Em busca de uma interação entre Marx e Freud

Seria possível aproximar marxismo e psicanálise, teorias críticas marcadas por desconfianças mútuas? O apetite insaciável do capital se revelaria tanto em trabalho social quanto psíquico? Mais-valor e mais-gozo seriam faces do mesmo sistema?

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Por Eleutério F. S. Prado, em A Terra é Redonda

Sim, é preciso assentir que o saber sociológico em geral não pode prescindir do saber sobre as disposições psíquicas dos indivíduos socialmente situados – e vice-versa, deve-se acrescentar enfaticamente. E isso vale também para as teorias críticas do capitalismo e do ser humano submetido às condições de vida próprias desse modo de produção. Entretanto, as duas principais teorias dessa espécie, elaboradas na época moderna, respectivamente, por Karl Marx e Sigmund Freud, a crítica da economia política e a psicanálise, nunca se reconciliaram de um modo satisfatório.

Dizendo de outro modo, conforme Samo Tomšič, mesmo se a crítica da economia política exige uma crítica da economia libidinal, “a interação entre marxismo e psicanálise sempre foi marcada pela desconfiança mútua, pela crítica e pelo distanciamento” (2022a). Ora, foi com a finalidade de superar essa situação que ele escreveu o marcante livro O inconsciente capitalista – Marx e Lacan (2015), assim como, em complemento, diversos outros textos publicados em sequência. Aqui se faz uma crítica, ou melhor, uma apropriação crítica do artigo Labor/trabalho (2022b) em que esse autor procura aproximar a noção de trabalho mental que aparece em A interpretação dos sonhos com a categoria de trabalho social que permeia O capital como um todo.

Assim como Marx estabeleceu uma conexão sociológica entre trabalho abstrato e mais-valor na produção mercantil generalizada para explicar a dinâmica da acumulação de capital, Freud teria apresentado, segundo ele, uma ligação psicológica entre trabalho mental e gozo (ainda sob o nome de prazer) para explicar a dinâmica psíquica dos indivíduos na vida social. Assim, nessa perspectiva, Tomšič afirma no artigo em discussão que “o processo mental pode e deve ser visto como trabalho produtivo”. Segundo ele, o pai da psicanálise teria igualado “pensamento e trabalho”, formulando desse modo uma “teoria do trabalho do inconsciente”.

Ora, essa aproximação depende de uma suposição polêmica: Freud, segundo ele, ao entrar por esse caminho, teria “tropeçado na problemática do trabalho abstrato”. Será? Aqui se argumentará que essa conjectura é insustentável. Porém, mesmo se essa homologia de fundo não pode ser considerada verdadeira, procura-se mostrar nessa nota que grande parte de sua tese central parece bem interessante.

De qualquer modo, o argumento disposto no texto em estudo afirma que, em A interpretação dos sonhos, a realização dos desejos e a busca do prazer aparecem como resultados inerentes de uma atividade mental que Freud chama de trabalho: “o trabalho do inconsciente” – diz ele – “cria as condições de possibilidade para a satisfação dos desejos inconscientes”. Mais do que isso: “o trabalho [do inconsciente] no sonho se desenvolve num campo conflituoso; ele faz a mediação entre os desejos que aí se originam e o mecanismo de censura e repressão que atribula o caminho da realização da satisfação”. Segundo Freud, finalmente, o trabalho que faz o sonho (uma manifestação do inconsciente) não consiste em pensar, calcular ou julgar; ele apenas manipula o material significante existente no pensamento e lhe dá uma nova forma que visa, em última análise, burlar a censura da instância que Freud chamava de superego.

Disso tudo, Tomšič tira uma conclusão fundamental para o seu esforço de tentar aproximar Freud de Marx. É preciso citá-la, anotando a sua importância crucial no argumento: “a ausência de pensamento, cálculo e julgamento torna o mecanismo inconsciente qualitativamente distinto do pensamento consciente; é devido a essas “ausências” que a atividade inconsciente pode ser descrita como trabalho abstrato”. Dito de outro modo, no consciente, o trabalho da mente seria concreto porque aí ele sempre produz pensamentos determinados, mas no inconsciente o trabalho seria abstrato já que teria a natureza do trabalho inespecífico.

Mesmo se ainda se continuará seguindo a sua argumentação, é preciso lembrar aqui que o trabalho abstrato em Marx não consiste em “trabalho em geral”. Pois, provém de uma abstração real que ocorre objetivamente no sistema econômico e que põe objetivamente o trabalho como medida do valor no mundo das mercadorias. A transformação do trabalho concreto em trabalho abstrato pressupõe, sim, o trabalho como gênero, isto é, como força humana ou como gasto de energia fisiológica, mas não consiste e não pode consistir numa mera generalização.

