A esperança dos ninguéns, bem além das eleições

Como imaginar um país transformando, num tempo de crise das velhas teorias emancipatórias e de rebaixamento das utopias? A ideia da decolonialidade e a crítica profunda ao “novo” capitalismo podem fornecer algumas pistas

Arte: Noé León
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OS NINGUÉNS.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.

Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos.

Que não são, embora sejam.

Que não falam idiomas, falam dialetos.

Que não praticam religiões, praticam superstições.

Que não fazem arte, fazem artesanato.

Que não são seres humanos, são recursos humanos.

Que não têm cultura, têm folclore.

Que não têm cara, têm braços.

Que não têm nome, têm número.

Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.

Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

[Eduardo Galeano, no livro “O livro dos abraços”]

No pensamento decolonial, os componentes constitutivos do padrão mundial do poder do sistema-mundo moderno/colonial são: a colonialidade do poder, ou seja, a ideia de raça como fundamento da divisão da sociedade como elemento de dominação para o processo de acumulação de riqueza por meio das várias formas de exploração do trabalho, da natureza e dos territórios; o Estado, como forma central de controle da ação coletiva em defesa da propriedade privada e da concentração de capital; o eurocentrismo, como forma de produção e reprodução de conhecimento e subjetividade/intersubjetividade locais como universais; o capitalismo, como forma universal de exploração do trabalho e o controle da natureza como coisa a ser morta, ou seja, transformada em mercadoria. Portanto, a luta contra o padrão mundial de poder é mais do que a luta contra o capitalismo, é uma ação de interseccionalidade que abrange todos os seus componentes constitutivos.

A crise estrutural do capitalismo, iniciada a partir da década de 1970, bem como as diversas crises cíclicas do capitalismo que vêm se seguindo, e a queda do muro de Berlin, no final do ano de 1989, como símbolo da derrocada do socialismo ou do socialismo real, e do fim da Guerra Fria, ao invés de impulsionar um novo horizonte emancipatório de superação do sistema-mundo moderno/colonial e do seu padrão mundial de poder [que consiste na articulação de múltiplas formas de dominação e exploração estruturadas por meio de relações entre pessoa e regiões do planeta], impuseram e vêm consolidando a ideologia do fim da história, do fim do sujeito político e da hegemonia do neoliberalismo como única razão do mundo.

O pensamento decolonial entende o sistema-mundo moderno/colonial como uma heterogeneidade estrutural imperialista, colonialista, patriarcal, cristã, genocida, racista, epistemicida, heteronormativa, ecologicida e que, em nossa epocalidade, passa por um conjunto de crises: civilizacional, estrutural e conjuntural, que se refletem nas multiplicidades de conflitos e violências sociais. Nesse cenário, entre tantas perguntas cabíveis, uma é sobre as fontes epistemológicas capazes de fazer brotar novos horizontes utópicos, ou seja, a construção de outros padrões civilizatórios para além da modernidade e da pós-modernidade, um mundo transmoderno e pluriversal.

No Brasil, como na Argentina, Chile, Peru, México e outros, entraram, na terceira década do século XXI, convivendo com o paradoxo que se caracteriza pelo aprofundamento da crise estrutural do capitalismo e, ao mesmo tempo, a consolidação da direita e da esquerda como agentes políticos que disputam a melhor forma de administração do capital num jogo de disputa do poder pelo poder, ou seja, da disputa eleitoral pela melhor forma de gerir a crise do capital na lógica do capital, sem horizonte de transformação sistêmico. Nesse cenário de crise estrutural do capitalismo, pelo menos três resultados negativos podem ser observados: o crescimento mundial da pobreza, da miséria e dos vários tipos de violência como condição existencial do “novo normal”; o fortalecimento de posições políticas de extrema direita e protofascistas; e um jogo político eleitoral no qual é imposta à sociedade a escolha do mal menor, do menos ruim como administrador dos interesses do capital, ou seja, a escolha da incerteza.

