Os passos cruciais a um novo Estado pós-neoliberal

Apostar na juventude para sonhar um novo Brasil. Desmontar entulhos autoritários do rentismo. Instituir Renda Básica e Novo Serviço Público. Em diálogo com Conceição Tavares, tarefas inadiáveis para reconstruir um país devastado

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Escrevo este texto motivado e inspirado, dentre outras coisas, por duas leituras recentes: o artigo “A democracia Agoniza: Porque não mudar de estratégia?” de Tatiana Roque e Josué Medeiros, publicado no Le Monde Diplomatique em 01/03/2021 e “Restaurar o Estado é preciso”, de Maria da Conceição Tavares, publicado no site A terra é Redonda em 14/01/2021. Ao resumir brevemente os textos, sirvo-me das suas ideias-força para apresentar algumas reflexões, em torno daquilo que eu considero desafios para uma esquerda brasileira que pretenda tirar o país da areia movediça que estamos e avançar.

Maria da Conceição Tavares, reconhecendo a difícil situação do país como a mais grave crise de sua história, considera que as saídas ocorrerão a partir das novas gerações. Em sua visão, a juventude deve ser estimulada a ter suas “ilusões”, ou seja “(…) a profissão de fé que é possível, sim, interferir no status quo vigente (…)”. Por isso, a economista e intelectual conclama a necessidade de convocação da juventude para agir.

Ao mesmo tempo, Tavares assevera que, por não sermos uma democracia espontânea, as grandes mudanças somente ocorrem com apoio do Estado. Para ela “(…) qualquer projeto de costura dos tecidos do país passa obrigatoriamente pela restauração do Estado”, tal como ocorreu, por exemplo, no final da década de 30, quando da criação do Departamento Administrativo do Serviço Público. Com o DASP, houve mudanças significativas e de grande impacto na sociedade, inclusive antagonizando com o forte clientelismo e o patrimonialismo da época.

Tavares defende que o Estado no Brasil tem alta capacidade técnica de produzir políticas públicas transformadoras. Para ela, diante da situação que vivemos, cujos sintomas são de barbárie, “precisamos de uma ação restauradora”, pois o último período foi de destruição do Estado. Para promover o desenvolvimento do país, somente com um Estado forte. A economista defende ainda que a esquerda no país empunhe a bandeira da renda mínima, mas para efetivar essa política, a partir da restauração do Estado, somente se derrotar o neoliberalismo, “eutanasiando” o rentismo.

Josué Medeiros e Tatiana Roque apresentam uma discussão em que centralizam a democracia como eixo das reflexões e das estratégias da esquerda. Nessa esteira, defendem a imediata construção de uma frente ampla, para mobilizações sociais prementes, e uma frente de esquerda eleitoral para 2022. Tais iniciativas teriam a função de alavancar a superação da crise da democracia pela qual passamos. A frente ampla para impedir a regressão democrática em curso, e a Frente de esquerda, para viabilizar a vitória eleitoral contra o bolsonarismo e avançar.

De um modo geral, os argumentos apresentados por Medeiros e Roque encontraram em mim estreita concordância. Porém, a democracia como eixo principal das reflexões e estratégias da esquerda me parece insuficiente para cumprir o papel que muito bem descreveram, ou seja, defender as instituições democráticas que temos, derrotar o bolsonarismo eleitoralmente e criar condições para “voltar a imaginar e produzir uma democracia que seja, de fato, mais radical do que as experiências liberais do último século”.

Em seguida argumento, de forma incremental às ideias dos textos mencionados, que uma estratégia que coloque a democracia, o Estado e a relação Estado-sociedade no centro tem maior potencial para derrotar o bolsonarismo, recompor uma normalidade democrática e avançar sobre terrenos menos pantanosos, decantando uma base social ainda dispensa.

Definindo pontos de partida

O texto de Maria da Conceição Tavares apresenta três ideias-força muito relevantes e que devemos considerar no processo de debate sobre os rumos da esquerda. A primeira delas é a renovação a partir da juventude, uma juventude que tenha sua capacidade de sonhar e transformar rediviva. Está aqui, a meu ver, um princípio desse processo de retomada que precisamos empreender: qualquer mudança deve ocorrer a partir da renovação, motivada por utopias transformadoras.

Atualmente o desânimo e a descrença abatem muitos de nós e nosso discurso e sonhos tem sido colocado como antigos. Novo agora é ficar rico investindo da bolsa, buscar o primeiro milhão do zero, por esforço próprio, “trabalhando enquanto outros dormem”, tal como diversos canais de vídeo de altíssima audiência e bem remunerados por propagandas, apregoam. É possível que a direita esteja oferecendo à juventude as “ilusões” que Tavares apresenta como necessárias, enquanto a esquerda é posta como algo a se superar e isso esteja colando? A busca da felicidade sempre moveu a sociedade e está, grosso modo, no centro do debate filosófico, religioso e político, isso me faz perguntar, que relações os indivíduos e as massas fazem da sua felicidade com os projetos de país e sociedade em disputa de forma polarizada atualmente no Brasil?