Pois, abstração real de que fala Marx consiste numa redução: trata-se do pôr de uma medida objetiva, algo que os agentes econômicos fazem ao participarem da produção e da circulação mercantil, sem ter a consciência de que o fazem. Não se trata, pois, meramente, nem de uma abstração subjetiva hipostasiada nem de uma abstração conceitual e científica.[i] Em consequência, o trabalho abstrato da mente que figura no texto de Tomšič é apenas um pressuposto imaginário. Logo, é preciso dizer que o trabalho que produz o sonho, mesmo se não tem a natureza do pensamento consciente, é também sempre concreto e somente concreto.

Ora, esse autor acha que não, acha que o trabalho do inconsciente é abstrato, e, por isso, insiste na apresentação e na justificação de tal suposta homologia. Eis que o trabalho do inconsciente – afirma então – dá-se sempre num contexto atravessado por contradições e, por isso mesmo, manifesta-se por meio conflitos psíquicos. De um lado, procura criar as condições para que sobrevenha um certo grau de satisfação; para isso, busca chegar a um compromisso entre a liberação do que se encontra reprimido no inconsciente e a censura/coerção do superego. Dito de outro, como as contradições e os conflitos lhe tolhem e insistem em constrangê-lo, o trabalho do inconsciente tende a se manifestar na forma da compulsão.

O que origina a demanda de satisfação foi chamada por Freud, primeiro, de desejo inconsciente e, depois, de pulsão. Em virtude do contexto difícil em que ocorre, o trabalho do inconsciente, ao invés de satisfação, pode gerar frustração e mesmo, eventualmente, desespero. Nesse caso, aparece o fenômeno de uma “satisfação” buscada que não será sentida como satisfação, mas como insatisfação, de modo negativo. Ora, a psique assim pensada permite fazer um contraponto entre o modo de funcionamento da mente e o modo de funcionamento do capitalismo.

É assim que Tomšič dá um passo crucial na apresentação de uma suposta homologia entre os trabalhos social e psíquico: “Essa inversão da satisfação prazerosa, essa experiência perturbadora, divisão ou alienação da mente consciente, sugere que há algo involuntário, compulsivo e eventualmente ameaçador na satisfação prazerosa alimentada pelo trabalho do aparelho mental. Há, pois, uma ligação íntima entre trabalho inconsciente e compulsão. E isso aproxima a conceituação psicanalítica do trabalho mental à crítica de Marx à economia política. Aí o trabalho é igualmente entendido como uma atividade social compulsiva, na qual ocorre a produção de valor e a exploração, vinculadas entre si. No capitalismo, o trabalho traz consigo a presença contínua da compulsão na vida dos indivíduos. Pode-se argumentar, assim, que a exposição de Freud do caráter compulsivo do trabalho inconsciente, à sua maneira, expõe as consequências mentais dessa compulsão capitalista universal”.

Nesse momento parece adequado apresentar uma questão: Freud, como às vezes se julga, pensa as características da psique de modo transistórico, enquanto Marx toma o capitalismo como um modo de produção delimitado historicamente. Ora, Tomšič não esclarece esse ponto no trecho selecionado. Antes que uma resposta possa ser encontrada, é preciso continuar expondo a teoria do primeiro autor sobre o modo de funcionamento da mente humana.

A tradição filosófica pensa o ser humano como um ser racional; ela admite, assim, que a atividade mental do ser que fala está centrada na atividade de pensar logicamente. Entretanto, isso – justamente isso – foi contestado por Freud. Para ele, a atividade mental tem duplo objetivo: por um lado, busca resultados úteis usando a razão, mas, por outro, procura obter prazer (gozo). Esses objetivos se encontram, no entanto, articulados, o uso da razão não é um fim em si mesmo, mas consiste num caminho mais longo para obter satisfação.

“O reconhecimento do duplo caráter das atividades mentais – buscar a utilidade (ações significativas) e lutar por ganhos de prazer – é de fato crucial. Ambas as atividades estão inseparavelmente entrelaçadas, ou melhor, são dois lados de um mesmo processo, pelo que o ponto principal de Freud é que a utilidade acaba apenas um desvio para a produção do prazer”.

