É possível ser flaneur em meio aos escombros?

Dou uma volta de bicicleta por São Paulo e suas contraditórias paisagens pós-covid. Enquanto contávamos cadáveres, o novo normal se impôs para manter a máquina do capitalismo. Como rasgar a normalidade e, por trás dela, encarar a mudança?

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Por Fernanda Almeida | Imagem: William Vieira Martins

Pedalo diariamente 16 quilômetros, distância entre minha casa e um dos meus muitos trabalhos. Saio do centro antigo e vou até o elegante bairro de Pinheiros. Percorro um caminho no qual o desenho da paisagem urbana é como um retrato flagrante das contradições das relações sociais, sobretudo em tempos pandêmicos.

Por ser trabalhadora da saúde pública, não vivenciei o angustiante teletrabalho. É bem verdade que, no início, cheguei a sentir inveja dessa história de ficar em casa de pijama da cintura para baixo, fazendo pão e praticando yoga na frente de uma tela. Passados um ano e meio percebo que alguns amigos que tiveram a “condição” de se isolar em casa, por vezes, estão mais entristecidos, mais cansados, e até mesmo mais adoecidos do que nós, que enfrentamos a pandemia nas idas e vindas diárias pelas ruas da cidade. Percebo agora que são mais complexas as camadas para compreensão dos impactos (objetivos e subjetivos) do confinamento forçado pela pandemia, ainda que reconheça que, para alguns, ter podido se isolar foi um privilégio.

Embora desaconselhado por especialistas, eu pedalo ouvindo música. Sempre gostei de pensar a cidade como palco. Assim, no tablado da minha rotina cotidiana sou eu quem escolhe a trilha sonora, pedalando vou construindo histórias imaginárias, talvez uma forma de me proteger da desmesurada realidade. A música invade os meus sentidos e me distrai, mas não o suficiente para me impedir de ler uma sequência desconcertante de placas: “Aluga-se”, “Vende-se” e “Passo o ponto”. Tampouco me impede de notar que as fileiras de portas fechadas denunciam a falência da pequena economia local, aquela que sempre encheu pratos de feijão, mas nunca fez acumular o dinheiro suficiente para a compra de fuzis.

Agora que as portas de muitos comércios estão fechadas é possível, com mais “conivência”, utilizar as soleiras e transformar as calçadas em moradia. Gente e mais gente espalha-se pelo passeio público. Lembro-me que o contingente de pessoas em situação de rua nos últimos anos mais que triplicou. Esbarro neles, desvio deles, reconheço eles, cumprimento alguns deles. Barraca, cobertor, carrinho de papelão, restos de comida contrastam com as fachadas espelhadas dos prédios na avenida mais palco do país, a Avenida Paulista. Dia desses, subindo a Rua da Consolação, eu estava embalada pela melodiosa voz de Vanessa da Mata, em sua nostálgica canção Carta (Ano de 1890).

Ando nas ruas do centro
Estou lembrando tempos
Enquanto lhe vejo caminhar


Aguando a calçada
Um barbeia um velho
Deita a noite e diz poesia (serenata)


Vinho enquanto ouve choro costurar
Passei em casa, seu Zé não estava
Memórias Senhor Brás Cubas postumavam
Enquanto vi passar Helena pra casa de chá


Devagar, bonde na praça
Ainda borda delicadeza
Torna a gente
Banca de flores
Libertando sorrisos no ar

No meu percurso de ida, a Rua da Consolação é sempre a mais inspiradora. O contraste talvez seja a melhor definição. Ao ganhar fôlego para vencer a ladeira sinto a presença das muitas camadas históricas que povoam o universo social e cultural da cidade. Tem igreja, prédio público, universidade, cemitério, bombeiros, lojas de luminárias, e sobretudo, muitas lendas urbanas: quem nunca ouviu falar do Bar das putas e suas muitas versões sobre o que ali acontecia em defesa das mulheres? Lamento por quem nunca tenha podido pegar uma sessão no Cine Belas Artes seguida de uns drinks no antigo e saudoso Riviera Bar. Ali, novo e velho convivem com seus nexos de memórias e símbolos.
Já no topo, no Espigão da Avenida Paulista, prestes a entrar na Avenida Dr. Arnaldo, um pensamento me invade: Quais os sentidos da imperativa busca por normalidade? Antes disso preciso dizer algo; desde o início da pandemia, sempre que passo em frente ao Hospital Emílio Ribas sou tomada por uma sensação de reverência, fato de que até então minha alienação me “protegia”. Agora já não consigo deixar de pensar nos muitos homens e mulheres – os trabalhadores da saúde – que arriscam cotidianamente suas vidas para salvar outras tantas vidas. Também penso naqueles que perderam pessoas queridas. Me identifico com os órfãos, lamento os casamentos marcados que não aconteceram, imagino a solidão das viúvas, nem consigo presumir a dor da mãe sem filho para embalar. Ao mesmo tempo me ressinto com o vai-e-vem apressado das pessoas, em especial naquele quarteirão, me parece sintomática a desafetação dos transeuntes.

