Os 100 dias da Colômbia sob Gustavo Petro

Mandatário já avançou em diversas medidas para cumprir promessas de campanha: a reabertura das negociações de paz, reforma tributária e agrária e diplomacia internacional para resgatar a soberania. Como ele pode inspirar um novo governo Lula

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Por Javier Guerrero, no Liberation, com tradução na Revista Opera

Quando Gustavo Petro, o primeiro presidente de esquerda da Colômbia, foi empossado no dia 7 de agosto, seu primeiro ato como presidente, ainda durante a posse, foi pausar os procedimentos e solicitar que os militares trouxessem para ele a espada de Simón Bolívar, um pedido que havia sido negado anteriormente pelo presidente cessante, Iván Duque, antes da cerimônia. A espada é um símbolo de libertação da América Latina, que o próprio Bolívar exigiu que nunca fosse enterrada ou guardada até que todo o continente estivesse livre. Embora o primeiro ato de Petro fosse de natureza simbólica, em seus 100 primeiros dias de governo ele avançou muitas medidas progressistas e leis prometidas durante sua campanha histórica.

Na terça-feira passada (15), milhares saíram às ruas das grandes cidades colombianas em apoio a Petro e para celebrar seus 100 dias de governo. Não é surpreendente, haja em vista que Petro atualmente conta com um índice de aprovação de 62%, em contraste com seu antecessor de direita, Iván Duque, que tinha 27% de aprovação durante o mesmo período. Gustavo Petro e sua companheira de chapa, Francia Márquez, uma liderança dos movimentos afro-colombiano e ambiental, em um período curto de tempo já cumpriram muitas de suas promessas. Entre elas, a reabertura das negociações para um acordo de “paz total” com todos os grupos armados no país, a normalização de relações com a Venezuela, a aprovação de uma reforma tributária popular, medidas para uma reforma agrária e a denúncia dos Estados Unidos e outros poderes imperialistas pela ruína das economias do Sul Global e pela destruição climática.

Gabinete

Antes mesmo de tomar posse no dia 7 de agosto, as escolhas de Petro para seu gabinete já eram um indicativo de que ele não seria formado puramente pelos usuais políticos de carreira. Ao invés disso, líderes de importantes movimentos de massa e figuras progressistas como a ministra de Meio Ambiente, Susana Muhamad, ou sua ministra de Cultura, Patricia Ariza, foram escolhidas. Ambas são militantes de longa data e defensoras dos direitos humanos. A ministra do Trabalho, Gloria Ines Ramirez, é uma professora e sindicalista, membro do Partido Comunista da Colômbia. Além disso, Petro garantiu que seu gabinete fosse paritário, com um número igual de mulheres e homens para o mandato.

Além de seu papel como vice-presidente, Francia Márquez também liderará o recém-criado Ministério de Igualdade e Equidade. Esse novo Ministério busca lutar e garantir igualdade para mulheres, jovens, afro-colombianos, povos indígenas, comunidades LGBTQ e camponeses. Francia disse que a criação do Ministério é histórica, e que “hoje, devolver a igualdade para todos os colombianos é tornar a dignidade um costume”.

Processo de paz

Um dos pontos mais importantes durante a campanha de Petro foi a retomada e fortalecimento dos acordos de paz de 2016, assinados em Havana com o fim de encerrar uma guerra civil de décadas entre o maior grupo guerrilheiro do país, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o Estado colombiano. O governo de Duque violou e desmantelou os acordos de paz, desrespeitando as garantias de segurança e levando ao contínuo assassinato de milhares de ex-combatentes e líderes sociais. Importantes programas de reintegração à vida civil foram desfinanciados e boicotados por Duque. Embora as FARC tenham se desmobilizado e se juntado ao processo de paz, o fracasso no cumprimento dos acordos de paz levou vários combatentes das FARC a se recusarem a depor ou a retomarem as armas. Além disso, a falta de boa vontade da administração Duque impediu que outros grupos armados como o Exército de Libertação Nacional (ELN), hoje a maior guerrilha ativa no país, negociassem um processo de paz.

Respondendo a essa situação sem perder tempo, no dia 8 de agosto, seu segundo dia de mandato, Petro anunciou a retomada das negociações de paz com o ELN. Um marco crucial nas negociações foi alcançado este mês, quando Petro assinou sua primeira lei como presidente: a Lei 181/2022, ou “lei da paz total”, aprovada por uma maioria esmagadora no Senado colombiano. Essa lei dá ao governo o poder de estabelecer as bases para negociações de paz com 22 grupos armados, incluindo o ELN, combatentes remanescentes das FARC e até vários grupos paramilitares de extrema direita.

