Os contraespecialistas: a opinião pública em mapas

Em oposição à cobertura midiática que anistia ou “esquece” crimes ambientais de corporações, cientistas lançam cartografias colaborativas, para investigar ecossistemas afetados — e retomar o debate sobre preservação e espaço público

Imagem: Antônio Heleno Caldas Laranjeiras
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Em termo de crimes ambientais o Brasil bateu recorde: vivemos nos últimos cinco anos dois dos maiores casos da história: o rompimento de uma das maiores barragens de rejeitos de minérios do Sudeste, afetando ainda hoje principalmente o Rio Doce; em seguida o derramamento de petróleo no litoral do Nordeste, afetando especialmente o Rio São Francisco.

Muito além do debate sobre a “verdade”, efeito dos debates sobre a desinformação, este texto busca refletir sobre o que é “público”. Entendemos que a “realidade” na sua conceituação materialista, na sua definição simbólica e também na sua compreensão imaginária, aparece no cenário da comunicação humana como uma palavra mais tangente ao avanço de qualquer diálogo sobre o que é “público”. Afinal cada um tem sua verdade, mas a realidade é o que nos é indissociável em nossas contradições.

Opinião, esfera e espaço público

Na “era da conexão”, do acesso ao excesso de informações, da exceção à ascensão de grupos sociais, precisamos saber nos expressar bem sobre o que é a “opinião pública”. Na definição dialética sobre a “Comunicação” em um mundo globalizado, diversos autores e autoras, pensadores contemporâneos e modernos, buscaram refletir ou explicar, mais ou menos, a construção comunicacional da realidade social.

A “opinião pública” pode ser compreendida como sendo a expressão da sociedade em suas ações cotidianas, como a escolha de um canal de TV ou na busca por informações sobre os fatos da sua realidade local ou regional. A “opinião pública” se evidencia na postura de grupos sociais, como em atos de compromisso com o espaço público e com a esfera pública: cuidar da qualidade sua rua deve ser tão importante quanto cuidar da quantidade informação compartilhada nas redes.

Exemplifico: a “esfera pública” dos meios de comunicação pode ser entendida como resultante do ato de compartilhar um áudio sobre o que viu na TV ou na produção de publicações via bots. A partir desse gesto individual em rede temos exemplos das “verdades pessoais” e “verdades artificiais” que influenciam as pessoas sem comprovada “realidade dos fatos” que estão sendo circulados na forma de informação em multimídias, por humanos no Whatsapp e por robôs no Twitter, por exemplo.

O que vem sendo evidenciado com as operações de cartografias de contraespecialistas é a necessidade de conexão 1) pela informação com qualidade sobre efeitos de crimes ambientais, 2) para apuração da quantidade dos fatos e 3) por uma amplificação da audiência na sociedade no contexto do “espaço público”, ou seja, lugares, áreas ou zonas geográficas que são livre da propriedade de uma pessoa física ou jurídica, no entanto muitas vezes essa norma jurídica não se cumpre.

Narrativas sobre os crimes ambientais

As mineradoras e petrolíferas são os setores da indústria que mais poluem espaços públicos pelo mundo, são as que mais espetacularizam a esfera pública por onde passam com seus projetos de “compensação” pela perda de bens materiais e imateriais que são inalienáveis aos territórios; ou seja, perdas irreparáveis para uma nação.

O portal Rios e Ruas, com sede em São Paulo, realizou o mapeamento intitulado “Caminho dos rejeitos da SAMARCO” e disponibilizou online para reprodução em outros sites. Em cinco anos o mapa, uma ação do geógrafo e cofundador do projeto, Luiz de Campos Jr., contabiliza 21 mil acessos e camadas diversas de dados oficiais do governo e da mídia.

As legendas demonstram diversos pontos, áreas e zonas envolvidas no crime ambiental como Rio Gualaxo do Norte, Rio do Carmo, Rio Piranga, Rio Doce até sua foz, inclusive no Oceano Atlântico, destino das águas fluviais brasileiras e das substâncias tóxicas que o rompimento da barragem liberou nestes espaços públicos nacionais e patrimônios naturais globais.

