Um novo arcabouço, não calabouço!

Por trás da proposta que Haddad prepara, há três séculos de debate filosófico e econômico. Ministro e sua equipe serão sensíveis aos novos ventos teóricos? Ou, de costas para o futuro, aprisionarão o país na masmorra de mitos do liberalismo?

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Por Simone Deos

O ministério da Fazenda tem anunciado que está em fase final de elaboração um novo arcabouço fiscal: um conjunto de normas, regras e parâmetros desenhados com o objetivo de recuperar a credibilidade e, principalmente, a previsibilidade da política fiscal. O objetivo, segundo o Secretário de Política Econômica, é “que seja um arcabouço crível, previsível, que permita que os cidadãos brasileiros e investidores tenham um horizonte de investimentos no Brasil bem mais claro que têm hoje”. Em obediência ao disposto na Emenda Constitucional 126, o presidente da República deverá encaminhar ao Congresso Nacional, até o dia 31 de agosto de 2023, um projeto de lei complementar apresentando esse novo arcabouço. Mas os esforços são para que, muito antes disso, o Executivo torne pública a sua proposta, de forma a permitir um amplo debate na sociedade antes que ela seja votada.

A aprovação do novo arcabouço fiscal – não confundir, caro leitor e cara leitora, com um novo calabouço fiscal – será o último prego batido no caixão do Teto de Gastos (Emenda Constitucional 95), que de fato cumpriu muito bem o seu papel: impedir o desenvolvimento econômico e destroçar os direitos sociais instituídos pela Constituição de 1988 e, em seu lugar, promover o retrocesso econômico, social e político do país. Tudo em nome da responsabilidade fiscal, expressão que amalgamou um princípio moral difícil de contestar – afinal, quem poderia ser contrário ao uso predominantemente responsável do dinheiro público? – com o princípio de que a política fiscal deve buscar o equilíbrio entre arrecadação e gastos. Mas o que é, efetivamente, responsabilidade fiscal?

Quando, no século XVIII, os primeiros filósofos economistas começaram a desenhar as bordas daquilo que veio a constituir um novo campo do conhecimento, a economia, eles iluminaram certos aspectos da nova sociedade em formação na Europa. Simultaneamente mantiveram, se não que totalmente ocultas, pelo menos sombreadas, as estruturas de poder mais profundas sobre as quais essa nova sociedade se assentava – como o Estado e a moeda – e sem as quais não teria sido possível nem a sua constituição, nem a sua problemática manutenção.

Na mitologia do liberalismo econômico – nascida nesse contexto para permitir a superação das instituições feudais e mercantilistas que dificultavam a emergência e o desenvolvimento do capitalismo, como observa Karl Polanyi – os mercados e sua generalização são fruto dos impulsos naturais dos seres humanos, os quais estabeleceriam suas relações sociais baseadas, fundamentalmente, no intercâmbio comercial. Nessa narrativa, Estado e moeda não desempenharam papel relevante na constituição das chamadas economias de mercado, e por sua tendência de crescer descontroladamente, o Estado gastador estaria sempre ameaçando o bom funcionamento de uma sociedade de “livres e iguais”. Daí não surpreende que na versão corrente e exacerbada dessa mitologia, o neoliberalismo, tenham sido remodelados e aperfeiçoados um conjunto de mecanismos para controlar o poder monetário estatal.

Já é bastante conhecido de todas e todos que a ideia de conduzir a política macroeconômica – inicialmente, a monetária – por regras, isolando-a do arbítrio do Estado, é produto do debate intelectual e político da segunda metade do século XX. Regras pré-anunciadas, segundo seus defensores, dariam mais segurança aos agentes, organizariam as expectativas de inflação e outras que houvesse, e por isso seriam mais eficazes. Como cereja do bolo, tais regras permitiriam proteger a atividade econômica dos ciclos políticos, próprios dos regimes democráticos.

No caso das regras para a condução da política monetária por parte dos bancos centrais, a proposição original foi que estes perseguissem uma meta de agregados monetários, pré-anunciada, para o controle da inflação. Tendo sido constatado, na prática, que os bancos centrais não têm a capacidade de controlar a quantidade de moeda, foi necessário reformular a teoria e a política. Nesse sentido, o regime de metas de inflação – que parte do pressuposto de que os bancos centrais têm capacidade de, indiretamente, via taxa de juros, afetar os preços correntes – passou não só a orientar, mas a dominar a atuação de grande parte dos bancos centrais ao redor do mundo, a partir da década de 1990. A ideia de que os bancos centrais devem ser autônomos, ou independentes, dos governos e da política, para melhor conduzir o regime de metas e alcançar a estabilidade de preços, que passou a ser o seu objetivo primordial, é um desdobramento desse processo.

