Mapas públicos, para não repetirmos Bacurau

Assunto, quase invisível na mídia e na academia, urge: continuaremos sendo mapeados apenas por estrangeiros, acriticamente? Plínio, personagem do filme sobre a cidade que sumiu, pode inspirar reflexões sobre geografia e tecnoautoritarismo

Em Bacurau (2019), o professor do povoado, Plínio, é personagem coadjuvante que assume por vezes um protagonismo ao desvendar o fato de que a cidade estava fora do sistema de mapas
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Imagine que você possa viajar no tempo. E que possa ser invisível. Você viajou 10 anos no futuro do Nordeste no Brasil. O ano é 2031, um dia após o cataclisma eletromagnético causado por um ataque nuclear que apagou todos os bigdatas. Não existe mais Google Maps, nem GPS. O sistema de satélites de navegação deixa de funcionar imediatamente após a primeira das duas bombas de H lançadas uma no polo Norte e outra no polo Sul.

Imaginar um “geoblackout” em apenas dez anos é projetar um evento que afetaria pilotos de navios e aviões até motoristas e entregadores de aplicativos, que brecaria a modernidade das máquinas. Mas lembremos de que em 2011, a sociedade não utilizava das geotecnologias como em 2021. Estamos mais dependentes ou independentes com isso?

Este exercício imaginário nos serve para percebermos o quanto as geotecnologias estão presentes em nossas vidas e concebermos novos comportamentos modelados pelos dados que os mapas oferecem ao público.

Hoje é comum que crianças e adolescentes compreendam como traçar uma rota no Google Maps. Atividades pedagógicas interdisciplinares inovadoras se apropriando das geotecnologias de empoderamento através das escolas públicas.

O filme brasileiro Bacurau (2019), dos diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, revela um “Brasil de um futuro não muito distante”. No filme, o professor do povoado de Bacurau é personagem coadjuvante que assume por vezes um protagonismo ao desvendar o fato de que Bacurau estava fora do sistema de mapas.

Após a cena da aula de Plínio, professor da escola local, um desenrolar de eventos tecnoautoritários e tecnolibertários transcorrem fazendo do filme uma original leitura sobre as apropriações sociotécnicas e suas estratégias verticais (como o drone em forma de disco voador) e bem como as táticas horizontais (como a transmissão em grupo do boicote ao prefeito).

Como um “apocalipse local”, os habitantes são atacados por estrangeiros e cadáveres são descobertos em uma trama ficcional de suspense envolvendo atores reais. A paisagem que serve a quase todas as cenas do longa-metragem é a do povoado de Barra, no município de Parelhas, na região do Sertão do Seridó, no estado do Rio Grande do Norte. Praticamente todas as 30 casas e cerca de 80 moradores locais participaram do filme.

Após a circulação nacional e internacional de Bacurau pelas salas de exibição e festivais, o noticiário sobre a Barra mudou. Agora o jornalismo visualiza e visibiliza o local em que moradores declaram: “a gente hoje está no mapa”. Depois de ser vista pela ficção como “cidade de Bacurau”, a população do povoado de Barra pode ser vista pelo mundo como ela é na realidade.

Mas ainda assim o mapa inseriu apenas um ponto genérico. Não é preciso ser especialista para perceber que um único ponto não representa a totalidade de um território com 30 habitações usadas por 80 pessoas. Esta provocação serve não apenas para o Nordeste, mas em todo Brasil.

O personagem Plínio, interpretado pelo ator Wilson Rabelo, é um ícone para reflexões sobre Educação. O personagem, professor de escola pública do interior, é uma figura na parede da memória estética do Cinema Brasileiro contemporâneo. Assim como Plínio, que fez um mapa de Bacurau com suas próprias mãos, acredito que é urgente ensinar a população brasileira a mapear seu local antes que o estrangeiro faça o mapa do mundo por ele ou mesmo o apague do mapa dele.

A comunidade de cientistas e ativistas da Comunicação precisa falar e ouvir mais sobre mapas públicos, assunto quase invisível no enquadramento da mídia. A justificativa em pautar esse debate nas agendas públicas e políticas não é ficcional, é factual. Precisamos saber escolher criticamente os mapas que são usados em políticas públicas no presente e denunciar qualquer negligência futura com pessoas em vulnerabilidades e territórios que o Google Maps esconde.

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