Orwell e Huxley previram nosso admirável presente?

Um viu o adestramento social hedonista, num mundo instagramável. Outro, servidão permanente em troca de algum conforto no final do mês. Na tecnologia e precarização, ambos arrostaram o novo poder: nenhum pastor e um só rebanho!

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Por Aleksandra Sowa, no Nuso | Tradução: Rôney Rodrigues

O Zaratustra de Friedrich Nietzsche fez, como advertência, um retrato do último ser humano: “‘Inventamos a felicidade’, dizem os últimos homens e piscam”. O último homem conseguiu tudo, ele sujeitou seu entorno. Ele vive confortavelmente uma vida cheia de conforto: “Abandonou as regiões onde era difícil de se viver”, diz ele. “As pessoas têm seus pequenos prazeres no dia e seu pequeno prazer para a noite: mas honra a saúde”. Além disso, “um pouco de veneno de vez em quando: isso produz sonhos agradáveis. E muito veneno ao final, para ter uma morte agradável”. Os últimos homens não precisam de mais para vegetar confortavelmente no crepúsculo da civilização. “Chegou a hora do homem mais desprezível, aquele incapaz de desprezar a si mesmo”, disse Zaratustra.

O último Homem de Nietzsche pisca. Enquanto Aldous Huxley não pisca quando prevê as consequências da futura industrialização (ou melhor, da tecnologia e da ciência avançadas) e subsume os pecados do presente, sua visão de mundo em 2541, que encontramos em Admirável Mundo Novo, é um aviso e uma distopia , mas acima de tudo é uma sátira que vai ao cerne da ideia do entretenimento e da sociedade de consumo. Admirável Mundo Novo de Huxley e 1984 de George Orwell: duas visões do futuro e comentários críticos sobre o presente que apareceram quase ao mesmo tempo e não poderiam ser tão diferentes.

George Orwell escreveu sua distopia 1984, entre 1946 e 1948, e a publicou em 1949. Sua visão de mundo é a de uma sociedade de vigilância totalitária estritamente governada e regulamentada em um mundo que está em perpétuo estado de guerra. Os habitantes da Oceania veem suas necessidades básicas atendidas, como alimentação, trabalho ou moradia. Uma elite não identificada do Partido dirige os acontecimentos; a Polícia do Pensamento vigia as massas e nunca se sabe quando alguém está sendo observado.

O preço pago por algumas comodidades é o conformismo e o abandono de objetivos e liberdades pessoais ou individuais em favor de objetivos coletivos e superiores: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. A ignorância é a força”. Quem se submete, pertence. Quem não se submete… Bem, as pessoas desaparecem, às vezes observa o protagonista principal, e às vezes o dissidente Winston Smith.

A doutrinação é essencial para que a sociedade de vigilância distópica funcione na ditadura totalitária de 1984. Mas, ao contrário da distopia das Ilhas Britânicas do século vinte e cinco de Huxley, a manipulação mental não é alcançada por meios suaves, como condicionamento subconsciente, sugestão ou hipnose do sonho, mas sim por meio de tortura e violência. A reeducação de Winston Smith após sua breve incursão no inconformismo é brutal, seu retorno ao conformismo forçado é pela dor e mutilação.

No entanto, ambos os tipos de doutrinação parecem ser altamente eficazes. Huxley percebeu que sua visão era mais realista e lógica do que ele pensava originalmente: a sociedade de castas de Alfas, Betas ou Epsilons era baseada na manipulação biológica. Ele estava convencido de que, no futuro, o condicionamento mental das crianças teria um papel essencial no desenvolvimento da sociedade de consumo.

Não é apenas que a tecnologia e os desenvolvimentos atuais afetam nossa visão do futuro, mas nossa ideia de futuro também influencia a maneira como nos comportamos hoje e as tecnologias que protegemos. O progresso tecnológico é permitido em Admirável Mundo Novo . Mas não muito. E não muito rápido.

Liberdade em perigo

Seria irresponsável ignorar os avisos dos distópicos. Nossa liberdade, como afirmou Huxley, está em constante perigo. Mas mesmo que falemos em salvaguardar a liberdade, recuperá-la ou defendê-la, a liberdade só faz sentido numa sociedade em que cada um tem o direito de decidir por si próprio. E em que se pode escolher entre alternativas de ação significativamente diferentes.

Aqui é importante uma distinção feita por David Graeber e David Wengrow em seu livro O despertar de tudo, segundo a qual três formas básicas de liberdade devem ser diferenciadas: liberdade de movimento, liberdade de desobedecer ordens e liberdade de reorganizar as relações sociais. De acordo com Graeber e Wengrow, essas liberdades são naturais para qualquer pessoa, a menos que ela tenham sido educadas para serem absolutamente obedientes. A liberdade torna-se um conceito vazio numa sociedade que, graças aos esforços das elites (políticas), pode oferecer aos seus cidadãos o melhor cuidado e a máxima segurança, de forma perfeitamente organizada e administrada, ordenada e regulada, regulamentada e que seja absolutamente segura.

A realidade pode ser suprimida e aniquilada não apenas pela rebelião ou anarquia – rebelião encarnada em 1984 pelo suposto contrarrevolucionário Emmanuel Goldstein – mas também pela regulamentação excessiva, como praticada pelo Big Brother em Orwell ou em Admirável Mundo Novo. De acordo com Huxley, nós nos permitimos ser manipulados sem mais delongas.

