Sobre fome, ações voluntárias e Estado

Solidariedade é importante e ajuda a aliviar o sofrimento dos precarizados. Mas só com políticas públicas, interrompidas desde 2016, será possível superar miséria. Incentivo à agricultura camponesa e reforma agrária são caminhos cruciais

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Por Maister F. da Silva

Desde o início da pandemia multiplicaram-se ações de solidariedade capitaneadas por ONGs, movimentos sociais, partidos políticos, coletivos e até algumas empresas, destinaram seus recursos de responsabilidade social para ações de combate à fome e a insegurança alimentar. Esse tem sido o maior alento para milhões de famílias que encontravam-se em situação de extrema pobreza, desde antes de eclodir a crise sanitária.

Segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS) divulgada pelo IBGE ao final 2018, o país tinha 13,5 milhões pessoas com renda mensal per capita inferior a R$ 145, ou U$S 1,9 por dia, critério adotado pelo Banco Mundial para identificar a condição de extrema pobreza, número equivalente à população de Bolívia, Bélgica, Cuba, Grécia e Portugal.

Esse foi o saldo deixado pelo golpe de 2016 que desestruturou as políticas de combate à pobreza e a política agrária de promoção e incentivo a agricultura familiar e camponesa, responsável pela produção de alimentos no país. As políticas adotadas pelo governo Temer, destacando a Emenda Constitucional 95, que estabelece o Teto de Gastos, ceifaram linhas de crédito para os pequenos produtores e paralisaram ainda mais a reforma agrária.

Aliado as flexibilizações no mundo do trabalho, que gerou um contingente crescente de desempregados, precarizados e trabalhadores informais criaram um ambiente de instabilidade que vem deixando a população sem perspectiva. Desde 2016 o orçamento público deixou de priorizar ações de interesse social, para voltar-se aos interesses do rentismo. Todas as políticas sociais foram desestruturadas e reformuladas com vistas a atender os interesses do capital. O Plano Safra, então, foi praticamente capturado pelo agronegócio.

A agricultura familiar e camponesa além de ser a principal produtora de alimentos é responsável por sustentar a economia de aproximadamente 90% dos municípios com até 20 mil habitantes. Com mais de 4 milhões de estabelecimentos, a agricultura familiar e camponesa, ao mesmo tempo em que representa 77% dos estabelecimentos agrícolas, ocupa apenas 23% da área agricultável do país. Portanto, é de extrema importância para o desenvolvimento sustentável da nação e é o único setor produtivo do país com capacidade real de sustentar um programa sério de segurança e soberania alimentar, com alimento de qualidade.

A soberania do Brasil passa por uma ação de estado que seja capaz de colocar em perfeita simbiose o mundo rural e o urbano, ou seja, criar políticas de estado que garantam a produção, a comercialização, o estoques públicos e a distribuição de alimentos de forma que se possa proteger os produtores na baixa de preços, controlar a alta nos preços dos alimentos ao trabalhador urbano em períodos de escassez, manter um programa perene de combate à fome e a insegurança alimentar e atuar de maneira célere em períodos de excepcionalidade como agora durante a pandemia da covid-19.

As campanhas de solidariedade são importantes e devem continuar, pois estão tecendo uma teia de cooperação que vai além dos atos solidários, com articulações locais e nacionais. A partir delas, estão se organizando as bases do precariado brasileiro. Combater a fome passa também por questionar o sistema social vigente, desumano e predatório.

A fome apresentada em números já ocupa as principais manchetes, uma delas, trazida pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), aponta que 19 milhões de brasileiros enfrentam a fome no seu dia a dia e compõem a população em situação de insegurança alimentar grave. Além disso, que 116,8 milhões de brasileiros não têm acesso pleno e permanente a alimentos.

Esses números demonstram uma realidade que desafia a todos nós! Mesmo com solidariedade, é preciso ter de volta a estruturação de políticas públicas de combate à fome, que nos coloque novamente fora do mapa da fome. Mas porque associar a falta de políticas públicas com a fome se vivemos uma pandemia? Porque de 2018 a 2020, como mostra a pesquisa VigiSAN, o aumento da fome foi de 27,6% e enfrentávamos somente a pandemia da fome e da desestruturação da proteção social. A crise sanitária encontrou o estado brasileiro em frangalhos, sem capacidade de respostas mínimas.

A fome de hoje não tem a mesma face da fome retratada por Graciliano Ramos no clássico “Vidas Secas”. Não é da miséria esquelética das fotos que estampavam as revistas do passado. É fome de comida com falta de perspectiva. Depois de erradicada, a fome volta como um grito de socorro por cidadania.

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