A segunda ideia-força é a necessidade de se restaurar o Estado, que está pautada na avaliação de que o neoliberalismo está nos levando à barbárie. Aqui é preciso que tenhamos cuidado para que não voltemos a propostas realmente anacrônicas, que desconsideram a complexidade da sociedade neste início do século XXI. Muitas transformações ocorreram e uma discussão que envolva o Estado precisa considerá-las, sob pena de circunscrever a discussão a um tempo que não existe mais.

Não se pode negar, porém, outro princípio a partir do que a professora Maria da Conceição Tavares chama a atenção: de que no Brasil não há saltos de desenvolvimento sem um Estado como apoio. Para reforçar a ideia, acrescento a consideração de que, após a ditadura militar, todas as vezes que o povo brasileiro foi chamado a se posicionar para fazer escolhas políticas e foi submetido a um debate efetivo e a uma participação política maior, escolheu “mais Estado” e não o “menos Estado”. A Constituição da República de 1988, a eleição de Lula em 2002 e a eleição de Dilma em 2014 são exemplos que reforçam a minha afirmação de que a população brasileira não quer, e nunca quis o neoliberalismo. Tais fatos reforçam a importância do Estado como eixo de qualquer debate e estratégia para a esquerda.

A Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, não só tem diversos dispositivos que sustentam um modelo de Estado preocupado e ativo com o desenvolvimento e com a previdência social e as políticas de mitigação da desigualdade como também estabelece diversas formas de participação e controle social. A eleição de Lula em 2002, sua reeleição em 2006 e a eleição de Dilma em 2010, na esteira da aprovação de Lula, sempre contra os candidatos que buscaram implementar o neoliberalismo nos anos 90, foram uma resposta do povo ao modelo em que o Estado era cada vez mais retirado das suas funções políticas, sociais e econômicas em favor da maioria da população e colocado cada vez mais a favor de setores econômicos monopolistas, sobretudo do ramo latifundiário e financeiro. Nas eleições de 2014, uma candidatura de Dilma já muito desgastada foi novamente vitoriosa, justamente porque encarnava o símbolo de um modelo de desenvolvimento diferente daquele que o povo viveu nos anos 1990. Mais uma vez o povo escolheu “mais Estado” e rechaçou o “Estado Mínimo”.

É importante destacar que em todo esse período, desde a redemocratização, e até antes, a mídia e outros aparelhos ideológicos e de hegemonia das elites no Brasil, nunca deixaram de atacar o Estado e propagandear o mercado. Além da disputa política franca, no parlamento, há forte campanha de mídia travestida de jornalismo em favor do “Estado mínimo”. Também forjou-se, com apoio e validação de pesquisas científicas realizadas nas universidades, a Administração Pública Gerencial. Essa teoria da administração pública sustenta, a partir de uma racionalidade tecnocrata, a deterioração do Estado por dentro, empresariando desde a mais simples repartição, até as grandes secretarias governamentais e empresas públicas.

A terceira e última ideia-força que destacamos em Tavares é a proposição de uma política pública que sintetize toda o movimento de restauração do Estado. Essa política, embora não esteja literalmente presente no texto de Medeiros e Roque, sabemos que é faz parte não só de suas ideias, mas também da militância. A ideia de uma renda básica ou mínima, é uma ideia fundante desse novo Estado, pois que, embora o verbo usado por Tavares seja restaurar, considero que o processo de restauração do Estado diz respeito à restauração da “presença” do Estado voltado para o povo, constituindo-se, na prática, como um processo da construção de um novo Estado pós-neoliberal.

Qualificar a democracia

É certo que sem derrotar eleitoralmente Bolsonaro e politicamente o bolsonarismo, não será possível superar a política reativa e o debate rebaixado. Por isso as frentes ampla e de esquerda são necessárias desde já. Elas têm muito mais chance de promover um fenômeno tal como ocorreu, por exemplo, na Argentina, recolocando um governo de centro-esquerda e afastando a ortodoxia neoliberal da presidência; e impedir o que houve na Bolívia, em que uma vitória eleitoral foi desrespeitada e um golpe dado através das forças de segurança policiais.

A ideia de democracia, porém, está apropriada pela direita e pelo bolsonarismo no Brasil hoje, com fortes apelos simbólicos à liberdade. As polarizações em relação a vacina e também à política de confinamento são exemplos desse fenômeno. A democracia tem sido comum e massivamente associada ao individualismo e a uma liberdade egoísta. Esses valores, associados a outros da mesma estirpe, levados ao limite, promoverão o completo rompimento do pacto social estabelecido pela Constituição de 1998 e levarão a sociedade para uma situação de barbárie, cujos sintomas já sentimos, como bem lembrou Tavares.

Precisamos qualificar a democracia de modo que todos nós compreendamos que foram estabelecidos novos parâmetros, a partir de uma concepção de Estado, que produza um determinado aparelho de Estado sustentado a partir de novas relações entre Estado e sociedade, essencialmente democráticas, participativas e desconcentradas. Penso que algumas questões precisam ser desde já trabalhadas na luta, ao mesmo tempo e no interior das frentes ampla e de esquerda.

