Os pioneiros pelo direito humano à água na ONU
Há 10 anos, um padre revolucionário, um embaixador e uma ativista conseguiram algo que parecia impossível: órgão reconhecia a urgência em desmercantilizar a água. Brasil poderia repetir o exemplo de criatividade política?
Publicado 04/12/2020 às 18:51 - Atualizado 04/12/2020 às 19:00
No último mês de julho, o mundo celebrou o décimo aniversário da aprovação, na Organização das Nações Unidas (ONU), da Resolução A/RES/64/292, que declara a água como um direito humano. Pode parecer óbvio, mas até aquele momento este líquido que é essencial para nos manter vivos não constava como um direito humano em um documento com uma representação tão numerosa de países signatários (não está na Declaração dos Direitos Humanos, por exemplo). O que muitos não sabem é que três pessoas foram fundamentais para que este fato fosse concretizado. Obviamente, há outras que lutaram por décadas por esta causa, mas aqui citarei apenas estas três como uma forma de reconhecimento pela resistência frente aos grandes interesses econômicos que cercam a privatização da água em nossos dias.
A primeira destas pessoas foi o sacerdote católico americano-nicaraguense Miguel d’Escoto (1933-2017). Padre da Sociedade Missionária de Maryknoll e Ministro das Relações Exteriores da Nicarágua durante o Governo Revolucionário Sandinista nos anos 1980, d’Escoto esteve à frente da Presidência da ONU entre setembro 2008 e setembro de 2009. Ele foi indicado pelo Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, no revezamento anual para aquele cargo que contempla todos os países-membros quando a vaga coube àquele país da América Central. Durante o seu mandato, d’Escoto colocou a questão da água como uma das prioridades na agenda da ONU. Um dos seus primeiros atos foi formar um Conselho para auxiliá-lo em diversos assuntos e que contava com a ativista canadense Maude Barlow como uma das pessoas convidadas para ser uma de suas conselheiras. Ela o ajudou a entender melhor a questão da água, já que vinha denunciando os conflitos que envolvem a sua privatização e suas consequências para as pessoas mais pobres em várias partes do mundo.
No livro Água – futuro azul. Como proteger a água potável para o futuro das pessoas e do planeta para sempre, publicado em 2015, Barlow relata como foi crucial ter d’Escoto como Presidente da ONU para chegar até a aprovação da Resolução A/RES/64/292. Foi ele quem possibilitou que Barlow e o teólogo brasileiro Leonardo Boff falassem nas Nações Unidas no dia 22 de abril de 2009, quando se celebra o Dia da Terra, sobre questões ambientais. Na sua fala, a canadense defendeu a água como um direito humano e pediu que este direito fosse reconhecido pelos países membros da Organização das Nações Unidas. Miguel d’Escoto também apoiou Barlow na busca por aliados dentro da ONU, o que fez com que ela entrasse em contato com Pablo Solón.
Apontado para ser o Embaixador da Bolívia na ONU pelo então Presidente Evo Morales, Solón foi crucial ao abraçar a empreitada pela causa da água como um direito humano. A Bolívia já vinha desafiando os defensores da água como um produto e foi este país que apresentou o projeto de resolução sobre a água como um direito humano à ONU, através de Solón, em junho de 2010. As oposições e pressões contra o projeto foram muitas, mas Barlow conta em seu livro que Solón não cedeu a elas e persistiu com o texto original. Os interesses econômicos que influenciam governos quando o assunto é referente à água, hoje chamada de “ouro azul”, mostraram as suas garras na tentativa de desfigurar a Resolução, mas não adiantou e, em julho de 2010, a Resolução A/RES/64/292 foi aprovada em Assembleia Geral com o resultado de 122 países a favor, 41 abstenções e 29 ausências. A grande surpresa foi que nenhum país votou contra, o que mostra a força da resistência e da estratégia correta para o embate com os opositores dos que defenderam esta causa. A vitória também demonstra a importância de chegar a postos-chave do poder institucional por mais manipuladas que as instituições possam ser, pois sem o Padre d´Descoto na Presidência da Organização das Nações Unidas, Maude Barlow como sua Conselheira e Pablo Solón como o Embaixador da Bolívia na ONU, dificilmente teríamos esta conquista.
A importância do reconhecimento da água como um direito humano é vital para que ela não seja negada com base na capacidade de pagamento monetário dos seus consumidores. Segundo afirma Barlow (2015, p.32), “Você não pode negociar ou vender um direito humano ou negá-lo para alguém com base em sua incapacidade de pagar por ele.” Sendo reconhecida como um direito, há a obrigação por parte dos governos de assegurar o acesso à água para toda a população. Esse reconhecimento também descaracteriza a água como um produto de mercado, algo defendido pelo Banco Mundial e o Fórum Mundial da Água, para citar dois grandes incentivadores da sua mercantilização e privatização. É preciso sempre destacar que negando o direito à água, são negados vários outros direitos como a saúde, a higiene e a comida digna, para lembrar apenas alguns.
De acordo com a Unicef, uma em cada dez pessoas no planeta não tem acesso à água de forma adequada. Esse fato pode envolver insuficiência na quantidade e/ou qualidade da água, já que não basta ter a tubulação passando na rua, mas é necessário que a água chegue em boa qualidade, de forma constante e com o valor da taxa de serviço acessível para os mais pobres. Privatizada isso não acontecerá. A falta de acesso à água leva muitas pessoas a contraírem doenças que podem levá-las à morte. Por causa disso, muitos grupos vêm pressionando os governos para que providenciem maneiras de facilitar o seu acesso usando como instrumento de pressão a Resolução A/RES/64/292.
Embora o Brasil passe por um processo de privatização de sua riqueza hídrica e o Mercado da Água avance cada vez mais em nosso país, a luta de Miguel d´Escoto, Maude Blaude e Pablo Solón nos lembra que não se vence uma batalha, por mais justa que seja a causa, de forma rápida. É preciso persistência, colaboração entre os que pensam de forma semelhante, estratégias de combate criativas e, principalmente, vislumbrar a vitória para além do fato imediato e concreto, projetando-a como algo que alimente a utopia para os embates enfrentados por todas as pessoas que se sentem oprimidas.
Bibliografia
BARLOW, Maude. Água – futuro azul. Como proteger a água potável para o futuro das essoas e do planeta para sempre. São Paulo: M. Books. 2015
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comunicado aos Media. Acessível em