Retomo a partir daqui o argumento original que me fez pensar este texto. Foi ali, na curva da Praça dos Arcos, que comecei a examinar a pandemia a partir de ciclos imperativos em busca da normalidade: novo normal, voltando ao normal, e agora, mais recentemente, o normalíssimo.

Logo nos primeiros meses da pandemia era irritante a insistente tentativa de enquadrar o cotidiano a partir da noção de novo normal. Nas redes sociais não faltaram “especialistas” do mainstream na defesa da nova tendência. Uma busca insana por nos fazer aceitar forçosamente uma realidade inédita. E me perguntava sobre o interesse ideológico em firmar um novo normal. Aceitem que dói menos, é isso? Como toda novidade é sempre um campo de possibilidade de ruptura, era preciso rapidamente ditar os padrões do novo normal. Nesse sentido, o mercado foi esperto.

O jovem mercado empreendedor brasileiro apoderou-se da narrativa da saúde mental como sinônimo de bem-estar e construiu um amplo cardápio de novas necessidades em busca de minimizar a angústia dos meses iniciais. Agnes Heller enfatiza o quanto a cotidianidade, a partir de sua estrutura heterogênea, impõe uma certa adaptação. Assim, a adesão dos consumidores foi maciça e revelou ainda mais as contradições de classe. Enquanto contávamos cadáveres, o novo normal se impunha como desejo cínico para manter a máquina do capitalismo em movimento. Como resultado, o consumo e-commerce paulista disparou, só em 2020 cresceu 27%2. Uma pesquisa realizada pelo SEBRAE mostra que 1,8 milhão de pessoas se inscreveram no programa de microempreendedor individual (MEI)3. E, assim, os índices alarmantes de desemprego, precarização das relações de trabalho, uberização da vida e empobrecimento em massa – resultados da reestruturação do capitalismo na sua fase ultra neoliberal – se aprofundaram.

Ao alcançar a esquina da rua Cardeal Arcoverde, um lampejo de alegria me tomou de assalto. Uma fila de carros e pessoas esperam pela tão desejada dose de imunização contra o vírus que já provocou tantas mortes. O tradicional Centro de Saúde Geraldo de Paula Souza me faz lembrar que o ato de vacinar é coletivo e uma atitude política, portanto é uma práxis ética. Rememoro que, aquele quadrilátero da cidade, com seus prédios suntuosos com nomes de cientistas, infectologistas e sanitaristas, outrora desbotados na paisagem da cidade, ganha força na medida em que irradia luzes cintilantes de esperança em cada dose aplicada. Num instante, associo que a história da saúde pública brasileira pode ser contada a partir de um fio que liga o final do século XIX às determinações desta nossa época pandêmica. O mesmo espaço em que foram travadas as lutas pela erradicação das epidemias que castigavam a cidade no período imperial e no alvorecer da nova república é agora território de uma esperança, renovada a partir da força do SUS.

Ainda com tempo para uma pequena traquinagem, eu grito por trás da máscara cirúrgica: Viva o SUS! Fora Bolsonaro!!! Buzinas, gritos, aplausos… Feito criança que apertou a campainha do vizinho, pedalo mais rapidamente. O coração já está desacelerando quando a paisagem muda.

