Stiglitz: hora de enterrar um sistema fracassado

Nobel da Economia sugere que basta: em 40 anos, neoliberalismo provou ser incapaz tanto de promover justiça quanto de criar riquezas. Para afastar os riscos de degradação e fascismo, precisamos de uma nova esquerda democrática

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Por Joseph Stiglitz | Tradução: Felipe Calabrez

Que tipo de sistema econômico é mais propício ao bem-estar humano? Essa questão definirá nossa época, porque, após 40 anos de neoliberalismo nos Estados Unidos e em outras economias avançadas, sabemos o que não funciona.

O experimento neoliberal — impostos mais baixos para os ricos, desregulamentação dos mercados de trabalho e de produtos, financeirização e globalização — tem sido um fracasso espetacular. O crescimento é menor do que era no quarto de século após a Segunda Guerra Mundial, e a maior parte acumulou-se no topo da escala de renda. Depois de décadas de renda estagnada ou mesmo em queda para aqueles abaixo dos mais ricos, o neoliberalismo deve ser declarado morto e enterrado.

Lutando para sucedê-lo há pelo menos três grandes alternativas políticas: nacionalismo de extrema direita, reformismo de centro-esquerda e esquerda democrática (com a centro-direita representando o fracasso neoliberal). E, no entanto, com exceção da esquerda progressista, essas alternativas permanecem em dívida com alguma forma de ideologia que expirou (ou deveria ter expirado).

A centro-esquerda, por exemplo, representa o neoliberalismo com um “rosto humano”. Seu objetivo é trazer as políticas do ex-presidente dos EUA Bill Clinton e do ex-primeiro ministro britânico Tony Blair para o século XXI, fazendo apenas pequenas revisões dos modos predominantes de financeirização e globalização. Enquanto isso, a direita nacionalista renega a globalização, culpando migrantes e estrangeiros por todos os problemas de hoje. No entanto, como demonstrou a presidência de Donald Trump, não é menos comprometida — pelo menos em sua variante norte-americana — com cortes de impostos para os ricos, desregulamentação e encolhimento ou eliminação de programas sociais.

Em contraste, o terceiro campo defende o que chamo de sistema econômico progressista1, que prescreve uma agenda econômica radicalmente diferente, baseada em quatro prioridades. A primeira é restaurar o equilíbrio entre mercados, Estado e sociedade civil. O crescimento econômico, a crescente desigualdade, a instabilidade financeira e a degradação ambiental são problemas nascidos do mercado e, portanto, não podem e não serão superados pelo mercado por si só. Os governos têm o dever de limitar e moldar os mercados por meio de leis ambientais, de saúde, segurança ocupacional e outros tipos de regulamentação. É também tarefa do governo fazer o que o mercado não pode ou não irá fazer – como investir ativamente em pesquisa básica, tecnologia, educação e saúde de seus constituintes.

A segunda prioridade é reconhecer que a “riqueza das nações” é o resultado da investigação científica – aprender sobre o mundo ao nosso redor – e de formas de organização social que permitam que grandes grupos de pessoas trabalhem juntos para o bem comum. Os mercados ainda têm um papel crucial na facilitação da cooperação social, mas só atendem a esse propósito se forem regidos pelo Estado de Direito e submetidos ao crivo democrático. Caso contrário, os indivíduos podem ficar ricos explorando os outros, extraindo riquezas por meio do rentismo, em vez de criar riqueza por meio de genuíno esforço. Muitos dos ricos de hoje tomaram a rota de exploração para chegar onde estão. Eles foram bem servidos pelas políticas de Trump, que encorajaram o rentismo enquanto destruíam as fontes subjacentes de criação de riqueza. O sistema econômico progressista procura fazer exatamente o oposto.

Isso nos leva à terceira prioridade: enfrentar o crescente problema do poder do mercado concentrado. Ao explorar as vantagens da informação, comprando potenciais concorrentes ou criando barreiras à sua entrada, as empresas dominantes acabam se envolvendo numa busca de renda em larga escala, que prejudica todos os demais. O aumento do poder das corporações, combinado com o declínio do poder de barganha dos trabalhadores, explica muito por que a desigualdade é tão alta e o crescimento é tão morno. A menos que o governo assuma um papel mais ativo do que prescreve o neoliberalismo, esses problemas provavelmente se tornarão muito piores, devido aos avanços na robótica e na inteligência artificial.

