Mercosul, 30 anos: lições e desafios à descolonização

Um balanço no aniversário de três décadas da organização. Do sonho de cooperação sul-americana, sem a ingerência dos EUA, aos ditames da OMC. Por que enfrentar onda neoliberal é chance para romper imobilidade do bloco

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Por Jorge Marchini, com tradução da Revista Opera

Um aniversário que completa uma década sempre pode ser uma oportunidade ou uma desculpa para o balanço e reflexão da evolução, dos resultados e perspectivas dos sonhos e projetos de uma sociedade. Por isso, pode ser particularmente oportuno fazer um balanço do tão mencionado Mercosul três décadas após a assinatura do seu acordo constitutivo pelos governos da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. No seu ponto de partida, o denominado Tratado de Assunção afirmou de forma muito ambiciosa que a integração era “condição fundamental para acelerar seus processos de desenvolvimento econômico com justiça social”.

Com tal perspectiva, esse documento referia-se explicitamente aos requisitos dos países participantes de: a) alcançar a completa liberalização comercial e a eliminação de restrições não-tarifárias entre os países-membros em apenas quatro anos; b) estabelecer uma tarifa externa comum e adotar uma política comercial comum em relação a países terceiros; c) coordenar políticas macroeconômicas e setoriais; e d) ter o compromisso de harmonizar legislações.

É certo que desde a última década do século passado muita história se passou, não só na região, mas também no mundo. O processo de integração não tem sido linear e seus resultados não são os esperados. Isso pode ser verificado não apenas nas evidências dos números estatísticos que refletem a limitada rede regional produtiva, comercial e social, mas também na mudança da consideração e das expectativas das próprias sociedades.

Estas passaram de uma elevada euforia esperançosa inicial a um ceticismo marcado e justificado, sobretudo porque se notava – sem muito esforço analítico, mas pelas vivências cotidianas – que o prometido e repetidamente frustrado “desenvolvimento econômico com justiça social” não apenas não foi conquistado, como tem se tornado distante. 

Cabe perguntar, então, se o Mercosul cumpriu ou não seus objetivos. Quais são as razões para suas limitações? O velho e lógico sonho da integração regional e complementar realista ainda é viável, ou já se tornou apenas uma referência ideal, mas inalcançável no marco dos efeitos e incógnitas colocadas pelas enormes crises e reestruturações a nível mundial que se percebem de maneira paralela à pandemia?

A história ensina

A concepção de unidade regional se manifestou desde o começo do processo emancipatório da América Latina. Inicialmente, esteve vinculada de maneira concreta pela necessidade comum de defender o processo independentista da contraofensiva militar espanhola, como pela forte referência do modelo federal no norte dos Estados Unidos, primeiro processo de ruptura colonial no continente, a partir de 1776. 

Já em um novo quadro histórico, e com uma perspectiva muito diferente, a ideia de unidade continental reapareceu no final do século XIX, através da concepção de “panamericanismo”. Seus notáveis elementos distintivos foram três: 1) a inclusão de todos os países do continente, com os EUA desempenhando um papel principal; 2) a importância dos aspectos políticos e militares; e 3) o quadro da disputa que se desenvolveu entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos pela hegemonia econômica na região. 

O “pan-americanismo” foi invocado para dar origem a recorrentes ocupações militares dos EUA, justificadas na extensão marcada da Doutrina Monroe sobre o “direito” de intervir em assuntos de outros países em defesa dos interesses de cidadãos estadunidenses, no corolário emitido pelo presidente Theodore Roosevelt com sua política explícita do “Big Stick”. 

Em meados da década de 50 do século passado, tendo como pano de fundo a amarga decepção que caracterizou as relações entre os governos da América Latina e dos Estados Unidos, também ganhou relevo a situação periférica dos países latino-americanos na economia mundial. 

Desta forma, ganhou impulso a proposta sobre a necessidade de políticas ativas e de planificação pública para superar a distância do desenvolvimento em relação aos países centrais, que incentivou o lançamento, em 1960, de uma iniciativa de integração regional própria para criar uma área de livre comércio – a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), que teve continuidade com menor força através da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) a partir de 1980.