Em paralelo ao projeto de paz total, Petro e a vice-presidente Márquez lançaram também uma iniciativa para proteger líderes sociais na Colômbia, país amplamente considerado por duas décadas o mais perigoso do mundo para as lideranças sociais. Somente em 2022, mais de 150 lideranças sociais foram assassinadas por grupos narcotraficantes no país. A iniciativa planeja proteger líderes nas 65 cidades mais perigosas da Colômbia.

Normalização das relações com a Venezuela

No campo das relações exteriores, outra importante promessa de campanha de Petro foi a normalização de relações com a Venezuela, nação-irmã da Colômbia. Em setembro, as duas nações retomaram as relações diplomáticas após terem sido suspensas em fevereiro de 2019 pelo presidente venezuelano Nicolás Maduro, em resposta ao apoio de Duque e reconhecimento de Juan Guaidó como “presidente legítimo” da Venezuela durante sua tentativa frustrada de golpe. A Colômbia se tornou a base de lançamento de operações militares da oposição venezuelana para tentar desestabilizar o governo eleito de Maduro e o povo venezuelano. As fronteiras entre os países também foram reabertas em 26 de setembro, após sete anos de fechamento.

Durante sua campanha, Petro prometeu reconhecer Maduro como o presidente legítimo do país. Um encontro histórico entre Petro e Maduro ocorreu no dia 1 de novembro, em Caracas, capital da Venezuela. A reunião teve como objetivo fortalecer as relações diplomáticas e econômicas entre as duas nações, sob os princípios de respeito mútuo e cooperação.

O encontro não foi apenas simbólico: já rendeu frutos. Em uma demonstração de boa fé, a Colômbia devolveu a empresa pública venezuelana Monomeros a seu dono de direito, após ela ter sido ilegalmente colocada sob o controle de Guaidó por três anos. A Monomeros é uma empresa petroquímica localizada na Colômbia, responsável pela produção de quase 50% dos fertilizantes utilizados no país. Sob o controle de Guaidó, a empresa esteve sob escrutínio, com diversas denúncias de corrupção e má administração. Em resposta a essa justa decisão, Felix Plasencia, embaixador venezuelano na Colômbia, declarou: “esse é o fim do processo negativo planejado para ferir e causar sofrimento aos venezuelanos e colombianos. Agora, uma empresa que pertence ao povo da Venezuela volta ao poder do povo”.

Discurso na ONU e denúncia dos EUA e do Ocidente

Petro tomou a tribuna da Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro e fez um vibrante e histórico discurso, no qual pediu o fim da falsa e injusta “guerra às drogas” e apontou ao capitalismo como a real causa da destruição climática. Ele declarou:

“Vocês propõem que o mercado nos salvará do que o próprio mercado criou. O Frankenstein da humanidade reside em deixar o mercado e a ganância agirem sem planejamento, abrindo mão do cérebro e da razão, submetendo a racionalidade humana à ganância. O que é o uso da guerra se o que precisamos é salvar a espécie humana? O que é o uso da OTAN e os Impérios, se o que está por vir é o fim da vida inteligente? O desastre climático matará centenas de milhões de pessoas, e escutem: ele não é produzido pelo planeta, ele é produzido pelo capital; a causa do desastre climático é o capital. A lógica de se unir apenas para consumir mais, produzir cada vez mais, para alguns ganharem cada vez mais, é que produz o desastre climático”.

Petro também aproveitou para fazer declarações pedindo a retirada de Cuba da lista de “estados patrocinadores do terrorismo” dos EUA – que o líder colombiano chamou de “uma injustiça internacional”. Ele também disse que “a única coisa que Cuba fez foi oferecer um espaço para que o processo de paz pudesse ser finalizado”.

Não muito tempo após seu histórico discurso na ONU, durante um discurso no estado colombiano de Antioquia, Petro acusou o governo dos EUA de arruinar as economias do mundo por meio do uso do dólar e da imposição de políticas neoliberais que desvalorizam outras moedas, levando ao êxodo em massa de migrantes para os EUA. Ele criticou a hipocrisia da política de imigração estadunidense, e argumentou que se os EUA quisessem impedir o fluxo de pessoas para o país, eles deveriam focar em ajudar a América Latina a prosperar ao invés de continuar arruinando as economias do hemisfério ocidental.

Meio ambiente

Uma das principais bandeiras da candidatura Petro/Francia era tornar a Colômbia uma “potência global da vida”, não só chegando a uma paz genuína e duradoura, mas também liderando a luta contra a destruição climática.