Do lado fiscal, por sua vez, o princípio geral de uma política equilibrada, neutra, com despesas ajustando-se às receitas, foi sendo introduzido e aperfeiçoado por meio da institucionalização de metas quantitativas – de resultado orçamentário, de gastos, de endividamento – cada vez mais rígidas e muitas vezes sobrepostas. A justificativa teórica seriam os impactos positivos do orçamento equilibrado, e quiçá superavitário, sobre a inflação – via contração de demanda e/ou impacto sobre as expectativas futuras de inflação – e sobre a sustentabilidade e/ou as expectativas de sustentabilidade da dívida pública – para a qual haveria ou limites rígidos, ou limiares perigosos de serem testados, a partir dos quais os países quebrariam e uma catástrofe econômica e social seria líquida e certa. Paralelamente a estas justificativas, ou, melhor ainda, dando-lhe uma sustentação que dispensaria a comprovação das evidências empíricas, esteve sempre a responsabilidade fiscal como princípio moral.

No Brasil, a adoção do chamado Novo Consenso Macroeconômico obedeceu às prescrições dos manuais de macroeconomia, com a introdução progressiva de regras para a condução da política macroeconômica. No que diz respeito, especificamente, ao lado fiscal, a cronologia tem início em 1988, quando a Constituição Federal instituiu a Regra de Ouro, a qual define que novas dívidas emitidas em um ano fiscal não podem ser superiores às despesas de capital do período. Dito de outra forma: as despesas correntes do governo não podem ser financiadas por novo endividamento, exceção feita aos casos autorizados pelo Congresso. Um princípio baseado no bom senso (ou seria no senso comum?) e moralmente fundamentado.

Da lista de regras fiscais posteriormente introduzidas e ainda vigentes no país, destaco para comentar a Lei Complementar 101/2000, Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). A referida lei reveste-se de particular importância porque, entre outros tantos pontos de relevo, em seu Art. 1º encontra-se definido o que é, no Brasil, a responsabilidade na gestão fiscal para a União, Estados, Distrito Federal e Municípios: “ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e obediência a limites e condições no que tange a renúncia da receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.” Assim, tal como definida na LC 101/2000, responsabilidade fiscal é o equilíbrio das contas públicas. Independentemente das condições da renda, do emprego, sanitárias, ambientais, educacionais e da infraestrutura do país, e independentemente do programa político com o qual comprometeu-se durante a campanha e pelo qual foi eleito, um gestor responsável do orçamento deve ter como meta equilibrar as contas públicas.

Aproximadamente duzentos e cinquenta anos após o início dessa aventura intelectual que é a reflexão sobre a dimensão econômica da vida social, o pensamento econômico dominante – para o qual “no princípio, era o mercado” – vê-se agora, novamente, obrigado a reavaliar o papel do Estado. O consenso macroeconômico que vigorou desde os anos 1990 está sendo revisto, na prática e na teoria, em âmbito internacional. A revisão teórica e das políticas é mandatória pois os acontecimentos dos últimos anos – a inflação de oferta e a transposição dos limites inimagináveis de endividamento – desafiaram o saber e a política macro consensual. Do lado da política fiscal, isso significa dizer que a orientação geral e irrestrita para que os governos tenham como meta, anualmente, resultados fiscais neutros (orçamento equilibrado) ou superavitários, vem sendo reavaliada. Há espaço para excepcionalizar despesas de investimento e excluí-las dos limites impostos para as chamadas despesas correntes. Há consenso sobre a necessidade de se avançar na transição para uma economia de baixo carbono, e que o Estado cumpre aí um papel decisivo. Adicionalmente, reavalia-se se algumas despesas correntes – educação, saúde – não deveriam ser consideradas como investimento porque, ainda que não ampliem a formação bruta de capital, certamente impactam a produtividade.

Tais espaços abertos para avançar na formulação da política, é claro, devem ser ocupados, e é isso que os eleitores do Presidente Lula e a sociedade esperam do novo arcabouço fiscal que o Poder Executivo está na iminência de apresentar. Até porque infelizmente, nem internacionalmente e tampouco no Brasil – e isso a despeito de termos um governo de centro-esquerda e uma equipe econômica que conta com quadros heterodoxos – o debate avançou a ponto de se compreender e aceitar plenamente a soberania monetária do Estado, o que realmente poderia levar a nossa discussão sobre política macroeconômica para um patamar muito mais avançado. Esperemos que ela venha num futuro não tão distante. Por ora, todo cuidado para que o necessário e possível novo arcabouço não se apresente como mais um calabouço.

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