O ponto ressaltado por Tomšič é que Freud, ao pensar desse modo, torceu a tradição filosófica apresentando o ser humano como um ser vivo que é movido por um trabalho mental fortemente compulsivo e involuntário. A razão, pois, não domina na sua própria casa, mas está subordinada às pulsões que buscam satisfação. A contradição entre a pulsão e a repressão – essa última advém do que Freud chamou de princípio da realidade –, aparece aqui acentuada porque a própria pulsão é tomada como uma “força constante” que demanda indefinidamente satisfação, mais e mais satisfação. Trata-se, pois, de uma busca de satisfação que nunca tem fim e que acompanha o ser humano por toda a sua vida.

É evidente nesse momento que a exposição de Tomšič caminha no sentido de mostrar que existe uma homologia entre a compulsão do capital por mais-trabalho na esfera social e uma demanda pulsional por mais-trabalho na esfera da psique.[ii] Ambas essas “forças” parecem para ele, nesse sentido, como igualmente insaciáveis. Para dar mais um passo nessa direção, esse autor lembra então de um argumento segundo o qual a teoria do aparelho mental de Freud apresenta a problemática de um parasitismo do infinito sobre o finito.

“O infinito é uma característica que perturba por dentro a finitude, impedindo que ela jamais seja verdadeiramente finita, fazendo com que ela vá já sempre além de si mesma. O infinito poderia ser descrito como uma forma de finitude que se supera a si mesma, que se desestabiliza ou se desarticula. Isso vale para a relação entre a consciência como figura da finitude e o inconsciente como aquilo que perturba e descentraliza a consciência por dentro. No cenário freudiano, a força constante da pulsão se comporta da mesma maneira em relação ao corpo, inquietando-o perpetuamente por dentro. O trabalho do inconsciente é uma expressão dessa perturbação, até mesmo sua manifestação”.

Ora, a premissa que sustenta essa argumentação é aquela que diz que o trabalho mental é trabalho abstrato tal como o trabalho que cria valor no capitalismo. Entretanto, como já se argumentou anteriormente, essa premissa é falsa. Assim, o parasitismo do infinito sobre o finito não se configura como idêntico nos dois casos. No primeiro, a infinitude da busca de satisfação é qualitativa, ao passo que ela é quantitativa no segundo caso. A psique está sempre – parece bem certo – em busca de novas formas de satisfação; ela cria, assim, novos desejos e novos objetivos, mesmo se às vezes tende a se manter numa compulsão repetitiva. E isso faz toda diferença; pois, assim, o ser humano se põe como um ser insatisfeito. Já o capital se alimenta de mais-valor, produto da redução do trabalho concreto ao trabalho abstrato na forma de quantidades de trabalho socialmente necessários para produzir as várias mercadorias. O capital, como diz Marx, se configura nessa perspectiva como insaciável.

Nos termos de Hegel, num caso tem-se um bom infinito pelo menos como possibilidade; no segundo caso, tem-se necessariamente um mau infinito. O círculo virtuoso que cria internamente as suas próprias condições de evolução e de eventual sucesso difere do círculo vicioso que se baseia na subordinação e exploração do trabalho e da natureza. A compulsão repetitiva que afeta e vicia o círculo virtuoso do processo de autorrealização do ser humano não pode ser considerada como a situação normal da psique humana – mas vem a ser uma situação anormal que requer o esforço psicanalítico.

Posteriormente, Jacques Lacan chamou especificamente de gozo aquilo que Freud ainda chamava de prazer. Enquanto o primeiro passou a ser locado propriamente no inconsciente, o segundo resumiu-se à satisfação obtida de modo consciente. Tomšič informa sobre isso que “Freud já concebia o gozo [Lust, em alemão] como um produto excedente essencial do trabalho mental” e que Lacan partiu daí para reforçar a homologia em questão. Para tanto, ele forjou uma nova noção imaginária, a noção de mais-gozar, de tal modo que o “ganho de gozo” de Freud passou a significar um “lucro psíquico”.

Eis o que diz sobre isso: “Com esse movimento, Lacan complementou a aposta epistemológica de Freud com uma aposta política, na qual a crítica da economia política passou a desempenhar um papel notavelmente semelhante ao da energética em Freud, acrescentando assim à epistemologia de Freud um giro crítico ainda mais explícito”.

