Os algoritmos que sorvem a vida – e o ano que passou

Aplicativos para dormir, acordar, beber água, transar… até quando cremos nos libertar. Já somos subjetividades de algoritmo? Mas afinal, o que importa? Compartilhe a lista das músicas “mais ouvidas” – o app já sabe o que (você) pensa (de si)

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Então, o Natal! Somos levados, talvez mais que em outros períodos do ano, por uma avalanche de algoritmos. Presos nas telas do capitalismo de esgotamento: aplicativos para dormir, acordar, comer, transar, se divertir. Os de divertimento, certamente, estão entre os mais perversos, pois controlam aquilo que nos libertaria da esfera do domínio cotidiano: o lazer, o ócio, o lúdico.  

Nos últimos dias, tal fica expresso na ostentação dos números dos aplicativos de música. Recaps musicais que tomaram o lugar da odiada canção natalina que outrora ouvíamos na voz de Simone. Ostentados, uma vez que são exibidos como exposição da vida privada, mas também como sinal do “bom gosto musical”. Exibidos como a dizer: “Vê aí, eu só curto música boa!”. Nas entrelinhas lemos: “e são boas porque as escuto!”. Parece que o padrão de qualidade é somente o maleável gosto “estético” do sujeito. Ou seria melhor dizer: o gosto estético do cliente? 

Talvez aqui, você leitor – ou melhor você ouvinte – já praguejou: “Que chato! Lá vem, mais uma crítica pedante. Onde eu vou ouvir minhas músicas? Todo mundo ouve nos aplicativos. Que troço chato: julgar o gosto alheio?”. Ocorre, melhor ouvinte, que nosso gosto estético deixou de ser apenas isso. Aliás, nunca foi só pura questão de gosto. Hoje, todavia, ele se transmuta em um novo tipo de mercadoria

Repare bem, ouça bem, os objetos artísticos já haviam se transformado em mercadoria bem antes. Até mesmo as instalações artísticas que achamos revolucionárias e de vanguarda. Contudo estamos a ver o próprio gosto (fruição, sensibilidade) se transformar em mercadoria. Patinando no “eu” que vai se transformando numa timeline de carne, um feed que anda e fala. É impressionante como a maior parte das nossas conversas em redes sociais se reduziu a envio de vídeos. Uma verdadeira aberração da inexpressividade. Ninguém fala, ninguém ouve; só assiste! Estaríamos diante de uma subjetividade algoritma?

Começamos, assim, a duvidar desse pretenso bom gosto quando ele nos aparece na forma da mercadoria de dados. Não escutamos as músicas que você mais gosta, querido ouvinte, quando a vemos reduzidas aos números de quantas vezes você a “ouviu”. Vemos uma lista, só isso. 

Esses dados, que são contabilizados e expostos no final do ano, é o troco da bodega que antes era dado com bala e pirulito. No caso dos aplicativos de músicas, o troco é dado na forma de um resumo matemático das músicas que você ouviu. Só que ao invés de você consumir a “bala”, você a dá para outros consumirem. Que o mundo saiba quantas vezes você degustou aquela música: infinitamente tocada no seu celular, mas não escutada! Como uma criança que ganhou o troco de guloseimas, você está feliz com a sua “bala”. Lambuzado, e talvez mais feliz que a criança, por que você supõe que escolheu a “bala” que ganhou de troco. É não só o seu gosto, mas ao seu gosto

Ficamos sabendo quais músicas nossos amigos, colegas e figurantes das nossas encenações cotidianas mais escutaram durante o ano. Igual naqueles programas de rádio FM que, ao chegar a noite, uma voz melosa anunciava em tom de publicidade: “agora, vamos ouvir a mais pedida: a mais tocada de hoje é!”. Daí a tal música ficava sendo mesmo a mais tocada, porque uma vez que lhe era dada a vitória, ela tocava de novo! Se o leitor lembrou certa cafonice auditiva desses programas de rádio, talvez deva perceber que você se tornou esse programa de rádio FM. Antes, porém, era possível desligar o rádio, hoje não mais. Nossas subjetividades se reduziram ao algoritmo, e as ostentamos como o que de melhor fizemos no ano. 

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