Quando o Brasil Oficial se aproxima do Brasil Real

Ricos fingem esquecer que apoiaram governo com unhas e dentes, ao perceber que sua situação pode se degradar. Por isso, sobrevivência de Bolsonaro pode ter curto prazo — embora alguns desejem que saia para que tudo volte às rédeas do Capital

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Por Rodrigo Portella | Imagem: David Gropper

O sempre caricato e burlesco Brasil Oficial¹ encontra-se perplexo ante a uma aventura por ele patrocinada e incentivada. Embora pareça, não se trata de esquizofrenia, mais um desses modismos da psiqué neoliberal, mas do mais pragmático pensamento burguês que, ontem apoiava com unhas e dentes um governo neofascista que destruía a vida do Brasil Real mas que os garantia vultuosos retornos e hoje se vê em uma potencial crise, correndo o risco do oficial se aproximar do real; um choque de realismo que motivou inúmeros golpes na historia deste país.

A face mais sombria dos verdadeiros articuladores do Bolsonarismo se escancarou durante os longos meses de 2020. Para o dono de uma rede de lanches sem gosto e com batatas murchas, o Brazil não poderia parar “por 5 ou 7 mil que irão morrer”2. O descolado empreendedor do mercado financeiro contava com o orgulho que “nas classes altas, o pico da covid-19 já passou”3. E, reverberando-se um falso argumento elevado a truísmo, de um dilema entre economia e saúde, enquanto o desemprego se mantinha crescente, os trabalhos informais se tornavam majoritários e os pequenos e médios negócios se destruíam, a alta burguesia agrária e financeira apresentava ganhos nunca vistos, decorrentes, diretamente, deste estado de coisas oriundos da crise sanitária e econômica.

Compreender tal fenômeno nos exige um mínimo esforço histórico de retomar a reorientação de classes ocorrida a partir do golpe de 20164, em que uma “burguesia nacionalista” mínima perde espaço completo para os grandes conglomerados financeiros ligados à fração burguesa que outrora sonhou em ser portuguesa, francesa e que, hoje, quer ser americana. Se a causa central para a estagnação econômica do Brasil deriva, diretamente, dos desdobramentos macroeconômicos do Plano Real, essencialmente estagnacionista e dependente da presença do dólar, tal reposicionamento de classes representou uma vitória acachapante do Brasil Oficial frente ao Real que, talvez, a desgastada metáfora do “passar a boiada” seja incapaz de representar com a devida força.

Vimos a destruição não apenas dos superficiais ganhos do povo obtidos durante os governos petistas mas, também, da espinha dorsal dos direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988 que, na minha leitura, hoje, não passa de um documento histórico, sem qualquer respaldo material na sociedade real. Ao lado disso, incentivou-se a criação do irônico “ambiente saudável de negócios”, isto é, um misto entre política monetária, fiscal e macroeconomia, oriundas de fontes mentirosas – como Instituto Mises – e simplificadas pelo falacioso “Estado Mínimo” que, por essência, representou a vitória absoluta da burguesia.

Contudo, com uma oposição em estado letárgico – mas com forças eleitorais mínimas – esta classe decidiu dobrar a aposta e apoiar Jair Bolsonaro, um indivíduo popularesco de aspirações golpistas fortemente previsíveis em nome de uma verdadeira ditadura do capital liderada pelo guru das estantes vazias, ídolo supremo dos coletes pretos5. Independente da caracterização política deste governo, se meramente bonapartista6 ou, de fato, fascista7, a tônica central era a da articulação política em torno e a benefício exclusivo do grande capital.

Como no Cassino de Scorsese a aposta hoje se mostra inconsistente não por eventuais impulsos humanistas que, repentinamente, passaram a ocupar a cabeça dos banqueiros brasileiros, mas porque a classe vem, diariamente, perdendo dinheiro em virtude do colapso. Tal inversão de sinal, alardeada pelos aparelhos burgueses de mídia, como na Revista Exame, Valor Econômico e na Folha de São Paulo em suas cada vez mais presentes cartas em desacordo à gestão da pandemia demonstram que a sobrevivência de Bolsonaro tende a ter curto prazo. Contudo, é uma oposição pontual, que não pauta uma reconversão industrial ao país, tão essencial para uma vacinação em massa (pois, para eles é mais fácil ir até Miami) e, muito menos, defende um auxílio emergencial digno, em nome do fantasioso equilíbrio fiscal. Como outrora pontuou Gramsci, “tudo deve mudar para que tudo fique como está”.

O desespero surge, portanto, quando o Brasil Oficial, aquele em que a proteção à saúde com qualidade e excelência não é apenas um direito abstrato, dos corredores do Einstein e do Sírio Libanês se aproxima, ainda que distante, do Brasil Real, da superlotação de hospitais e de mortes por mera falta de insumos. Por muito menos, uma presidente democraticamente eleita fora retirada do seu cargo, por essa mesma burguesia que odiava ver a empregada doméstica no mesmo voo para o exterior, ainda que de alas distintas no avião.

Fato é que este ornitorrinco, nos termos de Chico de Oliveira, não caminha para ser algo superior e mais desenvolvido enquanto não tivermos uma superação profunda em face dessa burguesia, muito bem definida pelo imortal Leonel Brizola, como uma classe colonial de práticas capitalistas. O Brasil não caminhará para o que deveria ser, uma nação desenvolvida, inclusiva, menos desigual pois ele já é o que deveria ser, do ponto de vista do capitalismo mundial: uma nação dependente, fornecedora massiva de bens primários e de ganhos de capital, onde ganham as elites estrangeiras e uma pequena burguesia brasileira a estas associadas; nada mais.

O Brasil Real, de um povo rico, criativo, miscigenado e pulsante, tão bem descrito pelos nossos grandes patrimônios que são Milton Santos, Lélia Gonzales e tantos outros desta trincheira democrática radical que merece prosperar e, acima de tudo, viver, como poucos, de fato, vivem neste país. Nunca ficou tão evidente e escancarada a força e a existência da luta de classes quanto na pandemia e seus efeitos. Nenhuma conciliação com a classe burguesa é possível ou desejável; apenas a sua superação.

Afirmava Darcy que, na vida, ou o indivíduo se resigna ou se indigna. Este escrito faz parte deste esforço, tributário a Florestan Fernandes, para quem a solução dos problemas dos países capitalistas está na Revolução. Talvez por isso um tal velho barbudo se mantenha sempre atual quando, a certa altura de sua obra, diz que “a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.


1 Referência direta à crônica de Machado de Assis “Comentários da semana – 29 de Dezembro de 1861”. Disponível em: https://www.revistaprosaversoearte.com/o-pais-real-esse-e-bom-revela-os-melhores-instintos-mas-o-pais-oficial-esse-e-caricato-e-burlesco-machado-de-assis/

2 https://www.nsctotal.com.br/colunistas/dagmara-spautz/brasil-nao-pode-parar-por-5-ou-7-mil-que-vao-morrer-diz-dono-do-madero

3 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/brasil-esta-indo-bem-no-controle-do-coronavirus-e-pico-nas-classes-altas-ja-passou-diz-presidente-da-xp.shtml

4 BOITO JR., Armando. Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT. Campinas: Editora da Unicamp/São Paulo: Editora Unesp, 2018.

5 https://www.todabahia.com.br/publicitario-critica-estante-vazia-de-ministro-paulo-guedes-durante-live/

6 MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2006.

7 Evguiéni B. Pachukanis, Fascismo. São Paulo, Boitempo, 2017

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