Chegou, pois, o momento de mostrar como a identificação errônea de trabalho abstrato com trabalho fisiológico está na raiz da falsa homologia “mostrada” por Tomšič, a qual de fato fora “apresentada” por Lacan. Eis como tenta justificar o passe de mágica conceitual que dota o ser humano de uma pulsão-sujeito bem semelhante ao impulso característico do “sujeito automático”, ou seja, do capital: “O pano de fundo silencioso da distinção entre trabalho abstrato e concreto (ou entre labor e trabalho) é novamente a energética, da qual a noção de Arbeitskraft migrou para as ciências sociais e, eventualmente, para a psicanálise. Marx refere-se a esse dispêndio de força de trabalho no sentido fisiológico. Que esse gasto seja uma questão de cálculo econômico e de abstração é explicado pela referência ao valor: produção de abstração. Por outro lado, temos o dispêndio de força de trabalho como experiência corporal ou mental concreta”.

A transformação de trabalho concreto em abstrato em Marx nada tem a ver com a energética. Eis que está fundada na lógica da redução que constitui uma medida em geral, em qualquer campo da realidade. O trabalho fisiológico é o pressuposto genérico de todo trabalho social; trata-se de uma condição necessária para que a referida redução possa ser feita pelo processo social engendrado pela reprodução da relação de capital. É a redução que põe o trabalho em geral como trabalho abstrato, como abstração real.

Agora, é importante considerar, primeiro, como Tomšič caracteriza o sentido da obra de Marx. Note-se, curiosamente, que, ao invés de expor como a formação do valor na sociabilidade capitalista cria objetos metafísicos tal como está exposto na seção sobre o fetichismo da mercadoria, ele próprio se expõe à metafísica: “O esforço principal do projeto crítico maduro de Marx consistiu em examinar as consequências negativas desse gasto de força humana de trabalho, do consumo, do esgotamento e, em última análise, da destruição dos corpos de trabalho. No contexto socioeconômico, o duplo caráter das mercadorias – e, portanto, do trabalho – expõe igualmente um nexo problemático, entre a materialidade sensível e a abstração econômica (nexo este que Marx ocasionalmente chamou de “sensível suprassensível”). O impasse no qual o sujeito-trabalhador encontra-se a si mesmo nesse processo, é indicado no duplo uso do termo “todo [trabalho]”: o trabalho se divide entre abstração e concreção, assumindo duplo status o tempo todo e inteiramente”.

Agora é preciso ver como Tomšič apresenta a homologia entre o que supostamente ocorre na mente das pessoas no visor de Lacan (ou Freud lido e interpretado por Lacan) e o que ocorre na esfera econômica da sociedade moderna. Note-se que o psicanalista francês chamou o gozo excedente – não gozado – de “mais-gozar”: “A introdução do mais-gozar reconhece assim que a mesma absolutização de um regime de abstração simbólica [na mente dos indivíduos] está em jogo no processo analisado por Marx na esfera econômica. Trata-se de um processo que acaba produzindo duas abstrações modernas centrais, quais sejam elas, o trabalho abstrato (…) e o mais-valor. A mudança do valor para o gozo sugere que o moderno regime de valorização se encontra também na raiz de uma metamorfose do gozo, já que um acento é colocado no gozo em forma objetivada, gozo como objeto privilegiado, em torno do qual a economia libidinal (desejo e pulsão) encontra-se organizada”.

Ora, por que o gozo assume na época moderna uma forma objetivada? Tomšič indica que já Freud havia feito uma distinção entre a vida erótica na antiguidade e a vida erótica na modernidade. Na primeira, segundo esse autor clássico, o gozo era visado por si mesmo, mas na segunda ele vem a ser visado por meio do objeto. Ousa-se aqui discordar, fazendo uma hipótese. O que muda da sociedade pré-moderna para a sociedade moderna é a natureza do próprio objeto. Se antes ele era largamente valor de uso, agora ele se tornou mercadoria, valor de uso e valor – na verdade, valor sobretudo.

Já para Freud – e isso é bem interessante – o modo de gozar não é transistórico. Contudo, por desconhecer a crítica da economia política, ele não pode ter clareza sobre a diferença crucial entre a sociedade moderna e aquela que a antecedeu. Eis que se passou de um mundo voltado à própria subsistência para um mundo regido pela acumulação. Assim, frente ao advento dessa sociabilidade compulsivamente aquisitiva, não se pode deixar de pensar que a realização libidinal dos indivíduos passa a se dar primordialmente por meio da mercadoria, notando-se em adição que tudo tende a adquirir essa forma no capitalismo.

Apesar de histórico, o modo de gozar atual não está regido por uma abstração subjetiva. Como ficou claro anteriormente, assim como não existe trabalho abstrato na esfera psíquica, também não existe gozo abstrato real e, portanto, o termo mais-gozar parece uma invenção equivocada. Se parece fazer sentido é porque o sistema econômico da relação de capital, na época moderna, coloniza o inconsciente, passando a guiá-lo por meio do fetiche da mercadoria.