É praticamente lugar-comum as associações simplistas entre o Estado e o autoritarismo, a corrupção e ineficiência. Da mesma forma, em contradição, associa-se a ideia de Estado mínimo com democracia, liberdade, honestidade e eficiência. Estranhamente para muitos de nós, mas absurdamente disseminada, é a ideia que define comunismo e nazismo como “mesma coisa”, simplesmente por serem governos em que o Estado controla a economia e não há livre mercado. É muito comum ver pessoas defenderem privatizações pelo simples fato de acharem, sem uma experiência efetiva em escala, que empresas privadas são mais capazes de prestar serviços que o Estado presta através de suas empresas e instituições. O Correio, a Petrobrás e a Eletrobrás são as bolas da vez! Em uma conversa social, vai ser difícil encontrar quem defenda a escola pública em detrimento da escola privada pois, no senso comum, a segunda sempre “será melhor”.

Os exemplos que dei, acredito, já são suficientes para compreendermos a necessidade vital de refutar essas associações. Isso não se faz apenas com a democracia no centro das reflexões e estratégias da esquerda, pois o conceito de democracia não abarca todas essas dimensões a partir da nossa perspectiva. Como fazer isso? Acredito que tal questão merece um texto específico, e um debate posterior, porém cabe aqui dizer, por exemplo, que não é possível defender a universidade pública como instituição social, para usar um termo cunhado por Marilena Chauí, usando como parâmetro a qualidade aferida por rankings internacionais. A consequência é o reforço das associações simplistas que queremos refutar.

Desconcentrar o poder

Outra questão importante é que precisamos avançar na tarefa de desmontar os entulhos autoritários deixado pelas diversas ditaduras no Brasil. Não somente com ações parlamentares, mas também no campo simbólico, com discurso condensado e apelo popular. O Brasil, embora seja uma federação pautada em um pacto federativo, ainda é uma república muito centralizada. Há muito poder e recursos centralizados na união, assim como nas mãos dos governadores e prefeitos. Essa centralização favorece o autoritarismo.

Não é só o executivo que sofre de uma centralização absurda, o judiciário também. Há muito poder concentrado nos juízes e promotores, que são poucos em quantidade e praticamente imunes à sociedade, fazem o que querem, de forma autocrática e depois justificam ou nem isso. Associados a uma imprensa corporativa, mancham reputações e promovem agitação e propaganda em prol de seus projetos políticos, os quais, no fim, sempre caem na manutenção e ampliação de privilégios, mesmo que o povo se lasque, traço característico da elite brasileira desde o império.

Observemos como está sendo difícil trabalhar com um presidente que atrapalha a ação de governadores e prefeitos que desejam ser mais responsáveis diante da pandemia. Da mesma forma como tem sido terrível observar o uso de dispositivos legais, como a lei de segurança nacional, para intimidar desafetos e críticos de redes sociais. Termino essa exemplificação sobre a concentração de poder, lembrando do decreto da participação social que a Dilma publicou em 2015 e que foi violentamente criticado e associado ao “bolivarianismo”, para depois ser derrubado no Congresso.

Mais variáveis na equação e um multiplicador

A democracia deve estar no centro da reflexão e estratégias da esquerda, mas também o Estado e a sua relação com a sociedade, afinal não há sociedade moderna sem a mediação do Estado e, nos tempos atuais, apresentam como alternativa a essa mediação o livre-mercado ou o autoritarismo. Nesse ritmo, sabemos o que nos espera por experiência histórica e contemporânea: a barbárie!

A restauração do Estado e a construção de um aparelho estatal que tenha como base a participação, o controle social e a desconcentração de poderes é tão importante quanto a democracia, pois a qualifica e cria massa crítica para avançar efetivamente. Através desta triangulação, creio ser possível debater pautas espinhosas para a esquerda hoje, como por exemplo, segurança pública. Como seria a segurança pública em um Estado pós-neoliberal? Acredito que fazer questões como essa organiza, inclusive no âmbito da frente de esquerda e da frente ampla, pois as forças de segurança estão no centro das ameaças autoritárias à democracia pálida vigente.

Por fim, penso que isso tudo nos coloca um outro desafio, que deve ocorrer, a meu ver, junto com a construção das frentes ampla e de esquerda: o desenvolvimento de uma teoria da administração pública que reivindique a tradição de ações como o orçamento participativo, por exemplo, mas que também seja capaz de superar o gerencialismo, atualmente hegemônico e suas alternativas liberais, como o Novo Serviço Público. Atualmente os governos de esquerda tem muita dificuldade para superar em suas gestões o tecnicismo gerencialista e suas adjacências. Um Estado gerencial, nunca será um Estado democrático de fato.

Trata-se de uma medida estrategicamente importante, pois supera nossa ação reativa e negativa. O desenvolvimento de uma nova teoria da administração pública para esse novo aparelho de Estado, com certeza ajuda a sintetizar as reflexões da esquerda e a organizar as ações da inteligência de esquerda no Serviço Público. Dessa forma, parafraseando Lenin, constituiríamos uma teoria “revolucionária” para uma prática “revolucionária”, cuja práxis poderá nos levar à vitória final.

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