O arcabouço fiscal, o bote salva-vidas e o transatlântico

Nas condições atuais, de baixo crescimento e juros altíssimos, proposta do ministro Haddad para “estabilizar a divida” pode exigir contenção brutal dos gastos sociais. Será um desastre político. Mas há pelo menos duas alternativas a ele

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Por Caio Vilella e Daniel Conceição

Título Original:
Bote salva-vidas ou Transatlântico rumo ao desenvolvimento: o que queremos do arcabouço fiscal?

A equipe econômica a serviço do governo do presidente Lula apresentou no final de março o chamado “novo arcabouço fiscal (NAF)”, para substituir o conjunto de regras fiscais que condicionam a gestão macroeconômica praticada hoje no país. Muitos textos já discutiram os detalhes do NAF, de modo que não nos debruçaremos sobre o texto do projeto de lei em si. O que pretendemos fazer aqui é apresentar um diagnóstico dos principais problemas econômicos que deveriam ser resolvidos pelo NAF. Ao fazê-lo, demonstraremos: ainda que prevaleça a ideia segundo a qual é preciso “estabilizar a dívida”, é possível oferecer um bote salva-vidas à economia, evitando que permaneça estagnada. E muito melhor, é claro, será esquecer a ortodoxia do “ajuste fiscal” e embarcar num transatlântico keynesiano com destino ao desenvolvimento.

A equipe econômica do governo parte do diagnóstico de que seria preciso estabilizar a dívida pública como razão do PIB para produzir uma queda da taxa de juros referencial e, com isso, estimular os investimentos privados. Diante disso, a equipe parece ter substituído a proposta de um choque de austeridade, tal qual promovido por Joaquim Levy em 2015, por uma reforma de saneamento fiscal mais gradual, que diminuiria a participação dos gastos públicos na renda agregada ao longo de mais tempo.

Em um texto recentemente publicado no site Outras Palavras, Antonio Martins elencou o que considerava serem “os erros de Haddad”. O texto se tratava, na verdade, de uma crítica antiliberal do NAF.

Naquele texto, o autor analisa a trajetória da dívida pública separando os efeitos dos resultados primário e nominal. Uma vez que o primeiro resultado considera todas as despesas e receitas do governo federal, com exceção do pagamento de juros, o autor sugere que um eventual ajuste fiscal seja feito através da redução do déficit nominal, uma vez que este inclui também os gastos com juros. Nas palavras de Antonio Martins, é como se houvesse um orçamento para o “andar de baixo” (primário), cada vez mais restrito legalmente, e um orçamento para o “andar de cima” (nominal), sobre o qual não há restrição, e através do qual se distribui renda para o 1% mais rico da sociedade na forma dos juros incidentes sobre o estoque da dívida. Enquanto o orçamento para o “andar de baixo” segue sendo cada vez mais rebaixado por constrangimentos legais desnecessária e cruelmente restritivos, o orçamento do “andar de cima” ostenta déficits sucessivos graças ao pagamento legalmente ilimitado de juros.

De maneira muito didática, Antonio Martins descreveu o que a macroeconomia do setor público chama de “condição de Domar”, em alusão ao texto que o autor de mesmo nome descreveu nos anos 1940. Nele, Evsey Domar explica que é possível estabilizar o tamanho da dívida pública como razão do PIB, ainda que o governo registre déficit no seu resultado primário. A ideia é simples: mesmo que o governo gaste mais do que arrecade, a dívida pode não subir em relação ao PIB se a taxa de crescimento do PIB for maior do que a taxa de juros real da dívida. É justamente sobre esta possibilidade estabilizadora da trajetória da dívida pública como proporção do produto da economia que até mesmo economistas liberais de renome como Larry Summers, Jason Furman e Olivier Blanchard, defensores ferrenhos da austeridade fiscal, têm produzido suas contribuições mais recentes.

Por exemplo, com uma taxa de juros real próxima de 8% ao ano, para estabilizar a dívida pública em relação ao PIB, supondo uma taxa de crescimento da ordem 1% em 2023, seria necessário registrar um superávit primário de cerca de 4,85% do PIB já este ano para compensar os gastos com juros da dívida para que o estoque de dívida pública não aumentasse mais do que o produto da economia. Assim, considerando o estoque inicial da dívida pública próximo de 70% do PIB e, considerando também as necessidades sociais e ambientais que o Brasil enfrenta, a tabela abaixo pode ser vista como um bote salva-vidas que permita que o governo amplie os seus gastos sem desagradar todos aqueles que defendem a necessidade de estabilizar a dívida pública como fração do PIB.

Os números mostram que um déficit primário de 2% do PIB, ainda insuficiente para garantir os direitos sociais garantidos na Constituição Federal, seria compatível com uma relação dívida/PIB estável caso a taxa de juros real e o crescimento do PIB tivessem os seguintes valores:

2%3%0,06%
2%4%1,03%
2%5%2,00%

Na primeira linha vemos que a dívida brasileira permaneceria estável mesmo com um déficit primário de 2% do PIB, bastando combinar uma taxa de crescimento de 3% com uma taxa de juro real igual a zero. Caso seja escolhida uma taxa de juros real positiva de 1%, a segunda linha mostra que seria necessário que a economia crescesse 4% para estabilizar a dívida/PIB, com um déficit público primário de 2% do PIB. Por fim, na terceira linha vemos o caso em que o déficit primário de 2% do PIB gera um crescimento de 5% do produto, possibilitando uma taxa de juros real de 2% e mesmo assim garantindo a estabilidade da dívida pública como fração do PIB nos atuais 70%.