Isso, no entanto, não significa que a falsa homologia proposta por Lacan não contenha um grão de verdade, desde que por referência exclusiva à época histórica do capitalismo: “Vale a pena reter um ponto dessa descrição freudiana da metamorfose do ‘prazer’ entre a antiguidade e a modernidade. Eis que a ênfase agora dada no objeto equivale a uma fixação libidinal (fixação da pulsão). Isso tem consequências significativas para o problema que o trabalho inconsciente e o trabalho social enfrentam continuamente. Quando esse objeto é definido como excedente, a impossibilidade de satisfação torna-se explícita: a satisfação torna-se indistinguível da insatisfação e a pulsão se fixa no ‘mais’ de gozo, portanto, em seu aumento ou crescimento constante. O termo alemão Mehrwert (mais-valor) sintetiza essa fusão de satisfação e insatisfação. Reconhece igualmente o crescimento como uma característica inerente do objeto. A ênfase no ganho de prazer ou mais-gozar em Freud e no mais-valor em Marx reflete essa mudança do modo de produção de valor ‘pré-moderno’ para o ‘moderno’ e seu correspondente modo de gozo”.

Logo, não se pode presumir ou afirmar que há uma adequação entre uma suposta natureza transistórica do ser humano em geral e a acumulação de capital. Entretanto, essa ilusão aparece na leitura de Lacan, de tal modo que continua sendo admitida por muitos de seus seguidores.[iii]

Este, porém, não é o caso de Tomšič. Pois, conclusivamente, ele diz em seu artigo que “nem o mais-valor nem o mais-gozar existe fora do capitalismo”. Ambos, acrescenta, “estão condicionados pela transformação do trabalho num processo virtualmente sem fim”. Aqui se acrescentaria que o processo de transformação do trabalho concreto em trabalho abstrato na esfera social, origem da acumulação insaciável de capital, condiciona o comportamento pulsional dos indivíduos, mesmo se o “trabalho do inconsciente” nunca deixa de ser só “trabalho concreto”.

Enfim, esse modo de conceber a psique talvez explique a razão pela qual os seres humanos se transformam em suportes dos polos da relação de capital, em personificações da força de trabalho e do capital respectivamente, no modo de produção capitalista.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Complexidade e práxis (Plêiade).

Referências


Althusser, Louis. Análise do valor. In: Ler o capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 196-211.

Kirshner, Lewis A. “Rethinking desire: the objet petit a in Lacanian theory”. In: Journal of the American Psychoanalytic Association, 2004.

Tomšič, Samo – The capitalist unconscious – Marx and Lacan. Verso, 2015.

___________ – Marxismo e psicanálise. In: Blog Economia e Complexidade, 2022a.

___________ – Labour/work. In: The Marx through Lacan vocabulary: a compass for libidinal and political economies. Ed. David Pavón-Cuellar. Routlege, 2022b.

Notas


[i] Como se sabe, era assim que Althusser pensava o valor: “o valor não é dado, nem destacado, nem posto em evidência: é construído como conceito” (1975, p. 200).

[ii] O mais-trabalho na esfera social se converte em mais-valor, sendo então apropriado e acumulado pelo capitalista; já na esfera mental, o mais-trabalho requerido pela pulsão se converte, supostamente, em um mais-gozar que não seria acumulado; dele resultaria, ao fim e ao cabo, mais frustração. O trabalho do inconsciente faz do ser humano, assim, um ser masoquista!

[iii] É irresistível dar um exemplo; eis o que diz o psicanalista norte-americano Lewis A. Kirshner: O conceito de “objet petit a” é central para a teoria do desejo de Lacan, que sem dúvida representa sua maior contribuição para a psicanálise. É uma expressão da carência inerente ao ser humano, cuja incompletude e desamparo precoce produzem uma busca de realização além da satisfação das necessidades biológicas. O “objeto a” é uma fantasia que funciona como causa do desejo; como tal, determina se o desejo será expresso dentro dos limites do princípio do prazer ou “além”, em busca de um gozo ilimitado, um gozo impossível e até mortal” (Kirshner, 2004). É assim que esse autor extrapola a experiência clínica historicamente situada para apresentar o ser humano, mediante um fundamento primeiro, como um ser insaciável. Tal ser realmente inexistente é obviamente transistórico.

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