Guajurá: A polícia mata mais que criminosos

Entre janeiro e outubro, 27 pessoas foram mortas pela PM enquanto 16 foram vítimas de homicídios dolosos. Índice foi puxado pelos massacres realizados pela Operação Escudo. Sob a gestão de Tarcísio, a letalidade policial subiu 18% no estado de SP

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Por Jeniffer Mendonça, na Ponte Jornalismo

O número de mortes cometidas pelas polícias Civil e Militar foi maior do que o de homicídios dolosos que aconteceram no Guarujá, cidade do litoral paulista, nos 10 primeiros meses de gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite.

Entre janeiro e outubro, foram 27 pessoas mortas pelo braço armado do Estado e 16 pessoas assassinadas em homicídios dolosos, aqueles em que se tem a intenção de matar, segundo os últimos dados estatísticos da Secretaria de Segurança Pública, divulgados nesta segunda-feira (27/11). No mesmo período do ano passado, as polícias haviam matado cinco pessoas no Guarujá, e os criminosos, 18.

Antes deste ano, a letalidade policial só havia superado as mortes pelo crime em 2018, quando, entre janeiro e outubro, foram registradas 28 mortes pelas polícias e 18 em homicídios que em princípio não envolviam agentes do Estado.

O índice foi puxado especialmente por conta das 13 mortes cometidas pelas polícias em julho deste ano no Guarujá, num intervalo de quatro dias, logo depois que o governo Tarcísio deflagrou a Operação Escudo, em 28 de julho, em represália ao assassinato do soldado da PM Patrick Reis, da Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota). Na Baixada Santista, a operação deixou ao todo 28 mortos em 40 dias até o secretário anunciar o encerramento das ações, em 5 de setembro. Após mais um homicídio de um policial, Derrite informou que a operação passaria a ter uma nova edição, mas que até o momento não registrou o mesmo nível de violência.

Julho de 2023 também é o mês com a maior letalidade policial no Guarujá considerando toda a série histórica disponível em microdados pela secretaria, já que o maior número de vítimas num mês foi sete.

Além disso, em meio às mortes da operação, moradores denunciaram execuções, tortura, ameaças, invasões e derrubada de casas pela Operação, apresentadas em relatório preliminar do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que é vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Houve ainda denúncia internacional de organizações ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), celebração de policiais pelas mortes, protestos encabeçados por movimentos sociais pedindo o fim da operação e prisões de pessoas majoritariamente negras sem antecedentes que não cometeram crimes violentos.

Durante uma feira de negócios de segurança pública, em outubro, Derrite voltou a enaltecer a Operação Escudo e declarou que parte da imprensa paulista é canalha, publica “fake news” e trabalha “a serviço do crime”. “Os senhores acham que aquela conversa furada de uma imprensa, uma parte da imprensa canalha, que solta fake news dizendo que o indivíduo foi torturado, arrancaram as unhas e depois executado, nenhum laudo do Instituto Médico Legal apontou hematomas, muito menos sinais de tortura”, afirmou Derrite. “Como diria um ex-comandante meu: esses indivíduos, não é que eles torcem para o outro lado. Eles trabalham a favor do crime, esses covardes”, emendou.

Na ocasião, Derrite ainda disse aconteceria uma Operação Escudo para cada policial que fosse assassinado e que cada agressor seria “caçado” no estado. “Quando eu falo ser caçado, preferencialmente será preso. Eu sei que tem órgãos na imprensa aí que estão loucos para soltar uma notinha”, declarou.

Coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, Rafael Rocha considera o cenário “negativo” pela forma como o governo vem tratando o tema, já que deixou de investir em projetos que haviam contribuído para a redução da violência policial. “Numa sociedade minimamente funcional, isso [as polícias matarem mais] não deveria acontecer. É um paradoxo que, em uma sociedade violenta como a brasileira, a polícia mate mais do que todos os conflitos cotidianos, seja do crime, seja um feminicídio, seja uma briga de rua, briga de bar, briga de trânsito”, afirma. “Isso mostra um uso descontrolado do uso da força”.

A gestão de Tarcísio de Freitas vem trabalhando contra medidas que haviam conseguido reduzir a letalidade policial, como o programa de câmeras nas fardas dos PMs. O governador já fez três cortes no programa, o mais recente na sexta-feira (24/11), de R$ 8,5 milhões para ser repassado para a área de policiamento ostensivo e atendimento à saúde da PM. Outros cortes foram de R$ 11 milhões e de R$ 15 milhões do programa cujas verbas foram destinadas para pagamento de diárias de policiais militares.