O discurso de Petro na ONU sobre o meio ambiente não foi só retórica. Durante seus primeiros 100 dias no governo, diversas propostas e leis fundamentais sobre o tema foram apresentadas. No começo deste mês, Petro suspendeu o uso do método de fracking (fraturamento hidráulico) para a exploração do petróleo e gás por três meses. Embora a medida seja temporária, o governo planeja torná-la permanente. É um passo decisivo para cumprir as promessas do governo sobre a questão ambiental.

Em menos de 100 dias, o governo de Petro e Francia ratificaram o Acordo de Escurazù, um importante acordo internacional que prevê a transparência de informação, participação pública e justiça nas questões ambientais na América Latina e Caribe. A lei pretende proteger os direitos humanos de defensores ambientais, vítimas rotineiras de violências e assassinatos na região. A própria vice-presidente Francia, uma ambientalista de longa data, foi vítima de ameaças de morte e intimidações por seu trabalho.

Além disso, em razão da COP27 no Egito, Petro propôs a formação de um bloco de países latino-americanos para a proteção da Amazônia. Como parte desse plano, a Colômbia prometeu 200 milhões de dólares para salvar a Amazônia durante os próximos 20 anos.

Reforma tributária

Outra proposta de campanha era responder às demandas dos milhões de manifestantes colombianos que pararam o país no ano anterior durante a greve nacional. As greves foram uma resposta a uma reforma tributária impopular proposta pelo governo Duque, que teria forçado a classe trabalhadora colombiana a arcar com um ônus econômico significativo para financiar o déficit no qual o governo colombiano incorreu durante a pandemia da COVID-19. A proposta foi derrotada pelo levante de massas no país, e em muitos aspectos abriu o caminho para a vitória de Petro.

No começo deste mês, o Senado colombiano aprovou a reforma tributária proposta por Petro que visa levantar 20 trilhões de pesos (cerca de 21,8 bilhões de reais) adicionais por ano pelos próximos quatro anos para financiar projetos sociais e resolver os problemas financeiros do país. Ao invés de jogar a maior parte do fardo nas costas dos trabalhadores, a proposta visa conseguir esse financiamento adicional aumentando os impostos sobre o petróleo e o carvão, impondo impostos mais altos à classe média e aos ricos da Colômbia e aumentando os impostos sobre plásticos descartáveis, bebidas açucaradas e alimentos processados. A reforma tributária de Petro está alinhada com os princípios que guiaram sua campanha: a superação dos combustíveis fósseis e a extração de carvão e a elevação do padrão de vida dos trabalhadores urbanos e rurais da Colômbia. O ministro de Finanças da Colômbia, José Antonio Ocampo, classificou a proposta como “a reforma mais progressista da história da Colômbia”.

Reforma agrária

Como continuação da promessa de defender os acordos de paz de 2016, o governo Petro prometeu comprar três milhões de hectares de grandes produtores de gado e redistribuí-los para camponeses sem terra. Isso seria suficiente para realizar o primeiro ponto dos acordos de paz assinados com as FARC, e abriria o caminho para a implementação de uma reforma rural abrangente. O governo planeja redistribuir as terras num futuro próximo, mas terras que pertenciam aos cartéis de droga já foram dadas para camponeses sem terra.

Antiga rede de farmácias do Cartel de Cali torna-se propriedade pública

Além de dar aos camponeses despossuídos as antigas terras dos cartéis do tráfico, o governo Petro recentemente pôs sob controle público todas as 900 lojas da Drogas La Rebaja, a maior cadeia de farmácias da Colômbia, antes controlada pelo Cartel de Cali. Além disso, o plano é transformar toda farmácia da rede em um centro de atenção primária, e usar a ampla cadeia de suprimentos e recursos da companhia para transformá-la em uma distribuidora pública de remédios a custos mais baixos.

Educação

Petro tem uma ampla base entre a juventude colombiana – uma geração que foi traída por décadas de líderes neoliberais e de direita, e que foi forçada a lidar com taxas de 20% de desemprego juvenil e 40% de pobreza. Além disso, desde o governo do ex-presidente de extrema-direita Álvaro Uribe, o acesso à educação superior diminuiu, em função das privatizações e do endividamento estudantil. Como prometeu durante a campanha, o governo Petro criou 500 mil novas vagas nas universidades e está cancelando as dívidas de 500 mil devedores da ICETEX, uma credora estatal de empréstimos estudantis.

O caminho para o primeiro governo de esquerda da Colômbia envolverá muitos desafios postos pela direita dentro do país e por seus chefes em Washington. Essa luta se desenrolará no longo prazo, mas o governo Petro já cumpriu várias das mais importantes promessas de campanha, e está dando passos firmes para que a Colômbia possa ser considerada uma potência global da vida.

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