O circo social e suas cores rebeldes e vibrantes

No Peru, a história do La Tarumba, uma escola circense insurgente cujos espetáculos são um convite à reocupação dos espaços públicos. Pela arte, forja a juventude na educação popular. E, nas palhaçadas, faz críticas argutas ao autoritarismo

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Este texto integra o livro Por todos os caminhos — Pontos de Cultura na América Latina, de Célio Turino, lançado neste ano pela Editora Sesc. Vou pode adquiri-lo aqui. O autor, ex-secretaria da Cidadania Cultural do Ministério da Cultura (2004-2010), foi um dos idealizadores do Programa Cultura Viva. Outras Palavras republicará, toda segunda, uma série de textos do livro. Para ler outros textos da série, aqui

No atraente município de Miraflores, Grande Lima, à beira do Pacífico.

As pessoas estavam acostumadas aos cortes de luz e água, não por falta de recursos na família, mas pelas bombas que eram colocadas nas torres de eletricidade. “Em minha casa, havia fitas em todos os vidros das janelas, para que não se quebrassem com o barulho das bombas”,diz Paloma, recordando-se de quando sua mãe tocava violão no apartamento escuro, para que os filhos não se assustassem. Quando Geraldine regressava do colégio, ela sempre voltava com medo de que uma bomba houvesse destruído sua casa. Ao relatarem suas memórias de tempo de infância, elas apontam para a claraboia do edifício sede de La Tarumba: “Houve uma tarde em que essa claraboia tremeu, por causa de um atentado a bomba, ocorrido a várias quadras daqui”.

No Peru, entre meados dos anos 1980 e início dos 1990, as pessoas foram desaprendendo a frequentar espaços públicos, evitando se concentrar em praças, reduzindo as idas a cinemas e shows. No teatro, só drama e tristeza. Foi uma época tensa, em que as pessoas tinham receio de dizer o que pensavam, queimavam livros e desconfiavam de todos. Havia muita delação e desconfiança, seja em relação às forças do governo, seja em relação a radicais de esquerda ou mesmo a vizinhos. A arte e a alegria estavam morrendo aos poucos.

Foi quando um grupo de artistas decidiu fazer arte de modo diferente. Eles queriam que as pessoas rissem, queriam brincar, alegrar, jogar com as crianças. E ocupar as praças, escolas e ruas, na capital e no interior. Isso foi em fevereiro de 1984, quando o Peru começava a viver a pior guerra interna de sua história. Fernando Zevallos, artista que havia corrido o mundo, decide permanecer em seu país e apresenta seu sonho de como enfrentar a guerra: “Uma proposta cênica distinta, que juntasse teatro, circo, música, trabalho corporal e vocal, mas sempre a partir da forma lúdica do circo. Um grupo itinerante, que faria educação a partir do jogo e da arte”.Junto ao grupo, Estela Paredes, filha de comerciantes na cidade de Arequipa, na cordilheira, e que, igualmente, recém voltara dos Estados Unidos e da Itália, onde fora estudar administração, para gerir os negócios da família. Como sempre teve a arte em sua alma, Estela, ao voltar, se reencontra com sua alma e com o palhaço Fernando. O encontro entre os dois artistas forma a base para a criação do grupo La Tarumba;soletrando: La Ta-rum-ba, como se fosse a vibração de uma música.

Tarumba, em espanhol arcaico, quer dizer louco. Uma “loucura criativa, insólita, inovadora”, inspirada no grupo de teatro de bonecos do poeta García Lorca, que se apresentava nas praças das pequenas cidades da Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola. Diz a lenda entre os artistas que, quando Pablo Neruda assistiu à apresentação de Lorca, logo exclamou: “Más lo que hacen és una tarumba!”. Daí surge o nome do grupo. E assim saíram pelo Peru em meio à guerra de guerrilhas, com as armas de que dispunham: sua arte e sua loucura. Fernando recorda:

Desde que fundamos La Tarumba, pensamos no circo e nos palhaços. Mas era uma época em que o “conteúdo” era o mais relevante, por isso, muitas vezes, os outros grupos diziam que estávamos banalizando o teatro por incorporar a linguagem circense. Foi a primeira experiência desse tipo que houve no Peru. Éramos atores e palhaços a entrar no palco. Havia uma aparente ingenuidade, com linguagem muito lúdica; mas tudo o que falávamos era sobre questões muito duras sobre o que estava se passando no país.

Palhaços coloridos percorrendo a terra árida no deserto, chegando aos povoados mais afastados, mais alijados de direitos, em que até falta de cor havia. “Contemplar uns palhaços bem vestidos, bem coloridos, era dizer: ‘Olhe, não se esqueça de que há cores, milhares de matizes nessa vida, no sentir e no pensar’”, reflete Estela. Esses palhaços saíram de Lima, foram para a selva, o deserto e as montanhas, chegaram a pueblos só alcançados em lombo de burro.

Foi algo que se instalou em nós: a importância de trabalhar pelo Peru, com o povo do Peru. Essa convivência com a população determinou que nossos espetáculos, desde os primeiros anos, não somente recolhessem a realidade específica, como a incorporou em nossos personagens, que enfrentavam problemas de saúde, educação, alimentação, moradia.