Foi um passo essencialmente diferente em relação às tentativas “pan-americanistas” anteriores, por não incluir a participação dos Estados Unidos e Canadá, os países mais desenvolvidos da América do Norte.

Na década de 90, o desmoronamento da União Soviética e das economias planificadas do Leste Europeu significou uma enorme mudança geopolítica mundial, criando um marco ideológico propício para justificar um processo de globalização indiferenciada Sul-Norte, ou seja, sem considerar as diferenças nos graus de desenvolvimento e/ou competitividade, através de tratados de livre comércio (TLCs) e acordos de proteção de investimentos (TBIs).

Em uma conjuntura de crises recorrentes, a mudança de ciclo – habitualmente referido como “onda neoliberal” – foi então justificada como um novo “regionalismo aberto”, em sintonia com os paradigmas anti-intervencionistas de desregulação, privatização e abertura econômica e comercial impulsionados pelos organismos multilaterais, empresas multinacionais globalizadas e think tanks

Sua característica essencial foi impulsionar uma ampla e rápida abertura comercial, sob a suposição de que a integração aberta à economia mundial seria o caminho mais curto e o único viável para a modernização e a superação do atraso histórico.

O lançamento do Mercosul em 1991 levantou uma perspectiva dual. Por um lado, estabeleceu a prioridade e as vantagens da unificação regional independente, tomando como base os avanços alcançados no marco da ALALC/ALADI, da Comunidade Andina e com as posteriores UNASUL e CELAC. Por outro, de forma simultânea, definiu-se apenas como uma instância circunstancial de articulação regional em linha com a aspiração de abertura à concorrência global de um “regionalismo aberto” no contexto do surgimento da Organização Mundial do Comércio (OMC). 

Aprender e fazer

De qualquer forma, o balanço do Mercosul deve ser concebido pela influência de ambas perspectivas. É assim que reconhecendo a existência de distintas visões e posicionamentos de distintos governos com orientações políticas diferenciadas, é possível e necessário analisar objetivos, estratégias e reconhecer o caminho percorrido nas três décadas evitando meros impressionismos. A realização de um balanço desse caminho não deve ser para especular ou discursar sobre “quão bom teria sido”, mas para afrontar um período de grandes mudanças e reformulações.

Em todo caso, é essencial seguir reconhecendo a enorme conquista inicial do Mercosul de ter conseguido que os dois maiores países da América do Sul, Argentina e Brasil, passassem a contar com um quadro de referência comum que, embora com enormes limitações, ajudou a superar a permanente disputa, concorrência e hipótese de conflito que caracterizou os seus vínculos durante muitos anos.

Conseguiu-se manter a unidade regional para as negociações com países terceiros, e a abertura comercial estabeleceu um quadro comum de tarifas e normas técnicas e, ainda que de maneira limitada, condições para uma complementação produtiva regional mais ampla, embora essencialmente em setores proeminentes a empresas extrarregionais (automotriz, petroquímica) e, em medida muito menor, locais.

Na atual conjuntura das enormes mudanças propostas para a América Latina, para romper a imobilidade do Mercosul, é necessário partir do reconhecimento da incapacidade da “mão invisível do mercado” para atender de forma ativa, com políticas públicas, questões centrais para um processo equilibrado e propositivo de integração.

Entre elas, a reversão das assimetrias com ações e medidas concretas de apoio e compensação entre países grandes e pequenos (queixa justificada e recorrente do Paraguai e do Uruguai), a necessidade de evitar desvalorizações competitivas e aumento das tendências protecionistas.

Além disso, muito especialmente, estabelecer a necessidade de atuar em conjunto para defender e se opor às maiores pressões e desequilíbrios que atingem particularmente os países periféricos nas suas relações com os países centrais, através de negociações confidenciais de acordos cheios de promessas, mas que, como a experiência evidencia, aprofundam desequilíbrios – como o que se observa atualmente na negociação com a União Europeia.

Da mesma forma, é necessário lutar por posições comuns em temas estratégicos que afetam urgentemente as sociedades: crise financeira, atenção à saúde, direitos sociais, cooperação e reconhecimento educacional, migrações e muitos outros.

O Mercosul está numa encruzilhada e não pode ignorá-la. São tempos de estudo e reflexão para a ação, e não para a mera especulação. 

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