Os quatro gatilhos da nova crise global
Trump investe contra China e Irã; Boris Johnson ameaça um Brexit devastador: a ultradireita chantageia para impor seu projeto. Mas um país do Sul, oprimido pelo FMI e breve com novo governo, terá meios para apavorar a oligarquia financeira
Publicado 01/10/2019 às 19:37 - Atualizado 01/10/2019 às 19:41

Por Nouriel Roubini | Tradução: Antonio Martins
No clássico jogo de quem vai morrer primeiro [game of chicken], dois pilotos aceleram um contra o outro e o primeiro a desviar está derrotado. Se nenhum desvia, os dois colidem de frente e provavelmente morrerão. No passado, tais cenários foram estudados para apontar os riscos produzidos por rivalidades entre grandes potências. No caso da crise dos mísseis cubanos, por exemplo, os governantes norte-americanos e soviéticos estavam diante da escolha de perder a credibilidade ou arriscar um choque catastrófico. A questão, sempre, é encontrar um compromisso que poupe as vidas e as faces de ambas as partes.
Há, nesse momento, diversos jogos geoeconômicos de quem vai morrer primeiro em curso. Em cada caso, a ausência de um compromisso pode levar a uma colisão, muito provavelmente seguida de uma recessão global e uma crise financeira. A primeira e mais importante disputa é entre os EUA e a China, sobre comércio e tecnologia. A segunda é a disputa crescente entre os EUA e o Irã. Na Europa, ocorre uma provocação crescente entre o primeiro ministro inglês Boris Johnson e a União Europeia, sobre o Brexit. Por fim, há a Argentina, que pode entrar em rota de colisão com o Fundo Monetário Internacional após a provável vitória do peronista Alberto Fernández nas eleições presidenciais do próximo dia 27.
No primeiro caso, um conflito aberto – comercial, monetário, tecnológico e “guerra fria” – entre os EUA e a China aprofundaria o declínio já em curso na produção da indústria, no comércio e nos gastos de capital, expandindo-o para o setor de serviços e o consumo privado. Os EUA e a economia global entrariam em severa recessão. De modo parecido, um confronto militar entre os EUA e o Irã levaria os preços do petróleo acima dos 100 dólares por barril, deflagrando estagflação (uma recessão combinada com inflação em alta). É o que ocorreu em 1973 durante a guerra do Yom Kippur; em 1979, na sequência da revolução iraniana; e em 1990, depois da invasão do Kuwait pelo Iraque.
Um estouro relacionado ao Brexit poderia não causar a recessão global por si mesmo, mas certamente a desencadearia na Europa, e a projetaria em seguida sobre as outras economias. O pensamento convencional é de que um Brexit não negociado [hard Brexit] levaria a uma severa recessão no Reino Unido mas não na Europa, porque esta depende menos do comércio com Londres que vice versa. É ingenuidade. A eurozona já está sofrendo uma desaceleração aguda e está à beira de uma recessão industrial. Além disso, a Holanda, Bélgica, Irlanda e Alemanha – bem próximas da recessão – apoiam-se pesadamente no mercado de exportações do Reino Unido.
Com a confiança empresarial na eurozona já deprimida, como resultado das tensões comerciais sino-americanas, um Brexit caótico seria a gota d’água. Imagina milhares de caminhões e carros em fila, para preencher os novos papéis de alfândega em Dover (Inglaterra) e Calais (França). Além disso, uma recessão europeia teria efeitos em cadeia, interrompendo o crescimento em todo o mundo e possivelmente desencadeando um surto de riscos. Poderia inclusive levar a novas guerras cambiais, se o valor do euro e da libra caíssem muito diante de outras moedas (em especial o dólar).
Uma crise na Argentina também teria consequências globais. Se Alberto Fernández derrotar Mauricio Macri e depois torpedear o programa do país com o FMI, de 57 bilhões de dólares, a Argentina pode viver uma repetição da crise cambial e da moratória e 2001. Isso poderia levar a fuga generalizada de capitais dos mercados emergentes, possivelmente desencadeando crises na Turquia, Venezuela, Paquistão e Líbano, altamente endividados, e complicando as coisas na Índia, África do Sul, China, Brasil, México e Equador.