A presença de um horizonte político outro, libertário e decolonial, corre por fora dos partidos políticos, nas múltiplas formas de organização e projetos comunitários urbanos e rurais, das feministas, principalmente as negras, dos negros contra o racismo estrutural, dos povos originários e ribeirinhos, dos sem tetos, da comunidade LGBTQIA+, dos camponeses, das ações dos moradores de favelas e quilombolas, de algumas mídias alternativas, ou seja, corre pelas vias e territórios onde pulsa a resistência dos condenados da terra, como identifica Frantz Fanon. No horizonte libertário e decolonial dos condenados da terra, os corpos políticos em luta não separam classe, raça, gênero, território, herança colonial e consciência histórica.

Ao debater sobre em que bases epistemológicas podemos construir novas relações e modelos de sociedades libertárias, em busca de um mundo transmoderno e pluriversal, afastamo-nos da ideia de que estamos diante de um caminho único: socialismo ou barbárie e do proletariado como o único sujeito revolucionário capaz de realizar a promessa emancipatória da modernidade por meio da efetivação do comunismo.

Nesse debate, constatamos que Marx e o marxismo nunca questionaram a epistemologia moderna e seu processo civilizador. O pensamento eurocêntrico ocidental moderno, seguido por Marx, levou-o a acreditar que produção científica voltada para o aceleramento constante dos meios de produção e domínio da natureza seriam elementos necessários e condição de possibilidade para realização da promessa de emancipação da modernidade desde que superado o capitalismo pelo socialismo.

Mesmo que marxistas brilhantes, como Kevin Anderson1, afirmem que parte dos escritos de Karl Marx “exibiam contornos orientalistas e eurocêntricos, por vezes apoiando implicitamente o colonialismo britânico em nome do progresso” (2019, p. 15), mas que ele, ao longo do final da vida, foi evoluindo no seu pensamento e se tornando um pensador multilinear, não determinista e sensível ao processo de desenvolvimento das sociedades não ocidentais, e incorporou, de forma crítica, reflexões sobre nacionalismo, etnia e gênero, e reconhecemos que isso tudo é verdade. Todavia, a polêmica, com parte do pensamento decolonial crítico do marxismo, é que a crítica de Marx é uma crítica eurocêntrica ao eurocentrismo. Uma crítica que condena o sistema econômico da modernidade sem ruptura com o projeto civilizador da modernidade.

Preso à lógica dialética, Marx imaginou que o sistema capitalista traz em si o germe da sua destruição, nas suas contradições, expresso na luta de classes. O capitalismo produziria os seus próprios coveiros, o proletariado como sujeito universal da revolução socialista, sujeito que realizaria a promessa da modernidade, impossível no capitalismo, por ser um sistema que tem como base a propriedade privada. O fim do capitalismo, como entrave ao processo de emancipação da modernidade, seria o fim da pré-história da humanidade e o início da história moderna, com o comunismo, onde o homem reencontraria o seu ser genérico, seria o fim da propriedade privada, da divisão do trabalho e da alienação. Karl Marx imaginou o comunismo como a efetivação na história da razão emancipatória da modernidade.

É muito importante analisar, ao longo do ciclo de desenvolvimento histórico do sistema-mundo moderno/colonial, o itinerário do movimento proletário e comunista eurocêntrico e eurocentrado, que vai da apologia ao socialismo à perda de um horizonte emancipatório. Esse percurso que passa pelo debate profundo, interno ao marxismo, sobre reforma e revolução, em que a visão reformista levou vantagem, mantendo a ideia de reformismo revolucionário até o seu deslocamento para uma visão socialdemocrata keynesiana de administração do capitalismo, em função de uma política de distribuição de renda e de uma sociedade do bem-estar sem ruptura com o capitalismo, até chegarmos ao pós-muro de Berlin, onde o capital passou a alardear sua vitória final e a colocar o neoliberalismo como única razão do mundo.

