África: Alternativas ao colonialismo ocidental

Moscou busca estreitar laços com o continente africano para além das trocas de commodities. Transações sem dolar, investimento em logística e criação de novas rotas comerciais seriam os passos iniciais. Banco do Brics pode ter papel fundamental

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Por Bruno Beaklini, no Sul21

A realização da segunda Cúpula e Fórum Econômico Rússia-África, que ocorre em São Petersburgo entre 27 e 28 de julho, pode gerar impactos positivos para o desenvolvimento econômico africano assim como a expansão da indústria russa na região. O papel do fórum é o desenvolvimento de soluções para questões delicadas, como desafios alimentares, particularmente considerando a importância histórica da Rússia e da África como fonte de alimento. A potência eurasiática é um grande produtor de alimentos e está diante de um desafio, que é o de manter as parcerias comerciais apesar dos bloqueios e sanções aos quais está submetida.

Todo Fórum como este que se avizinha traz perspectivas de sucesso, considerando os resultados da primeira edição, os quais expomos no texto com o crescimento exponencial das trocas comerciais russo-africanas. A atualização destas pode ser um salto de qualidade, evoluindo do comércio entre commodities primárias e apontando para a infra-estrutura e desenvolvimento de novas cadeias de valor, como a ampliação das atuais capacidades industriais com produtos de alta tecnologia, além de serviços financeiros distantes do privilégio do dólar estadunidense. Vale esforçar esta evidência. Criar outros circuitos econômicos distantes do eixo ocidental e anglo-saxão é uma necessidade premente para o desenvolvimento do Sul Global. 

A trajetória histórica-estrutural da descolonização e etapa posterior

Cabe uma visão histórica dos papéis desempenhados pelos Estados Unidos e seus aliados das antigas potências coloniais na África. A própria criação do Africom (Comando Permanente de Combate dos EUA destinado aos países africanos) é proporcional ao aumento da presença salafista e takhfirista nos territórios sub-saarianos. Embora seja uma decisão de outubro de 2007, sua trajetória pode ser vista como uma continuidade da era colonial.  

Importante observar que em 25 de maio de 1963 foi criada a Organização pela Unidade Africana, estrutura que perdurou até 1999, sendo sucedida pela União Africana (https://au.int/en). Embora sejam ambas as organizações de tradições pan-africanistas, a primeira está mais vinculada com o período da descolonização e da Guerra Fria e a segunda, é contemporânea da globalização capitalista e do momento em que os Estados Unidos acreditaram estar em uma era unipolar.

Este segundo período definitivamente acabou diante da prepotência dos EUA. Com o emprego do uso do dólar como moeda corrente mundial e arma de guerra econômica, todos os países com alguma pretensão de exercício de soberania produtiva e exercício pleno das decisões fundamentais, se vêem diante de uma situação inexorável. Ou se busca uma saída soberana na utilização de moedas distintas do dólar ou cada governo nacional e suas respectivas sociedades serão reféns da arquitetura financeira mundial pós Bretton Woods e posterior ao fim da União Soviética. 

Este tema é recorrente e vemos uma espécie de “herança” pós-soviética em aspectos da política externa russa. Isto se nota em certa presença do Kremlin no Oriente Médio, na aproximação estratégica com poderes regionais importantes (como Turquia e Irã) e necessariamente, com os países africanos. Apesar de terem apoiado a criação do Estado do Apartheid Sionista na Palestina Ocupada, a reorientação soviética se aproxima da Causa Árabe e também da Unidade Africana. Nos processos de descolonização do continente co-irmão da América Latina, comissionados de origem soviética e especialmente, operadores voluntários de Cuba, tiveram um papel muito importante na expulsão de colonialistas europeus. 