Em todos estes quatro cenários, ambos os lados querem salvar sua própria face. Donald Trump quer um acordo com a China, para estabilizar a economia e os mercados antes de sua tentativa de reeleição em 2020; Xi Jimping também quer um compromisso, para interromper a desaceleração econômica de seu país. Mas nenhum que ser a “galinha”, porque isso solaparia sua situação política doméstica, e empoderaria seus adversários. Ainda assim, sem um acordo até o final deste ano, uma colisão será provável. À medida em que os ponteiros do relógio avançam, um mau prognóstico torna-se cada vez mais possível.
Trump também pensou que poderia chantagear o Irã, ao abandonar o acordo nuclear internacional (JCPOA) e impor severas sanções. Mas os iranianos responderam ampliando suas ações regionais. Sabem muito bem que Trump não pode bancar uma guerra aberta e que os preços do petróleo disparariam. Além disso, o Irã não quer, até que ao menos algumas das sanções sejam retiradas, entrar em negociações que dariam a Trump uma chance de ficar bem na foto. Como ambos os lados estão relutantes em piscar primeiro – e com a Arábia Saudita e Israel incitando o governo Trump – o risco de um acidente é cada vez maior.
Talvez inspirado por Trump, Boris Johnson pensou ingenuamente que poderia usar a ameaça de um Brexit duro para chantagear a União Europeia (UE) e forçá-la a oferecer condições de retirada britânica melhores que as obtidas por sua predecessora. Mas agora que o Parlamento aprovou legislação para evitar um Brexit não negociado, Johnson envolveu-se em dois jogos de quem morre primeiro simultâneos. Um acordo com a UE sobre a fronteira entre a Irlanda e o Reino Unido ainda é possível antes do prazo final de 31 de outubro, mas a possibilidade de um cenário de Brexit duro de fato também continua crescendo.
Na Argentina, talvez os dois lados estejam representando. Alberto Fernández quer um mandato eleitoral claro e faz campanha lembrando que Macri e o FMI são os culpados pelos problemas do país. O poder do FMI é óbvio: se ele retiver permanentemente a próxima parcela de US$ 5,4 bilhões de empréstimo e terminar o “resgate”, a Argentina sofrerá outro colapso financeiro. Mas Fernández também está em situação de poder, porque uma dívida de US$ 57 bilhões é um problema para qualquer credor. A capacidade do Fundo para “ajudar” outras economias em apuros seria restringida por um colapso argentino. Como nos casos anteriores, um acordo que permita salvar as faces é melhor para todos, mas um choque e o derretimento financeiro que se seguiria não podem ser descartados.
O problema é que um compromisso exige que ambas as partes reduzam as tensões, e a lógica tática dos jogos de quem morre primeiro premia o comportamento enlouquecido. Se eu posso fazer parecer que removi meu volante, o outro lado não terá escolha exceto desviar. Mas se ambos os lados jogarem fora seus volantes, a colisão será inevitável.
A boa notícia é que, nos quatro cenários acima, os dois lados ainda estão falando entre si, ou podem estar abertos ao diálogo sob certas condições que lhes permitam salvar a face. A má notícia é que todos os lados ainda estão muito distantes de algum tipo de acordo. Pior: há grandes egos em cena, alguns dos quais prefeririam chocar-se que ser vistos como galinha. O futuro da economia global, portanto, depende de quatro jogos de temeridade que podem, cada um deles, terminar com qualquer resultado.
Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras
A elite do brazil (judiciário + mp; bancos; ‘grande’ mídia; fiesp) ainda não se tocou que não é protagonista em nenhum desses 4 jogos…
O que significa, grosso modo, que nem essa elite lacaia por inteiro (sobretudo os arrogantes/idiotas paulistas da fiesp ) ganhará, ou, na pior das hipóteses, sobreviverá.
Parte da ‘grande’ mídia do brazil parece que já sacou… Será que alguém pode desenhar isso pros evanjegues e pra base do judiciário ???
GOSTEI