No pós-queda do Muro de Berlin, o capital, na América Latina, na sua forma financeira rentista/extrativista, elegeu como o seu inimigo, não o socialismo, o segundo sistema econômico da modernidade foi considerado derrotado, mas os capitalistas neodesenvolvimentistas. É nesse cenário que a disputa pelo governo, pela governança do capital via administração do aparelho de Estado, vem se estabelecendo entre neoliberais excludentes (direita e extrema direita) e neodesenvolvimentistas (direita, centro e esquerda). Trata-se de uma lógica de disputa de poder pelo poder, num ciclo em que o mercado vai sendo o centro normalizador dos agentes políticos que se movimentam em torno da disputa do poder político e da gestão do Estado. Portanto, o capitalismo é de direita e de esquerda.

Em obras políticas como “As lutas de Classe na França”, “18 Brumário de Luís Bonaparte” e “A guerra civil na França”, Karl Marx afirma estar analisando uma conjuntura de derrota da classe operária. No prefácio2 à edição Russa de 1882 do Manifesto, Marx afirma que “o Manifesto Comunista (1848) tinha como tarefa a proclamação do desaparecimento próximo e inevitável da moderna propriedade privada” (p. 73). Já nos últimos anos de vida de Marx (1881 -1883), Marcello Musto3 afirma que a Inglaterra:

[…] onde, embora o capitalismo tivesse criado um número de operários fabris proporcionalmente maior do que todos outros países, o movimento operário se havia enfraquecido, acomodando-se com algumas melhoras de vida e, além disso, sofrendo o efeito negativo do reformismo dos sindicatos” (MUSTO, 2018, p. 60).

Isso que levou Marx a lançar um olhar diferente para a Rússia. O socialismo/comunismo, como modo de produção científico moderno e, em alguns momentos, considerado como inevitável por Marx, como no “Manifesto Comunista”, não se realizou. De 1850 a 2022, são 172 anos, e continuamos registrando o processo de derrota da classe operária, com períodos onde se alternam conquistas e perdas de direitos nos marcos da ordem burguesa. Será que a constatação e os argumentos do pensamento decolonial afirmando que a razão moderna e o seu projeto civilizador não podem realizar a sua promessa de emancipação não merece ser levada a sério pelos marxistas? Mais do que uma crise de um modo de produção, de um sistema econômico, não estamos vivendo uma crise de um projeto civilizador?

Hegel e Marx acreditavam que a lógica dialética moderna, como representação da dinâmica do real, espiritual para Hegel e material para Marx, efetiva-se, em última instância, como razão emancipatória do mundo. Diferentemente, para o pensamento decolonial e para as epistemologias do Sul, que pregam o fim do império cognitivo4 da modernidade, o projeto de modernidade não pode realizar a sua promessa de emancipação humana. Para o pensamento decolonial, porque a razão moderna tem a colonialidade como parte constituinte, não existindo modernidade sem colonialidade e nem colonialidade sem modernidade.

A lógica expansionista e universalista da modernidade é uma lógica instrumental de expansão da dominação, da exploração e de conflitos, promotora de uma dinâmica de desagregação, transformação e destruição permanente de todas as formas de vida no planeta e, desde meados do século XX, vem expandindo essa lógica para o espaço sideral.

No momento em que a taxa de remuneração do capital ultrapassa a taxa de crescimento da produção e da renda, na América Latina, onde predomina uma economia primária-exportadora, articulada dentro do modelo desenvolvimento rentista/extrativista periférico, imposto pelo sistema-mundo moderno/colonial, o mercado aprendeu a tirar proveito do sistema político partidário autoritário, ora apoiando os neoliberais, ora apoiando os neodesenvolvimentistas para governança e administração do Estado. Este um instrumento utilizado para drenagem de recursos públicos para o sistema financeiro especulativo, principalmente por meios de pagamento de serviços da dívida pública.

O neoliberalismo, como única razão do mundo, vem se impondo como único modelo de organização e estruturação das relações sociais, e se articula no binômio: economia de mercado e democracia formal. Aqui, democracia não significa participação e delegação da sociedade civil no funcionamento e fiscalização das instituições públicas, nem a participação na produção de renda e riqueza produzida socialmente por meio de mecanismos estruturados para a superexploração do trabalho e empobrecimento contínuo e exaustivo dos trabalhadores e trabalhadoras.