Basicamente, mesmo se decidíssemos abraçar as recomendações de economistas liberais defensores da austeridade, como Larry Summers, deveríamos estar debatendo como garantir que um déficit de 2% do PIB fosse capaz de promover a maior taxa de crescimento possível, alinhando os resultados verificados com a condução da taxa de juros real. Repare que estamos falando de manter uma taxa referencial de juros de 2 pontos percentuais acima da inflação enquanto a maioria dos países mundo afora está com taxas nominais de juros abaixo da inflação. Sendo assim, a previsão de déficits primários na LDO aliada a uma política monetária menos restritiva pelo menos ofereceria um bote salva-vidas para a economia brasileira, capaz de evitar uma recessão politicamente muito perigosa, e viável mesmo para os economistas preocupados com a trajetória da dívida pública como fração do PIB. Resta mencionar ainda que o colchão de reservas internacionais seria um aliado importante para suavizar a trajetória da taxa de câmbio neste contexto.

Por outro lado, para além dos economistas liberais mais renomados, o debate internacional vem sendo também ocupado por economistas heterodoxos que questionam mais fundamentalmente o apego convencional à austeridade fiscal, dos quais podemos citar Mariana Mazzucato, Stephanie Kelton e Randall Wray, entre outros. Nas palavras de Mariana Mazzucato, o governo deve se comprometer com suas missões. Para estes economistas, a dívida pública é um instrumento e não um fim em si, pouco importando seu nível ou sua trajetória sobre o PIB. Seja para o governo estabelecer a vitória bélica sobre um inimigo ou chegar à Lua, ele deve planejar suas metas, objetivos, estratégias, políticas e gastos para ser bem-sucedido em suas missões. Hoje, por exemplo, economistas heterodoxos planejam como utilizar a dívida pública para fazer uma transição energética para fontes renováveis nos EUA e na Europa. No caso em questão, os gastos planejados fariam a dívida pública crescer em proporção ao PIB e isso não é necessariamente um impedimento. Essa foi a mensagem fundamental de John Maynard Keynes, ao longo de sua vasta obra: governos podem e devem gastar tanto quanto necessário para empurrarem suas economias até os seus limites produtivos!

Se embarcarmos neste “transatlântico Keynesiano”, poderemos identificar metas sociais objetivas para serem incluídas no Plano Pluirianual de investimentos do Estado (PPA), visando garantir os direitos sociais constitucionais, bem como o desenvolvimento do país. No passado, o Brasil já contou com seu Plano de Metas, três Planos Nacionais de Desenvolvimento e com a Estratégia de Substituição de Importações. Seria o caso de tirarmos lições do passado, considerarmos os desafios do século XXI e direcionarmos o leme do transatlântico para um futuro que queremos.

O déficit público só seria inflacionário se estimulasse a demanda por bens e serviços sem que houvesse oferta disponível. Daí a necessidade do planejamento adequado de cada etapa de implementação de um plano econômico, de cada estratégia a ser perseguida, e cada política a ser adotada. Guardemos os recursos internacionais para a compra de bens e serviços não disponíveis em Reais e utilizemos o quanto de dívida pública for necessário para custear a missão de desenvolvimento social, ambiental e econômico do Brasil. Esta é uma oportunidade de ouro que o governo Lula tem na mão para instituir o projeto de país que julga mais justo e evitar o retorno de uma oposição extremada cujo projeto de país é destruir “tudo o que está aí”. É hora de projetar o futuro, não é hora de se preocupar com o equilíbrio do orçamento. Se os economistas a serviço do governo não são competentes para projetar os gastos adequadamente, devemos procurar os que sejam.

Ouvir propostas e projeções de operadores do mercado financeiro, normalmente ignorantes sobre o debate na fronteira do conhecimento econômico e cujos interesses não estão necessariamente alinhados com a promoção do crescimento econômico sustentável e estável, é o custo que pagamos por vivermos em uma democracia. Justamente por apreciarmos as belezas da democracia oferecemos uma proposta não ideal de “bote salva-vidas” para a economia brasileira, caso a maioria dos representantes parlamentares acabe concordando com o diagnóstico liberal sobre a necessidade de se estabilizar a dívida pública como fração do PIB. Neste caso, é melhor que nossa sociedade esteja num bote salva-vidas do que tentando não se afogar no meio de um mar revolto. Nesse bote salva-vidas o déficit fiscal primário e a taxa de juros seriam planejados para que a economia crescesse o suficiente para que a relação entre a dívida pública e o PIB se mantivesse estável, como exigem (disfuncionalmente) os porta-vozes do mercado financeiro. Muito melhor ainda seria colocarmos nossa economia num “transatlântico Keynesiano” em que fosse reconhecido que a trajetória da dívida pública como razão do PIB, em si, não importa. O que importa é o impacto das decisões fiscais do governo sobre o emprego, e sobre o nível e composição do produto e da renda da economia.

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