O Rios e Ruas foi criado em 2010 com a visão de aliar contraespecialistas em torno de uma metodologia que tem como missão envolver pesquisas, laboratórios, expedições, consultorias e oficinas por espaços públicos. A atuação envolve diversas experiências além do caso do Rio Doce.

O portal InfoSãoFrancisco, com sede em Sergipe, realizou o mapeamento intitulado “MonitOleamento” e cruzou informações de jornalistas, cientistas e governos de nove estados do Nordeste (cross-checking) para mitigar os riscos após o derramamento de óleo nas praias de nove estados da região.

A iniciativa colaborativa do professor e pesquisador Antônio Laranjeira, jornalista colaborador do portal, foi reconhecida como inovação social pela NASA o que repercutiu no noticiário das televisões locais, como a TV Bahia, emissora filiada da TV Globo. Com isso o mapa já foi acessado por mais de 54 mil pessoas em um ano, com destaque para um detalhe sobre a circulação: a audiência na Web cresceu após o tema sair da cobertura da TV.

O InfoSãoFrancisco foi criado, em 2019, como um projeto-filho que nasceu com base na apropriação da tecnologia social JEO, uma metodologia de geojornalismo produzida a partir da experiência do portal InfoAmazonia, o projeto-mãe criado em 2012, como inovação jornalística brasileira e apoiador institucional do projeto nordestino.

Contraespecialistas (ou cientistas engajados)

As cartografias de contraespecialistas, como o caso da reportagem do portal InfoSãoFrancisco, desvelam um olhar sobre os fatos que estão ocultos na produção de notícias pelos meios de comunicação de massa, como a televisão.

De modo online o cidadão, pesquisador, professor ou gestor público pode acessar estes dados e garantir a memória dos crimes ambientais graças ao acesso e reprodução ilimitada dos mapas online. Este tipo de notícia pode ser classificado triplamente como informação de 1) relevância pública, 2) interesse público e 3) repercussão pública.

Isso porque as chamadas “cartografias digitais colaborativas” produzem documentos e também servem como ferramentas. Esses mapas online comprovam as vidas humanas perdidas e os ecossistemas afetados e permite que tenhamos informação e aparato para visualizar e denunciar qualquer crime ambiental.

O conceito de “contraespecialista” foi revisitado pela comunicóloga Sonia Aguiar, em seu recente artigo A competência transgressora dos contraespecialistas sobre o debate profícuo e profundo sobre o termo em oposição dialética ao conceito de “especialista”, o que atravessa épocas distintas no pensamento científico. A autora demonstra como os processos sociais regionalizados de construção do conhecimento com base na “ética do desvendamento” e formatam a concepção aqui adotada de “cartografias de contraespecialistas”.

Os contraespecialistas, por definição, atuam em redes reconhecíveis (organizações, institutos, etc.) e são responsáveis por pesquisas e ações que utilizam do método científico e combatem efetivamente os discursos de especialistas, especialmente de órgãos públicos ligados com interesses privados de empresas petrolíferas e mineradoras.

Há excelentes artigos internacionais disponibilizados por cientistas engajados nas reflexões sobre metodologias cartográficas para contraespecialistas e sobre bancos de dados públicos para criadores ou usuários informações socioambientais.

De certo que o “espaço público”, um conceito dialético tão caro às teorias e práticas das Ciências Humanas e Sociais, é uma definição fenomenológica, é a dimensão em que primeiro estamos e na qual primeira somos enquanto corpos no planeta respondendo localmente à questão: “o que é o público?”.

Rios, praias e mares de todo o mundo não devem pertencer a ninguém específico, pois são territórios em fluxo por essência (da natureza), isentos da alienação à propriedade, livres para circular e nutrir a vida.

A privatização do espaço público está assentada em uma espetacularização da “esfera pública” através dos meios de comunicação de massa sobre a necessidade de um desenvolvimento que muitas vezes é sustentável em último nível.

Somente a banalização do conhecimento pelos contraespecialistas, o engajamento da mídia com essas informações e a consciência de uma geração da sociedade para uma comunicação ativa em defesa da natureza poderão evitar que novos mapas como esse sejam necessários contra próximos crimes ambientais no Brasil ou no mundo.

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