Por isso, se, por meio das eleições formais, alguém chega ao cargo de presidente da República e tenta contrariar os interesses do mercado, implantando reformas estruturais que valorizem o trabalho, que amplie os direitos, que distribua renda e riqueza, que taxe as grandes fortunas e o lucro do capital para que tenhamos justiça social e vida digna, o mercado, antropomorfizado, fica nervoso, as bolas oscilam negativamente, os meios de comunicação, como setor do mercado de comunicações, passam a fazer oposição a tal governo visando seu desgaste público e, como corolário, sua derrota eleitoral, cassação ou golpe, como o aplicado em Dilma, em 2016, no Brasil.

Os neodesenvolvimentistas, chamados de esquerda, que se deslocou da posição de revolucionária anticapitalista para o reformismo keynesiano, e que passou a se contentar em ser os administradores do capital financeiro rentista/extrativista, têm no PT, no Brasil, um bom exemplo.

Em 2012, o cientista político petista André Singer, no seu livro “Os sentidos do lulismo”, classificava o modelo neodesenvolvimentista de Lula como uma variante do neoliberalismo, que combinava um conjunto de reforma gradual com um pacto conservador. O otimismo de André Singer, ao desconsiderar a fragilidade da conjuntura mundial, que permitia Lula governar para que o capital acumulasse riqueza ao mesmo tempo em que ampliava a base de consumidores, pela integração dos pobres no mercado, foi o que o levou a acreditar que o neodesenvolvimentismo dominaria a agenda política do país pelas próximas décadas, mesmo que o PT não tivesse mais no poder. Foi essa crença que levou Lula, durante a crise do capital de 2008, a apelar para a sociedade continuar consumido porque a crise no país seria uma “marolinha”.

A chamada esquerda ou os capitalistas neodesenvolvimentistas, de tanto aderir ao realismo político e ao pragmatismo na disputa do poder pelo poder, passa a ideia de que ela pensa que administra melhor o capital para o capital do que os capitalistas, pois, quando ela é governo, ganha os capitalistas e se mantém a ordem, pois ela deixou de ser anticapitalista, anti-imperialista e perdeu o horizonte emancipatório.

O horizonte político maior da esquerda é realizar uma boa gestão do capital na tentativa de realizar uma política de ganha-ganha e limitada à busca de popularidade pela promessa de combater a pobreza, ampliar direitos e o respeito às diferenças, mas sem tocar nas estruturas e nas causas que alimentam as desigualdades e as injustiças sociais, como se o combate à fome, a superexploração do trabalho e a perda dos direitos fossem questões ligadas a quem governa, a competência individual do governante para administrar o Estado.

A política partidária e a gestão do Estado do sistema-mundo moderno/colonial, na segunda metade do século XX, no período denominado de pós-Guerra, conseguiu implantar em parte da Europa e nos Estados Unidos, ou seja, nos países do sistema imperial, o chamado Estado de Bem-estar, mantido por meio do neocolonialismo na África, Ásia e o subdesenvolvimento na América Latina. Todavia, essa experiência particular, por meio de relações desiguais e combinadas, foi vendida e divulgada como de possibilidade universal, caso os países da periferia, espoliados pelos países que controlavam o padrão mundial de poder seguissem as receitas do chamado crescimento econômico como fórmula de saírem da condição de países atrasados para a condição de desenvolvidos. O resultado foi concentração de renda, pobreza e dívida interna e externa.

As políticas desenvolvimentistas na América Latina promoveram o crescimento econômico, mas não a distribuição de renda e nem o desenvolvimento humano, a riqueza cresceu, mas não foi dividida. Então, diante do colapso do desenvolvimentismo, outra receita foi imposta, depois da chamada década perdida, ou seja, a década de 1980 do século XX: o Consenso de Washington, ou seja, o neoliberalismo como solução para os problemas latino-americanos, muito combatido pela esquerda desenvolvimentista ou keynesiana até o seu deslocamento para o modelo neodesenvolvimentista.