O quarto item chave na agenda progressiva é cortar a ligação entre poder econômico e influência política. Juntos, ambos reforçam-se mutuamente e se autoperpetuam, especialmente onde os indivíduos e corporações ricas podem gastar sem limite nas eleições. À medida em que países como os EUA se aproximam cada vez mais de um sistema fundamentalmente antidemocrático de “um dólar um voto”, o sistema de freios e contrapesos, tão necessário para a democracia já não é capaz de se sustentar: nada consegue restringir o poder dos ricos. Este não é apenas um problema moral e político: economias com menos desigualdade têm um desempenho melhor. Reformas progressistas, portanto, têm que começar reduzindo a influência do dinheiro na política e reduzindo a desigualdade de riqueza.

Não será possíve reverter o dano causado por décadas de neoliberalismo em um passe de mágica. Mas uma agenda abrangente, construída com base nas linhas esboçadas acima pode fazê-lo com certeza. Muito dependerá de os reformadores serem tão enérgicos no combate a problemas (em especial) o poder excessivo de mercado e a desigualdade) quanto o setor privado o é ao criá-los.

Uma agenda abrangente deve enfocar a educação, a pesquisa e outras fontes verdadeiras de riqueza. Deve proteger o meio ambiente e combater as mudanças climáticas com a mesma vigilância que os defensores do Green New Deal, nos EUA, e a Extintion Rebellion no Reino Unido. E deve propor políticas públicas para garantir que a nenhum cidadão seja negado os requisitos básicos de uma vida decente. Isso inclui segurança econômica, acesso ao trabalho e salário digno, assistência médica e moradia adequada, aposentadoria segura e educação de qualidade para seus filhos.

Esta agenda é eminentemente acessível. Na verdade, não podemos nos dar ao luxo de não executá-la. As alternativas oferecidas por nacionalistas e neoliberais assegurariam mais estagnação, desigualdade, degradação ambiental e amargura política, levando potencialmente a resultados que nem sequer queremos imaginar.

O capitalismo progressista não é um oximoro. Pelo contrário, é a alternativa mais viável e vibrante para uma ideologia que claramente falhou. Como tal, representa a melhor chance que temos de escapar do nosso atual mal-estar econômico e político.


1No original, Stiglitz usa o conceito “progressive capitalism”, ou “capitalismo progressista”. No entanto, como o leitor notará, as bases de sua proposta são radicalmente distintas daquilo a que se denominou “capitalismo” no Brasil (em especial nas últimas quatro décadas). Por isso – e acima de tudo para preservar a potência política do texto – optamos por substituir a expressão por “sistema econômico progressista”

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4 comentários para "Stiglitz: hora de enterrar um sistema fracassado"

  1. josé mário ferraz disse:

    Que me perdoe o grande economista Joseph Stiglitz. Mas não há necessidade de outros argumentos para provar a necessidade de outro sistema de administração da riqueza pública é suficiente atentar para o fato de estar noventa e nove por cento da riqueza do mundo em mãos de apenas um por cento da humanidade, o que acontece graças ao afastamento do interesse público dos assuntos políticos, haja vista o papagaiamento sobre as trepadas de Neymar, o inocente útil do pão e circo.

  2. Joma disse:

    Sou apoiante do Liberalismo Social, uma política de esquerda moderada. Toda política que seja radical ou extremista à esquerda ou à direita, não é bem vinda e nunca irá resultar.

    No Liberalismo Social, a escassez de trabalho, a falta de ocupação remunerada, a falta de oportunidade de investimento econômico, a baixa qualidade da educação ou a falta dela, os cuidados de saúde insuficientes ou de baixa qualidade, a pouca qualidade ou inexistência do saneamento básico e a carência e ou a pouca diversidade dos transportes públicos, a falta de qualidade ambiental suprimem tanto a liberdade individual e os direitos humanos como a dependência, a submissão, o vício, a escravidão, a ameaça, a violência e a intimidação.
    O estado tem que garantir a todo mundo o acesso a todos os serviços públicos necessários e suficientes para garantir a liberdade e igualdade social, a liberdade individual, a liberdade econômica e o provimento a todos dos direitos sociais considerados essenciais.

  3. Tales disse:

    Qual é o título e a fonte do texto original?

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