Não vale enfrentar Bolsonaro e esquecer neoliberalismo

Paulo Guedes arrebanhou eleitores para o capitão, afirmando que pisaria no acelerador das contrarreformas iniciadas por Michel Temer. Agora, os mesmos liberais “civilizados” pulam do barco. Estariam mesmo interessados em democracia?

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Por Gustavo Barbosa

Em fevereiro de 1848, uma aliança entre a burguesia e o operariado francês derrubou o reinado do rei Luís Felipe. No anos anteriores, a partir da revolução de 1789, a França pulou do regime absolutista ao republicano, passando pela monarquia parlamentar e chegando inclusive a assumir a forma de império sob Napoleão. Luís Felipe, conhecido como o “rei banqueiro”, sentiu na pele como, apesar dos esforços em reabilitar o absolutismo por parte do consórcio formado por Prússia, Áustria e Rússia, o espírito revolucionário ainda rondava a França.

Com o passar dos meses, foi ficando claro que os interesses dos grupos que o destronaram eram inconciliáveis. Em razão da conquista via baionetas, o proletariado proclamou o novo regime como República Social, reconhecendo, dentre outras coisas, o direito ao sufrágio universal. Mas o fim do voto censitário era apenas uma das muitas demandas que deixaram as facções burguesas descontentes. Os rumos que a França tomaria dependeria da queda de braço entre a burguesia e classe trabalhadora, que, obviamente, não se calou diante das investidas por parte da Assembleia Nacional Constituinte instituída após a queda da monarquia.

A Insurreição de Junho foi o primeiro grande confronto entre burguesia e proletariado, cujo massacre – com milhares de mortos e outros milhares de trabalhadores deportados sem direito à defesa — selou o destino da classe trabalhadora, fazendo com que, naquele momento, a burguesia tivesse o controle político da França.

Meio às disputas entre facções burguesas, Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão, foi eleito presidente da República em dezembro de 1848. No final de 1852, deu um golpe e restaurou a monarquia, movimento antecipado por Marx em “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”. O pensador alemão explica como, nas formas democráticas liberais, importam menos a pessoa que governa e mais as estruturas e mecanismos de reprodução do capital. Luís Bonaparte, longe de ser burguês, foi, naquelas circunstâncias, a aposta de parcelas da burguesia para administrar o Estado e manter os níveis de acumulação que julgavam adequados.

Marx escreveu que “assim como na vida privada se costuma diferenciar entre o que uma pessoa pensa e diz de si mesmo e o que ela realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se diferenciar tanto mais as fraseologias e ilusões nutridas pelos partidos do seu verdadeiro organismo e dos seus reais interesses”. A tomada do poder por Napoleão III representou um avanço autoritário da revolução republicana de fevereiro de 1848. Junho foi o marco definitivo de antagonismos que, por sua própria essência, não podiam andar de mãos dadas para além da esquina. No entanto, a lição de que aliança pontual e estratégica é diferente de aliança programática parece ainda não ter sido muito bem assimilada por alguns setores da esquerda.

Durante a campanha de 2018, Paulo Guedes afirmou que pretendia dar continuidade ao que Michel Temer vinha fazendo. Com uma pequena diferença, porém: pisaria ainda mais fundo no acelerador. Amplos segmentos do empresariado pularam sem qualquer vergonha no barco do bolsonarismo. Arregimentados por Guedes e inspirados por seu selo de confiança, viram no ex-capitão o trunfo para derrotar o PT, na esperança que a rapina prosseguiria sem maiores percalços.

Na mesma semana em que o rei Luís Felipe caiu, Marx e Engels publicaram o Manifesto do Partido Comunista. Na parte em que dedicam ao “socialismo conservador ou burguês”, descrevem suas finalidades como voltadas a promover reformas “que nada alteram na relação capital e trabalho assalariado, mas, no melhor dos casos, reduzem para a burguesia o ônus de sua dominação”. Nesse contexto, até o livre mercado passa a ser defendido como interesse da classe trabalhadora.

Vê-se que sobram razões para desconfiar da construção de frentes que demonizam a figura de Bolsonaro mas se alinham espiritualmente ao programa neoliberal de seu governo. Manifestos que não mencionam a precarização das condições de vida dos trabalhadores, impiedosamente açoitados por reformas como a trabalhista e a da Previdência e por políticas de austeridade, sinalizam que, para seus idealizadores, algo precisa mudar para que tudo permaneça piorando. E esta mudança pode ocorrer por meio da domesticação de Bolsonaro a curto prazo ou de uma alternativa à direita a médio. Na essência, o propósito do mandatário e de tais coletivos é o mesmo, apesar da sofisticada e elegante defesa da democracia que FHC – para quem Bolsonaro merece mais tolerância — e a direita civilizada conseguem fazer.

Assim, estratégias de enfrentamento real ao bolsonarismo devem considerar ao menos dois fatores: o primeiro, de que as possibilidades de conciliação de classes, tão presentes nos governos petistas, se exauriram há tempos; o segundo, de que a pessoa física de Bolsonaro é um problema secundário diante das políticas ultraliberais do seu governo. Na reação à engatinhante rede de proteção social estabelecida pela Constituição de 1988, todos os gatos são pardos, o que lhes permite recitar seus lugares-comuns sob a proteção da noite, explica Marx. Por outro lado, foi à luz do dia que, em junho de 1848, na resistência do operariado francês, despontou a bandeira vermelha como símbolo de toda uma classe.

Lições que permanecem atuais se realmente desejamos conter a barbárie.

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2 comentários para "Não vale enfrentar Bolsonaro e esquecer neoliberalismo"

  1. Hugo Belarmino disse:

    Ótimo texto Gustavo. Só senti falta de uma comparação histórica com um momento mais “semelhante”, como a ascensão do nazi-fascismo numa conjuntura não-revolucionária. A ascensão de Bolsonaro significa mais do que uma “pessoa física”, que de fato é bastante desprezível e ficará para “a lata do lixo da história”. Mas o Partido de Bolsonaro é amplo e forte: chama-se PMM (Partido Miliciano e Militar), por isso a preocupação sobre os rumos que continuamos seguindo, pois falta responsabilidade histórica na construção de uma frente ampla que contemple essas duas facetas que você tão bem enunciou: derrotar o neofascimo sem cair (ou mais propriamente continuar) no neoliberalismo. Você tem escrito cada vez melhor, grande abraço!

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