Os mecanismos das sociedades modernas, detalhados pelas visões de Orwell e Huxley, nos fazem amar nossa falta de liberdade. Eles nos dão a sensação enganosa de que somos livres para escolher, mesmo que apenas façamos o que nos dizem: “O que é o amor? O que é criação? O que é saudade? O que é uma estrela?: assim pergunta o último homem, e pisca” (Zaratustra).

Não é apenas que a escravidão seja aceita ou consentida voluntariamente. Em Admirável Mundo Novo, ninguém sequer percebe que está sendo escravizado. “Mas eu sou feliz”, responde Lenina Crowne quando perguntada se ela é livre. Na distopia idealizada por Huxley, o princípio supremo é o condicionamento e a predestinação, fazendo com que as pessoas amem seu inescapável destino social. Não importa se eles administram os centros de criação (como os Alphas), realizam tarefas de ajuda (como os Epsilons) ou nem mesmo se aprendem a ler.

Os paralelismos entre 1984 e Admirável Mundo Novo também não terminam onde os poucos indivíduos que se conscientizam de sua servidão e escravidão e se tornam inconformistas encontram sua morte voluntária ou involuntária. São os restantes 99,9% de cidadãos que estão satisfeitos com o sistema que não compreendem do que se trata realmente a liberdade ou mesmo a mudança que lhes é oferecida.

Parece inútil questionar a nova ordem, seja ela baseada na felicidade onipresente e nas drogas, como em Admirável Mundo Novo, ou na retaliação e no medo, como em 1984. Só é possível questionar os meios que deram origem à ordem, que acaba por levar à aniquilação de todos os objetivos, exceto o objetivo único de manter o status quo.

Um pá de cal e outra de areia

Hoje nos perguntamos qual dos dois autores, George Orwell ou Aldous Huxley, previu o futuro com mais precisão. A humanidade caminha para um mundo totalitário ao estilo de 1984 , ou talvez já estejamos vivendo no hedonista de Admirável Mundo Novo? Como suspeita a filósofa e psicanalista Cynthia Fleury, as pessoas receberão uma mistura de Huxley e Orwell. A razão para isso são as redes sociais, que não trazem um Big Brother, mas muitos Little Brothers como modelo definitivo de (auto)vigilância, complementadas pelos sistemas de crédito ao consumo ou crédito social, que estão ganhando popularidade e difusão nos Estados Unidos, na China e na Alemanha. São instrumentos muito eficazes para gerar conformismo e obediência.

A “pá de cal”, explicou Fleury, ou seja, a recompensa pelo comportamento de acordo com as regras, é a sociedade do entretenimento e do consumo da qual os mais qualificados podem participar. A avaliação social pode ser negativa e positiva. E este último traz muitos pequenos privilégios: a liberdade pessoal é trocada por pequenos benefícios narcísicos e materialistas.

Segundo Fleury, a pá de areia”, ou seja, a punição pela desobediência (social), poderia na verdade ser uma reminiscência de Orwell em uma versão atenuada: se você não faz o que esperam de você, você é um pária da sociedade . Na Alemanha, por exemplo, as chamadas “informações negativas” da empresa de classificação Schufa hoje significam que alguém não pode obter um empréstimo, abrir uma conta corrente ou alugar um apartamento. Os critérios que Schufa usa para fazer suas avaliações também continuam ocultos.

O autor de ficção científica e futurologista Stanislaw Lem inventou o termo “sistema de Procusto” no romance Éden (1959) para descrever a adaptação de indivíduos ou sociedades a determinados padrões, os impostos aos prisioneiro de Procusto, um ladrão de uma antiga lenda grega, através da “Cama de Procusto”: se eles os prisioneiros fossem grandes demais para a cama, ele apararia seus corpos para caberem no tamanho da cama; se fossem muito pequenos, ele os esticava até ficarem com as medidas da cama.

Nas sociedades totalitárias do século XX, o sistema de Procusto significava a criação de um novo ser humano adaptado. Como o sistema de Procusto, que reduz as pessoas a um determinado tamanho ou as estende, o objetivo dos sistemas de classificação e avaliação é, em última análise, criar apenas uma falsa igualdade. “Nenhum pastor e um rebanho! Todos querem a mesma coisa, são todos iguais: quem tem sentimentos diferentes marcha voluntariamente para o manicômio”, diz o último homem nas palavras de Zaratustra, e lembra: “Em outro tempo, todo o mundo delirava”. E logo pisca.

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3 comentários para "Orwell e Huxley previram nosso admirável presente?"

  1. Ricardo Medeiros Mendes disse:

    Otras palavras tem muito conteúdo, cada matéria incrível
    Parabéns

  2. JULIO GUILHERME COELHO disse:

    Não, não tem que liberar ou é proibido, ou não é, a hipocrisia é muito grande, se precisamos capitar mais impostos, podemos aumentar os impostos das drogas lícitas e liberar as drogas providas com impostos altíssimos, podemos liberara os jogos e os cassinos com impostos altos, quem quer se matar que se mate, mas vamos proteger quem quer viver de forma correta e justa!!!

  3. MARIO VERISSIMO DE ALVARENGA NETO disse:

    Maravilha de artigo. Uma resenha muito bem feita de dois autores fantásticos. Obrigado!

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