A rua Artur de Azevedo é mesmo interessante, tem de tudo um pouco, de lojinha de produto de limpeza a modernas cafeterias e hamburguerias. Tem gente em todo canto, uns de máscaras, outros sem. Velhinho passeando com cachorro, madame na butique, menino na bike em alta velocidade com suas mochilas Ifood, enfim, gente para lá e para cá. Daí penso: As coisas parecem estar voltando ao normal. Imediatamente me lembro que o ar de normalidade é desconcertante, afinal ainda estamos enterrando mais de 450 pessoas por dia. São mais de 600 mil mortos. Travo um diálogo interno: Mas ninguém aguenta mais. Não seja tão tosca, estamos há um ano e meio nesse rolê insano!

Começo a pensar na banalização do uso da palavra Saúde Mental. Nas redes sociais não faltam postagens de fotos em churrascos, festas, aglomerações com a hashtag #saúdemental. É irônico pensar no tanto de gente que arrisca se contaminar em nome da “#saúdemental”. É triste perceber o individualismo flagrante de uma parcela da sociedade reivindicando a SUA #saúdemental. Como se ter saúde mental fosse um ato meramente individual. Eu que sou trabalhadora de um precarizado equipamento público de Saúde Mental começo a conjeturar: estariam esses tantos empenhados em defender a política pública de Saúde Mental cotidianamente ameaçada?

Agora já estou pertinho do meu trabalho. Aceno para um trabalhador de um prédio que todos os dias, impreterivelmente, recolhe as folhas e, por vezes, flores do ipê amarelo caídas na calçada. Eu e este jovem negro, cúmplices nesse olhar que atenua a rotina cotidiana.

Acho engraçado como os nomes podem dar sentidos diversos para as coisas. Nomear é dar significado. O Baixo Pinheiros agora está em alta. É lá que o CAPS-AD está localizado. Penso na nossa herança portuguesa e no legado urbanístico e cultural dos bairros altos e baixos. Em geral, são nos territórios marginais que a “vadiagem” se constituiu como simbólico. É bem verdade que o Baixo Pinheiros está mais para chique-hipster-descolado. Fato é que, neste espaço, uma concentração de bares, cervejarias, tabacarias, restaurantes, cafés vão dando ares de que tudo segue normalíssimo. E uma nova boemia masculina, branca e escolarizada se aglomera. Percorro essas ruas pedalando e me pergunto: é possível ser flâneur em meio aos escombros? Na playlist Criolo sentencia sobre SP.

Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel
Aqui ninguém vai pro céu.


Não precisa morrer pra ver Deus
Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você


Encontro tuas nuvens em cada escombro em cada esquina
Me dê um gole de vida


Não precisa morrer pra ver Deus

Enfim chego ao CAPS, amarro minha bicicleta em uma grade na entrada, estou pronta para iniciar mais uma jornada. Um homem em situação de rua que acompanho semanalmente me aguarda no espaço de convivência dos pacientes. Ele me diz em tom de indagação: “A senhora não tem medo de morrer andando de bicicleta nesse trânsito maluco de São Paulo?”. Sua pergunta me faz fraquejar as pernas e esmorecer a alma. Uma voz ecoa em mim: “Medo da morte”. Estico meu braço com o punho fechado em sua direção, nos cumprimentamos com o famoso “soquinho”. Olho para ele e falo baixinho…São tantos medos, né? Por baixo da máscara começo a cantarolar: Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? Seus olhos sorriem para mim.


1 Texto originalmente publicado no Boletim Online 60 – Jornal Digital dos Membros, Alunos e Ex-Alunos do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em setembro de 2021.

2 https://www.fecomercio.com.br/noticia/canal-de-consumo-na-pandemia-e-commerce-paulista-cresceu-27-em-2020-mostram-fecomerciosp-e-ebit-nielsen… 

3 https://noticias.r7.com/economia/empreendedores-se-reinventam-na-pandemia-e-driblam-a-crise…

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4 comentários para "É possível ser flaneur em meio aos escombros?"

  1. ítalo marcos rodrigues disse:

    É uma bela narrativa crítica do cotidiano das cidades que podemos replica-lá em qualquer lugar. Adorei!

  2. Dorminhoco disse:

    Excelente texto! Super bem escrito e com perguntas que muitos temos feito.
    A adaptação é a fórceps e a roda do capital nunca para.
    Talvez um novo ludismo…
    Parabéns à autora.

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