A crise econômica do centro imperial do sistema-mundo moderno/colonial, ocorrida em 2008, que, inicialmente, expandiu-se para Europa, levando à derrocada de sua periferia interna (Grécia, Espanha, Portugal, Itália e Irlanda) e que, a partir de 2012, voltou-se para a América Latina, acabando com as bases de sustentação dos chamados governos progressistas, acabou fortalecendo os neoliberais de direita e de extrema direita, inclusive no centro imperial, os Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump ( 2017-2021).

Para alguns estudiosos do sistema-mundo moderno/colonial, a crise de 2008 foi um dos resultados da crise do império, ou seja, do poder americano como centro aglutinador e coordenador do padrão mundial do poder. Assim, como no pós-Guerra, a Inglaterra perdeu o posto para os Estados Unidos, este vive sob ameaça de ser substituído pela China ou pela passagem de um mundo unipolar para uma nova ordem mundial multipolar.

Os neodesenvolvimentistas, que se movimentam no ciclo vicioso da disputa do poder pelo poder, ou seja, que renunciaram a transformação sistêmica, diferenciam-se dos neoliberais por oferecerem uma alternativa ético minimalista: o combate à fome, a inclusão social por meio da ampliação de direitos dentro da ordem, o compromisso da garantia do Estado de Direito, respeito aos direitos humanos, à diversidade e às regras do jogo que normatizam a disputa política eleitoral pela alternância de governo. Todavia, como abandonaram o compromisso com as reformas estruturais anticapitalistas e anti-imperialistas, para não se confrontarem com os interesses de mercado, os limites, possibilidades e avanços de seu projeto político ético minimalista passam a ser definidos e normatizados pelos interesses do mercado e dos ciclos conjunturais.

O projeto ético minimalista neodesenvolvimentista passou a ser definido a partir do momento que, cansados de serem derrotados nas eleições que participavam defendo projetos populares de reformas estruturais, passaram a aderir à ideologia do realismo político e do pragmatismo como caminho para serem governos, prática que, ao longo dos ciclos eleitorais, passou a sedimentar uma conjuntura de impotência e conformação diante das perdas de direitos e precarização das condições de vida e, ao mesmo tempo, um comportamento eleitoral de escolha do mal menor ou do menos pior para governo. A referência já não é mais o futuro, mas o que foi feito no passado, o que demonstra a falta de projeto e de horizontes emancipatórios.

Numa entrevista ao jornal “Le Monde Diplomatique Brasil”, edição de 26/03/2020, publicada com o título “O neoliberalismo não se legitima mais”, ao ser perguntada sobre que tipo de gente se junta com diferentes ideias, propostas e projetos, nesse momento de crise, para superar o capitalismo, Nancy Frase emitiu a seguinte resposta:

Eu acredito que estamos num momento em que as pessoas menos possíveis de serem convencidas são aquelas que dizem: vamos voltar para onde estávamos antes de Bolsonaro, ou Trump. Como se isso fosse possível. Como existisse um ponto estável desejável, o que não existe. Foi o regime que criou as condições para Bolsonaros e Trumps. Existem pessoas que querem voltar, mas existem aquelas que querem algo além. Não há acordo. Há um monte de propostas vagas, incoerentes ou não muito bem pensadas.

Na predominância do realismo político e do pragmatismo, os processos estruturais de dominação e exploração vão se naturalizando e se consolidando como definitivos. É a hegemonia da ideologia do fim da história. Se a reflexão de Nancy Frase, realizada em 2020, demonstra-se correta, a vitória do Lula para presidência da República, nas eleições de outubro de 2022, tem demasiada validade por barrar a reeleição de Bolsonaro e do fascismo. Mais do que a ilusória promessa de Lula e do PT de “fazer o povo voltar a ser feliz”, tem como seu principal desafio não permitir a recriação de condições para o retorno da extrema direita fascistizante ao governo.