O primeiro sucesso veio com Cállate Domitila!, uma rã que falava a verdade e interpelava políticos, empresários, militares e terroristas. Mais de mil apresentações, pelo país e no exterior. Até que foram censurados. Mas não esmoreceram e lançaram novo espetáculo: No te calles, Domitila! E a trupe de palhaços seguiu desafiando o poder e o terror. E venceu.

Passados mais de trinta anos da formação do grupo, Estela mantém os mesmos princípios:

A arte é nossa maneira de ver o mundo e transformá-lo. A arte que prefigura a vida mesma. A arte intrinsecamente política e social. Por que não imaginar que construir uma sociedade sana e harmônica seria questão de arte, de produzir beleza? Concebida como uma produção, cuja dimensão política, democrática e inclusiva resulte em uma aceitação humana integral, e não o estado frustrante de uma espécie mutilada no direito de dar rumo ao seu próprio horizonte.

Foram dezenas de espetáculos e milhares de apresentações, com público para além do milhão. Anualmente, mil alunos frequentam aulas de circo no La Tarumba, entre os que podem pagar e os que recebem bolsa integral, a maioria. Em 1994 o grupo conquista sede própria, comprada com recursos advindos de uma turnê pela Europa. Como primeira medida, pintaram árvores na parede cega da casa, cuja parte fora desapropriada e demolida, para dar lugar a uma via expressa na cidade de Lima. Com uma casa colorida, a trupe de palhaços pôde aprofundar seus laboratórios cênicos, oficinas de criação e a conquista do espaço aéreo, como o trapézio. Com sede própria na cidade de Miraflores, próxima ao centro de Lima, buscaram abrir duas outras unidades, uma em bairro na periferia de Lima e outra no interior, em Arequipa, a cidade natal de Estela. Depois, a grande lona de circo, na capital, onde apresentam intensa agenda de espetáculos. E a estrutura para cursos e apresentações estava completa. Em paralelo, foram interagindo e se integrando com diversas redes internacionais, como Arte para Transformação Social, Cultura Viva Comunitária, Circo Social do Mundo e Coalizão para o Direito de Brincar. Passados mais de vinte anos, em 2017, o La Tarumba empregava quarenta pessoas em atividade pedagógica, mais 35 artistas profissionais e cem pessoas trabalhando no circo, nas mais diversas funções. Uma história de êxito, de construção pedagógica inovadora e de autossustentabilidade.

São infinitas as possibilidades do circo. A corporalidade, com o reconhecimento do próprio corpo e o tornar-se seguro de si. O aprender a cair e a voltar; saber cair, saber reconhecer equívocos e corrigi-los; a persistência e a aprendizagem adaptada ao corpo e às potencialidades de cada um. O múltiplo e o uno, o plural e o singular. A confiança, fazendo com que uma pessoa salte sabendo que, do outro lado, haverá alguém para lhe segurar mãos e braços. “Quem não se sente hábil com o corpo é mais inseguro”, diz Paloma Carpio, que começou no La Tarumba com 13 anos de idade. Recordo que conheci Paloma em 2010, na IV Teia dos Pontos de Cultura do Brasil, em Fortaleza, e me lembro bem do encantamento dela ao acompanhar a explosão da cultura brasileira, 5 mil pessoas, de todos os pontos de cultura do país, todos os sons, cores, sentidos, reflexões e pontos de vista. Foi ela quem levou a ideia para o peru, que hoje conta com uma potente rede de pontos de cultura.

Para além das ações diretas, que são muitas, o trabalho do La Tarumba que mantém Escola Profissional de Circo, com inúmeros reconhecimentos, repercutiu na própria recuperação da atividade circense como espetáculo artístico de alto nível, proporcionando que várias outras trupes surgissem, renovando o circo no Peru e na América Latina. A partir do La Tarumba, houve inserção laboral de mais de 1.400 jovens nessa atividade artística, que também pode ser chamada de novo circo, integrando diversas linguagens. O jogo é a linguagem natural da criança, deveria ser também dos adultos, mas estes são educados para reprimir o lúdico e as emoções, e assim vão se formatando, se enquadrando. Com o jogo, a pessoa é vista como ela é, e o valor de cada um se mede pelo esforço, não necessariamente pelo resultado. São processos de afeto, de humanização, de respeito, de capacidade de escutar, de corrigir. E de perceber o outro, auxiliando-o para que se corrija e se exercite na escuta. O que chama atenção no La Tarumba é que, a despeito de todos os êxitos, eles nunca perderam o vínculo de origem, o sentido do circo social, atuando com as populações mais excluídas e nos bairros e pueblos mais afastados.

Assim, os artistas de um sonho louco, enfrentando a guerra com palhaçada, com sua imaginação sem limites, com a emoção à flor da pele, com um amor do tamanho do mundo, visitaram e visitam os bastidores da alma de sua gente. Para eles, a criação circense foi uma forma de respiro. Respiro em tempos sombrios. E seguem oferecendo esse respiro, ao corpo, à mente, ao espaço, aos artistas e aos espectadores. Seguem respirando, porque Arte é respiro. Respiro porque vida. E vida porque, ao enfrentar uma sociedade monstruosamente cínica, com arte, desescondem a loucura e liberam a criação, a solidariedade e a justiça.

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