Os BRICS face à pandemia: que futuros virão?

Em série internacional de análises, as respostas distintas das potências emergentes — agora menos unidas — a um desafio semelhante. O que a crise escancarou? Como responderam os governos? Como se mobilizam as populações?

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Por Alf Gunvald Nilsen e Karl Von Holdt, na The Wire| Tradução: Gabriela Leite

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O texto a seguir é a introdução a uma coleção de artigos que analisa a pandemia de covid-19, as políticas neoliberais e as respostas dos movimentos sociais nos países dos BRICS. Publicada originalmente pela revista indiana The Wire, com a colaboração do professor brasileiro Fábio Luís Barbosa dos Santos, está sendo traduzida por Outras Palavras, em nova parceria editorial.

O que sabemos até agora é que em todos os lugares em que aparece, o vírus SARS-CoV-2 se embrenha e viaja por todas as brechas conhecidas e ocultas da sociedade, que as respostas de governos são moldadas pela política já existente, mas com frequência assumem uma forma mais extrema, e que as condições de medo e isolamento fazem com que mobilizações democráticas fiquem extremamente difíceis. Se por um lado esses pontos são verdadeiros em todos os países, há também alguma lógica em observar os cinco membros do BRICS juntos.

Há já algum tempo, discussões sobre mudanças políticas e econômicas globais têm se centrado no papel desempenhado pelos assim chamados poderes emergentes no sistema mundial — os países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) em particular. Para alguns, o surgimento dos BRICS anunciou a chegada de um mundo pós-ocidental, no qual a hegemonia euro-americana no sistema mundial seria algo do passado. Para outros, a emergência desses poderes estava impulsionando um novo modelo de desenvolvimento, que se afasta das ortodoxias neoliberais, trazendo de volta o bem-estar público e intervenções ativas do Estado na economia. “Desde os tempos do Movimento dos Nãos Alinhados e sua demanda por uma Nova Ordem Econômica Internacional, nos anos 1970”, argumentou Radhika Desai no contexto da reunião dos BRICS em Durban, 2013, “o planeta nunca mais havia testemunhado um desafio tão coordenado à supremacia ocidental no mundo econômico, vindo de países em desenvolvimento”.

No entanto, os BRICS não são nem de longe um bloco homogêneo. Ao contrário, o agrupamento está indiscutivelmente desgastado por divergências em trajetórias políticas e econômicas. Além disso, a narrativa de um “Sul global em ascensão” choca-se com a realidade de como os processos de crescimento que alimentaram o levante dos BRICS estão repletos de falhas econômicas e políticas. Primeiro, a emergência das potências ascendentes foi contemporânea do surgimento de uma nova geografia da pobreza global: agora, mais de 70% dos pobres vivem em países de renda média. E a despeito de taxas de crescimento impressionantes, os países do BRICS abrigam mais de 50% da população empobrecida do mundo.

A pobreza persistente está intimamente relacionada com desigualdades profundas e, na maior parte dos casos, em ampliação. A África do Sul, é claro, é um caso a ser apontado aqui — pesquisas recentes mostram que os 10% mais ricos recebem 65% de toda a renda e possuem 85,6% de toda a riqueza do país — mas outros países do BRICS também seguem de perto a tendência. Na Rússia, por exemplo, o décimo superior de detentores de riquezas controla 77% de toda riqueza doméstica, um nível de desigualdade que é igual ao dos EUA, enquanto na Índia os mesmos 10% mais ricos da população detém 77% de toda a riqueza nacional. O que esses números revelam é que, nos países do BRICS, um grande número de pessoas está relegada às margens dos atuais processos de crescimento, como resultado da falta de acesso a meios de subsistência seguros e decentes, ausência de proteção social básica e serviços públicos essenciais, e exclusão dos processos políticos estabelecidos.

A diversidade dos espaços ocupados, na economia política global, pelos países do BRICS cria, junto com a semelhança das tendências gerais descritas acima, um conjunto atraente de comparações em relação à economia política de uma pandemia, nesse momento de mudanças e contestações do sistema mundial. Acima de tudo, a pandemia de covid-19 e a paralisação econômica que veio a seguir expuseram completamente as fraquezas dos processos de crescimetno atuais. Novas pesquisas mostram com muita clareza que a pobreza deverá aumentar dramaticamente no Sul global, e isso está diretamente relacionado à natureza fortemente precária de emprego e meios de subsistência. Os artigos na série que virá a seguir exploram três dimensões da crise através dos países do bloco.

Em primeiro lugar, a pandemia cria uma nova situação política em cada um desses países, que apresentam aos governos desafios e oportunidades, enquanto navegam na interface complexa entre medidas de saúde pública e econômicas. Conseguirão fazê-lo? Sairão da crise mais fortes ou enfraquecidos? A crise apresenta novos desafios? Oferece oportunidades para aumentar a repressão?

Demonstramos que em todos os casos, a pandemia provocou uma versão mais extrem da política existente.

Por exemplo, as tentativas iniciais da China de conciliar o surto, seguida por uma extraordinária mobilização de recursos para contê-lo é consistente com seus interesses como uma superpotência emergente, cuja legitimidade interna e estatura externa baseiam-se sobre suas proezas tecnocráticas na geração de crescimento econômico, de segurança aos cidadãos e de prevenção de dissidências.