Todavia, no ciclo do fluxo e refluxo, nos movimentos que eclodem nas margens, pode ser gerada a energia necessária para que a panela de pressão possa explodir a ordem, o que pode gerar várias possibilidades. E foram esses movimentos que garantiram a vitória de Lula no segundo turno e podem ser eles os grandes aliados para garantir a sustentação do seu novo governo, já que o chamado movimento sindical classista no Brasil vem acumulando derrotas, como a aprovação das reformas trabalhistas e previdenciária, perdendo forças e importância política.

No sistema-mundo moderno/colonial, o capitalismo, como um dos elementos constitutivos do padrão mundial do poder, em crise estrutural, tem suas crises cíclicas ou conjunturais em períodos de tempos cada vez mais curtos. Todavia, o neoliberalismo, como resposta à crise estrutural do capitalismo, não vem funcionando, não se legitima mais, como diz Nancy Fraser. O título de um dos mais recentes livros de Ladislau Dowbor resume bem o atual momento do capitalismo: “Era do capital improdutivo. A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta”. Se não diz tudo, diz muito. Afirma Ladislau (2017):

O ponto fundamental é que não é falta de recursos que gera a dificuldades atuais, mas a sua apropriação por corporações financeiras que os usam para especular em vez de investir. O sistema financeiro passou a usar e drenar o sistema produtivo, em vez de dinamizá-lo (LADISLAU, 2017, 32).

O neoliberalismo, como única razão do mundo, está levando a maioria da população mundial e toda a diversidade de vida do planeta para um beco sem saída e no qual é impossível girar e fazer o caminho para algum lugar de volta. O neodesenvolvimentismo, que pensa poder governar oferecendo proteção do Estado sem reformas estruturais anticapitalistas e com amplo arco de alianças com setores do mercado, não tem futuro. A estratégia eleitoral para se reconduzir ao governo por meio da opção de escolher o mal menor ou a candidatura menos pior é frágil e de curto fôlego, não tem dono, pode ser usado pelo adversário logo nas eleições seguintes.

Todavia, a composição e dinâmica social é muito mais complexa entre a população dominada, explorada e enganada, mas resistente, há múltiplas formas de articulações e projetos sociais, criatividades e soluções que vão sendo experimentadas no cotidiano e que podem ser exemplos de políticas públicas, como a experiência em todo o país dos bancos populares e das moedas sociais, cujo centro de irradiação é o Banco Palmas, na periferia de Fortaleza.

Entre os condenados da terra, existem os que não se envergam à submissão, os que não se deixam levar pelas falácias dos que se entregaram ao jogo da disputa do poder pelo poder; são mulheres, homens, negros, indígenas, ribeirinhos, gente das favelas, do litoral e da periferia que pensam, que têm memória histórica e sabem que outros mundos são possíveis, um mundo pluriversal e transmoderno.

Os que não se entregam, atuam nas margens contra todos os componentes do padrão mundial de poder, não separam classe, raça, gênero e território, são eles que, ao longo do século XXI, vêm compondo a lista dos que tombam mortos no enfretamento ao sistema financeiro rentista/extrativista na América Latina, reprodutor do racismo estrutural e ambiental, do patriarcalismo, do feminicidio, da heteronormatividade e da destruição de todas as formas de vida na natureza. É para estes, os condenados da terra, os ninguéns, que a História atual do Brasil pode estar abrindo um clarão para o surgimento de um partido outro, um partido movimento que tenha um horizonte político emancipatório como orientador de suas lutas cotidianas e desafios conjunturais. Um partido outro, transmoderno e pluriversal.

1 ANDERSON, Kevin B. Mar nas Margens. Nacionalismo, etnia e sociedades não ocidentais. Boitempo, São Paulo, 2019.

2 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Editora Boitempo, 2020.

3 MUSTO, Marcello. O velho Marx. Uma biografia de seus últimos anos [1881-1883]. São Paulo: Editora Boitempo, 2018.

4 SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império Cognitivo. A afirmação das epistemologias do Sul. , Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

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