ao apassivamento de conflitos no Terceiro Mundo ocupava uma centralidade conveniente à manutenção da hegemonia ocidental, a despeito da inevitabilidade e espírito de urgência dos processos de libertação nacional. Destacam-se nesse período de 1950 a 1970 o papel do imperialismo cultural estadunidense, britânico e francês no incentivo às práticas do beisebol, críquete e do futebol, lidos sempre numa chave de apaziguamento de conflitos, mas cujo sucesso pode ser relativizado à luz das resistências que emergiam no interior das próprias modalidades, confirmando a “profecia” de Coubertin.[1] A retórica do esporte como instrumento de “promoção da paz” se atualizava nesse contexto, e não demoraria a ganhar o apreço da Organização das Nações Unidas (ONU), que em associação com o COI, elevou o falso discurso ao mais alto nível de legitimidade, reabilitando com isso o princípio colonialista da vocação civilizatória do modelo esportivo moderno.[4]

Com riqueza de detalhes, a tese de Marcelo Paula de Melo, publicada em 2011, mostra como esse processo ganhou força a partir dos anos 1970 e se afirmou no século XXI, quando os organismos internacionais acima mencionados, e agora submetidos à razão neoliberal, passaram a fazer do esporte moderno um eficiente e recalibrado instrumento de hegemonia burguesa, que se volta para o Sul Global não só se valendo da retórica da paz, mas da ideologia do desenvolvimento do subdesenvolvido. Nas palavras do autor, o apelo a essas categorias, às quais também estão associadas ideias de “solidariedade”, “cooperação”, dentre outras, caracteriza-se por um “engajamento político desvinculado a qualquer processo de enfrentamento da ordem do capital”, gerando “processos de apassivamento das lutas populares num contexto de agudização das contradições decorrentes da atual lógica de acumulação capitalista”.[5]

Embora candente, a relação entre movimento olímpico, neocolonialismo e hegemonia ocidental ainda é muito ignorada no Brasil. Esse tema precisa ganhar corpo por aqui, pois dele depende a compreensão crítica dos motivos do esporte moderno ser tão tolerante ao racismo e à xenofobia. O recente movimento em bloco das entidades esportivas internacionais, banindo ou impondo sanções à comunidade esportiva russa espelha não só uma indignação e juízo moral seletivos. Trata-se de uma clara demonstração do alinhamento histórico desses aparelhos à política de hegemonia ocidental. Razão pela qual se argumenta que o devir multipolar do mundo não pode ser representado apenas com base em relações comerciais. O campo de disputa é muito mais amplo.


[1] Gems, Gerald. Sport, Colonialism, and United States Imperialism. Journal of Sport History, Spring 2006, v. 33, n. 1, 2006, pp. 3-25.

[2] Coubertin, Pierre. Pierre de Coubertin: Olimpismo – seleção de textos. Porto Alegre: ediPUCRS, 2015, p. 695-696.

[3] “Colonisation sportive”, em: Bulletin du Bureau International de Pédagogie Sportive, n. 5, Lausanne, 1931, pp. 12-14.

[4] Charitas, Pascal. Imperialisms in the Olympics of the Colonization in the Postcolonization: Africa into the International Olympic Committee, 1910–1965. The International Journal of the History of Sport, v. 32, n. 7, pp. 909-922, 2015.

[5] Melo, Marcelo Paula. Esporte e dominação burguesa no século XXI: a agenda dos Organismos Internacionais e sua incidência nas políticas de esportes no Brasil de hoje. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Serviço Social Programa de Pós-Graduação Doutorado em Serviço Social Esporte. 344 p.

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