Nesta década do século XXI, a realidade da competição e cooperação entre Estados e áreas de influência se dá diante das disputas pelas formas de desenvolvimento capitalista. O African Export-Import Bank (Afreximbank) tem sede no Cairo (Egito) e filiais em Abidjan (Costa do Marfim), Abuja (Nigéria), Harare (Zimbabwe), Kampala (Uganda) e Yaoundé (Camarões). As relações orgânicas entre o banco e o Fórum são visíveis na participação desta importante e multilateral instituição financeira africana na no Fórum Econômico e reunião de Cúpula Russo-Africana indica que podemos estar diante do aumento da presença da potência eurasiática no continente. A exemplo do processo liderado pela China, secundado por Turquia e Irã – e por doze anos com muita presença do Brasil – formam o conjunto de economias não ocidentais a disputar influência com as antigas potências coloniais europeias e seu hegemon, os EUA. 

O presidente do Afreximbank Benedict Okey Oramah afirmou que o Banco atuaria como um Parceiro Organizacional do Fórum. Este estatuto inclui a promoção do evento em África, a captação do público-alvo, a assistência necessária aos oradores do programa empresarial e a construção do pavilhão.

Oramah concentrou-se separadamente no comércio em desenvolvimento ativo entre os países africanos e a Rússia. Segundo ele, há poucos anos, o volume negociado era de US$ 8,9 bilhões, ante os atuais US$ 12 bilhões. “A Rússia desempenha um papel fundamental no fornecimento de grãos, às vezes até 30-40%. O mesmo se aplica aos fornecimentos de fertilizantes: a Rússia é o principal fornecedor destes”, disse Oramah.

As relações russo-africanas são estratégicas. Bloqueios e sanções que impeçam a chegada de insumos da cadeia de valor da agricultura é a condenação de países inteiros a fome e a devastação societária. Logo, é necessário avançar nas trocas econômicas multilaterais garantindo a presença de produtos russos em África.

A presença russa pode ser ampliada nas oito regiões econômicas da União Africana 

Em complementaridade ao Afreximbank, a União Africana organiza “Comunidades Econômicas Regionais (CERs)”. Segundo o portal da UA, as CERs são agrupamentos regionais de Estados africanos, desenvolveram-se com cada suas particularidades, tendo papéis e estruturas diferentes. Geralmente, o propósito das CERs é facilitar a integração econômica regional entre os membros das regiões e através da Comunidade Econômica Africana (AEC) – estrutura mais ampla -, que foi estabelecida sob o Tratado de Abuja (1991).  

A União Africana reconhece a oito Comunidades Econômicas Regionais (CERs):

  • União do Magrebe Árabe (UMA)
  • Mercado Comum da África Oriental e Austral (COMESA)
  • Comunidade dos Estados do Sahel–Saara (CEN–SAD)
  • Comunidade da África Oriental (EAC)
  • Comunidade Econômica dos Estados da África Central (ECCAS)
  • Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO)
  • Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD)2
  • Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC).

A cooperação da Rússia com cada uma das oito comunidades regionais assignadas acima pode ampliar o nível de complexidade e complementaridade destas economias. Para tal, é necessário superar as medidas impostas pelos EUA e a União Europeia (UE) como sanções, bloqueios e a proibição de acesso ao Sistema Swift de trocas interbancárias. Evidente que os acordos da Basileia já não servem mais para o comércio mundial e é necessária a criação de uma nova arquitetura financeira mundial, baseada em organismos continentais – como o Afreximbank – e de escala global, como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, o Banco dos BRICS).

Um avanço concreto pode ser a criação uma ou mais linhas de seguros e garantias do frete marítimo organizadas em cooperação entre instituições financeiras russas, de países africanos e com o aval do NDB. A otimização logística, com desembarques únicos para múltiplos destinos, é uma das vantagens que esse novo arranjo – baseado nas CERs – pode vir a criar. O mais relevante, além da concretude destes intercâmbios comerciais e de desenvolvimento econômico, é a meta estratégica de estabelecer novos circuitos e rotas que passem cada vez mais longe da possibilidade do imperialismo estadunidense operar com seu poder de veto. Qualquer avanço neste sentido é benéfico para a economia do Sul Global e suas parcerias não ocidentais. 

Publicado originalmente no Monitor do Oriente Médio

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