O retorno recente da África do Sul à ortodoxia neoliberal ditou sua adoção de um lockdown segundo as “melhores práticas globais”, feito sob medida para as sociedades ricas do Ocidente, e não a sua própria sociedade e Estado fraturados. Após isso, o país abandonou as práticas para adotar uma reabertura caótica da economia, que pode enfraquecer o presidente Cyril Ramaphosa.

Governos de ultradireita se saíram pior. A tentativa de Jair Bolsonaro, no Brasil, de negar a existência e a seriedade da pandemia trouxe consequências devastadoras para aqueles que ele espera esmagar, além de seu crescente distanciamento das elites. Na Índia, Narendra Modi usou a crise para consolidar sua imagem de messias na esfera pública, e há muitas evidências que sugerem que essas ações foram, em parte, bem sucedidas. Na Rússia, de maneira semelhante, é improvável que a pandemia vá desestabilizar Vladimir Putin de maneira substancial.

Em segundo lugar, como a pandemia afeta as classes dominadas? Ela, é claro, teve um impacto devastador nos meios de subsistência. Na verdade, em todos os países do BRICS, os trabalhadores pobres, precários e informais, e também os desempregados, têm de aguentar tanto o peso da própria pandemia quanto o da devastação econômica. No entanto, a questão é, também, o quanto ou em que medida esses cenários levarão a medidas de alívio e expansão de iniciativas de bem-estar vindas de cima, ou se a crise é caracterizada por uma brutal indiferença ao sofrimento dos mais pobres.

A resposta da África do Sul foi alocar recursos para doações e cestas básicas aos trabalhadores pobres e aos que foram demitidos. Mas as instituições, quebradas por dez anos de corrupção, falharam em executá-lo. O regime de Modi, na Índia, tem sistematicamente ignorado as necessidades dos cidadãos mais vulneráveis. O resultado foi nada menos que uma crise humanitária. No Brasil, a pressão pública forçou Bolsonaro a conceder alívio financeiro aos pobres, mas sua indiferença brutal diante da pandemia está devastando comunidades pobres. Na Rússia, muitos grupos vulneráveis estão caindo nas brechas de um sistema de bem-estar limitado, e os esforços voluntários provavelmente não conseguirão remediar essas deficiências. Na China, a resposta sistemática do governo parece ter protegido os cidadãos, mas o controle abrangente das informações faz com que fique difícil afirmar a situação real, e particularmente nas populações reprimidas no Tibete e no Sinquião.

Isso nos leva ao terceiro ponto: qual é a resposta da população à crise e à política de seus respectivos governos? Antigos e novos movimentos e iniciativas populares respondem de maneiras inovadoras à crise? Focam-se em mobilizar-se para enviar auxílio às comunidades pobres e marginalizadas? Tentam trabalhar ao lado do regime ou afrontar suas propostas? Em que extensão novas medidas emergiram de baixo em resposta ao desespero popular?

Essas perguntas são importantes, já que a desigualdade e a precariedade já deflagraram convulsões políticas pelos países do BRICS, em momentos anteriores à pandemia. Na situação atual, os BRICS exibem uma ampla variedade de respostas populares.

Na Índia, houve protestos dispersos de trabalhadores migrantes desesperados, e amplo trabalho de ajuda humanitária por parte ativistas e redes da sociedade civil. Mas pouco protesto organizado sustentado, dadas as condições repressivas da quarentena.

Em contraste, a África do Sul assistiu a mobilizações e organizações migrantes a nível local, mas que não conseguiram atingir o tipo de coordenação nacional a que os ativistas aspiravam.

Na Rússia, protestos contra as medidas governamentais de contenção da pandemia aconteceram de várias formas, desde debates online a reuniões de massas, enquanto as autoridades responderam com uma mistura de cooptação e repressão.

No Brasil, movimentos e redes de ativistas têm organizado solidariedade mútua, educação, distribuição de cestas básicas e demandas de saúde, mas sem ligação ou resposta dos partidos de esquerdas ou de Bolsonaro.

O governo chinês tolerou os esforços dos voluntários para apoiar trabalhadores da saúde, mas apertou o controle repressivo da internet, da informação e das revoltas em Hong Kong, onde ativistas e o público geral forneceram uma resposta coordenada à pandemia, em face da inércia das autoridades.

O que as contribuições a essa coleção de artigos traz à tona, portanto, são as diversas maneiras por meio das quais a pandemia de covid-19 aprofundou fraturas e falhas já existentes nas economias políticas das potências ascendentes no sistema mundial. E, de maneira significativa, esse cenário complexo e contraditório irá também ser o terreno sobre o qual os movimentos sociais vão se organizar e mobilizar nos anos que virão. Se esses movimentos serão capazes de mapear caminhos alternativos de desenvolvimento, que sejam menos desiguais e menos precários que aqueles já trilhados pelos países do BRICS é algo que veremos no futuro.

O que está claro, no entanto, é que esse é um momento em que é necessário levantar uma série de questões críticas sobre a natureza dos processos de crescimento nos BRICS. É indispensável tanto para desarranjar as narrativas que de maneira fácil e unilateral demais veem o crescimento dos BRICS como uma mudança progressiva no sistema mundial, e também — para parafrasear o teórico cultural britânico Raymond Williams — para construir a esperança prática, e não o desespero convincente. Esperamos que as perspectivas oferecidas nesta coleção contribuam para esse fim.

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2 comentários para "Os BRICS face à pandemia: que futuros virão?"

  1. Gostei do assunto de sua divulgação, gostaria de ver se é pertinente para meu site.

    Sds.

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