Por uma gastronomia territorial e sustentável

O comer caro e estetizado propagado por chefs estrelas e realities requer um contraponto popular. Diversas iniciativas mostram que uma alimentação saudável, criativa e justa é possível – e podem fortalecer o campo e novos espaços urbanos

Fonte: Sesc
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Comer não é um ato político se você ainda esquece dos impactos da agricultura capitalista (monocultivos + agrotóxicos + transgênicos + exploração da natureza e dos seres humanos), da fome que atinge milhões de seres humanos e, ao mesmo tempo, pensa que escolher uma mercadoria nas prateleiras dos grandes atacadistas é uma ação isenta. Tampouco se sua ceia de Natal tem peru e toda sorte de comidas quentes para uma noite de verão no Sul global.

É imprescindível repensar todo o ciclo de vida impactado em nosso prato, na saúde e nos jogos sociais e econômicos os quais fazem algumas rodas girar.

No lado da moeda expresso pela fome, não-alimentos ultraprocessados, farináceos e transgênicos é o que sobra aos pobres “privilegiados” pelo estômago cheio ante o vazio. A outra face da mesma moeda apresenta uma gastronomia hegemonizada por normas ocidentais, brancas, masculinas e ditas civilizadas de comer e cozinhar. Os pratos exóticos e artísticos nos restaurantes (estrelados por críticos) de homens brancos em sua maioria europeus, constitui a sociedade do espetáculo no mundo gastronômico.

Em diferentes territórios do mundo, mercadorias são produzidas sob sistemas exploratórios da natureza e dos seres humanos. A produção circula entre os continentes para satisfazer o fetiche do “alimento mercadoria”. Em luxuosos restaurantes utiliza-se inclusive ouro para temperar esses produtos transnacionais, todavia, na essência o tempero se apresenta enquanto degradação social e ambiental.

Mas existem outras gastronomias e agriculturas (com cultura e ausência de alienação): as do território local e popular. Essas gastronomias criam pontes socioambientais, onde havia abismos, a exemplo da interação consumidor/produtor, no Raízes do Brasil1.

Essas outras gastronomias vem sendo pensadas e articuladas no âmbito de um campo teórico analítico que tem como plano de sustentação os cursos superiores em Gastronomia.

As gastronomias de hoje nos dizem que: não estamos aptos apenas a cozinhar, tampouco a reproduzir receitas. Não desejamos o posto de chefe celebridade. Criticamos os programas do tipo reality em que cozinhar e criticar são a tônica. Não estamos aqui para entreter vocês tampouco para fingir que você come cultura. Não desejamos planejar experiências incríveis e únicas com comidas exóticas e desconhecidas de alhures.

Somos pensadores acima de tudo de uma vida possível através da práxis, na radicalidade da possibilidade, com alimentação saudável e formas juntas de distribuição da terra e dos seus usos e não das suas posses na dimensão mercantil.

Tampouco estamos redescobrindo o Brasil, ou mesmo ratificando os elementos civilizadores que outrora não eram questionados. Não se trata disso. São conexões deslocadas e sobretudo alargadas e não excludentes, diferentes da noção popular de um comer caro e estetizado.

Exemplos dessas conexões estão desenhadas nos projetos Convivium UFRJ @convivium.UFRj e a parceria com o Armazém do Campo @armazemdocampo.rio – espaço de distribuição de produtos oriundo dos assentamentos do MST (Movimento dos trabalhadores Sem Terra) que produzem refeições com alimentos desses assentamentos através da ação Culinária da Terra. Além da produção e almoço e do serviço de salão, todo o planejamento incluindo o “índice de proximidade” é elaborado por alunos do curso de Gastronomia da UFRJ.

Refeição servida na ação do Convivium – Culinária da Terra que acontece aos sábados no Armazém do Campo Lapa – Rio de Janeiro. Fonte: @convivium.ufrj
Raízes do Brasil. Fonte: Arquivo pessoal

Também se traduzem em iniciativas singulares em espaços urbanos que buscam possibilitar diálogos entre a comida e o futuro do planeta.

O Raízes do Brasil está situado na rua Áurea, número 80, no bairro Santa Teresa na cidade do Rio de Janeiro. Neste território os agricultores familiares camponeses ligados ao Movimento dos Pequenos Agricultores/Via Campesina Brasil, comercializam seus alimentos saudáveis e também dialogam com os consumidores.

Tranversalizado pelo comércio justo e solidário, a agroecologia, o combate à fome e os circuitos curtos e médios de comercialização orientam os singulares territórios da agricultura familiar camponesa. Aqui se misturam cultura, biomas, artes, ciência e filosofia para embaralhar nossos estômagos e promover a digestão de um mundo ora por vir, ora em ato, em realização.

Estamos afirmando as singularidades presentes na muitas linhas de multiplicidade que postas apresentam nossas relações com o comer e nosso modo de produzir. Queremos e ansiamos por alinharmos a terra aos fluxos da vida não mediados pelo mundo da mercadoria capitalista. Assim vamos construindo as gastronomias territoriais, sustentáveis e sociais.


1 O Raízes do Brasil é uma conquista do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e surge como um espaço organizado para integrar agroecologia camponesa e a sociedade urbana, através da alimentação saudável, atividades culturais e hospedagem na cidade do Rio de Janeiro.

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