O orçamento original, previsto para ser aplicado em 2023, era de R$ 152 milhões, que havia sido aprovado pela Assembleia Legislativa (Alesp) em 2022, com uma meta de se ter, em 2023, 15.300 aparelhos em funcionamento. A corporação tem, atualmente, 10.125 câmeras, o mesmo número atingido pela gestão anterior, do governador Rodrigo Garcia (PSDB), em 2022, e não investiu em novas aquisições.

Outra medida são as Comissões de Mitigação e Risco, que foram criadas dentro da PM em julho de 2020, para avaliar os casos em que policiais se envolviam em mortes. A gestão Tarício não fornece dados sobre como o trabalho das comissões. Procurada via Lei de Acesso à Informação, a PM se recusou a fornecer dados de 2023, sem justificativas, se limitando a informar que 139 policiais passaram pelas comissões e que avaliou 623 procedimentos adotados pelos policiais envolvidos direta ou indiretamente nos casos de 2020 a 2022 .

Em todo o estado de São Paulo, nesses 10 meses as polícias deixaram 407 vítimas, o que representa um aumento de 18,7% em relação ao mesmo período de 2022. O aumento mais expressivo foi nos casos em que o policial estava em serviço, em que a alta foi de 40% de janeiro a outubro (de 220 para 308).

Por outro lado, em outubro deste ano aconteceu uma redução de 13% (de 38 para 33 vítimas) em relação ao mesmo mês do ano passado. Para Rocha, essa queda não pode ser atribuída a uma mudança de política do governo. “A gente não viu nenhuma sinalização nesse sentido, de um retorno àquela priorização da redução da letalidade, de uma profissionalização do uso da força, como a gente viu em metade de 2020, 2021 e 2022”, analisa. “Por isso que a gente tem que ser cuidadoso mesmo pra reportar essa redução da letalidade, porque pode ter sido só um ponto fora da curva mesmo”.

O pesquisador voltou a sinalizar que o tom da gestão se mantém, como os discursos em que o governador chamou as mortes na Operação Escudo de “efeito colateral”, ou quando alegou que denúncias de violações de direitos humanos são “narrativas”, o que foi repetido pelo secretário, além de o próprio comandante-geral da PM, coronel Cássio Araújo de Freitas, ter gravado vídeo em que orienta a tropa a não hesitar “em utilizar legítima defesa”.

Essa comparação com os homicídios dolosos é importante pois é uma das formas que a literatura especializada e pesquisadores utilizam para medir a violência policial e saber se há ou não abusos. Estudos do sociólogo Ignacio Cano consideram que a proporção ideal é de no máximo 10% de mortes pelas polícias em relação ao total de homicídios, enquanto o pesquisador Paul Chevigny sugere que índices maiores de 7% seriam considerados abusivos.

No estado, de janeiro a outubro, essa proporção ficou em 15,5%. No Guarujá, foi de 62,7%.

Já nos dados de homicídios, sem levar em conta as mortes pela polícia, há uma tendência de queda que vem se mantendo ao longo do ano. Outubro de 2023 contabilizou 204 vítimas, o menor número na série histórica. A própria secretaria destacou em nota que a redução do indicador é “uma prioridade das forças policiais” e atribuiu o resultado à criação do Sistema de Informação e Prevenção aos Crimes Contra a Vida (SPVida), lançado em fevereiro. “A plataforma automatiza os dados e auxilia as polícias a analisar a dinâmica criminal destes delitos, para que, desta forma, seja possível elaborar diagnósticos e planos de ações com o intuito de reduzir as mortes no Estado”, diz a pasta.

O pesquisador do Sou da Paz contesta essa justificativa. “É importante ter um olhar mais refinado, que a Secretaria consiga entender que crime que está reduzindo, onde, e se é algo que as próprias forças de segurança têm feito, ou se é uma dinâmica do próprio crime. A gente sabe que na história de São Paulo, nas últimas décadas, em alguns momentos foi a atuação do PCC que reduziu o número de homicídios, pacificando os confrontos nas periferias”, afirma.

Além disso, Rafael Rocha destaca o aumento da violência contra a mulher. Os estupros aumentaram 8% nos últimos 10 meses e os feminícios também aumentaram. “É importante reconhecer essa redução e tentar entender onde que está reduzindo, qual o tipo de crime que está reduzindo. Porque homicídio é uma grande cesta. A gente tem os próprios feminicídios, que a gente sabe que tem aumentado, então não é o feminicídio que está reduzindo”, afirma.

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