Santos: ocupação sob ataque

Há 20 anos, num edifício histórico para a luta antimanicomial, surgiu uma comunidade vibrante. Justiça quer despejá-la. O que caso diz sobre as remoções na pandemia e o descaso pelo usucapião, em cidade marcada pela especulação imobiliária

Imagem: Alexandre Andreazzi
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Depois de 20 anos morando no imóvel e pouco mais de 10 anos de ação de usucapião coletiva, a comunidade da Ocupação Anchieta, localizada no bairro Vila Belmiro em Santos/SP, mais uma vez está sob ameaça de despejo. As 70 famílias residentes no edifício estão sob risco iminente de ficarem desabrigadas, caso o pedido de imissão na posse apresentado em novembro/2021 seja julgado procedente.

A ocupação tem o nome do antigo hospital psiquiátrico que funcionou naquele imóvel por 40 anos. A Casa de Saúde Anchieta, fundada em 1951, foi um local de internação de pacientes mentais e, após intervenção determinada pela vereadora e ex-prefeita à época, Telma de Souza (PT) em 1989, a instituição foi paulatinamente sendo desativada. O movimento pela humanização ganhou força a partir da intervenção no Anchieta, que se tornou um marco da luta antimanicomial no país.

Após a desativação completa, o imóvel ficou abandonado. Pouco a pouco, foram chegando as primeiras famílias, em sua maioria, vindos da periferia da cidade em busca de moradia digna em área bem localizada. Os antigos quartos, consultórios e enfermarias foram sendo transformados em apartamentos, os pátios em quintais coletivos e o som das dores e abandonos foi substituído pelos risos de crianças brincando, de festas, de encontros. Nos anos 2000, a Ocupação Anchieta já estava consolidada. Na dinâmica do cotidiano, novas famílias foram sendo constituídas ali, crianças nascendo, mais gente chegando, e outros companheiros indo embora. O passado da chamada “Casas dos horrores” havia ficado para trás, e o prédio já se consolidava como residencial. Uma nova camada de memória foi incorporada ao antigo passado daquele edifício simbólico: a moradia já é parte desse processo histórico.

Em 2010, as moradoras e moradores ingressaram na justiça com ação de usucapião com o propósito de consolidar a situação que já ocorre de fato: a posse unida ao tempo. Apresentaram provas de que residiam no local há pelo menos 10 anos, ocupando terra urbanizada bem localizada, que estava subutilizada, de modo a fazer valer sua função social, conforme determina a Constituição. A ação ainda está em andamento na justiça estadual, mas, ainda assim, as famílias residentes na Ocupação Anchieta estão sob ameaça de despejo de maneira inédita: a Justiça do Trabalho da cidade de Santos alienou o imóvel, ignorou as famílias, a usucapião, o direito à moradia e à cidade.

A venda do imóvel por uma dívida trabalhista

Ocupação Anchieta, em Santos-SP

Em 1999, para garantir uma dívida trabalhista de 24 mil reais, o prédio foi penhorado e, em 2007, chegou a ser avaliado em R$2.600.000,00. Antes de ir a leilão, alguns empresários requereram ao juiz da 1ª Vara da Justiça do Trabalho a alienação do imóvel, numa transação célere e altamente vantajosa. Em uma negociação inusitada, o valor da alienação foi proposto pelos próprios compradores. A avaliação, realizada oito anos antes, não foi atualizada e, sob aquele valor, ainda foram aplicados 20% de desconto. Em que pese a fama de morosidade da justiça, nesse caso específico, em 24 horas tudo estava resolvido. Era 19 de maio de 2015.

Porém, muito antes da venda do imóvel ocorrer, a justiça trabalhista havia sido informada de que o imóvel era residência de diversas famílias, assim como da existência da ação de usucapião. O valor atualizado do crédito trabalhista, em 2015, era de 90 mil reais: factível de ser pago pelas famílias ocupantes do imóvel. Entretanto, a justiça do trabalho da cidade de Santos seguiu outro entendimento, seguiu com a negociação e, tão logo foi possível, expediu mandado de imissão na posse (despejo). Naquele momento, o imóvel possuía uma dívida de IPTU, que foi abatida do valor total da compra. Contudo, até 2019 não havia sido pago e, ainda hoje, não é possível comprovar sua quitação nos autos do processo. Além deste, o Imposto sobre Transação de Bens e Imóveis (ITBI) foi regularizado somente em 2021, depois de ação judicial em que a Prefeitura executou a cobrança.

A partir de 2015, algumas ordens de despejo foram expedidas, mas posteriormente suspensas. Mesmo assim, em agosto de 2021, em nova ofensiva, os empresários ofereceram um valor irrisório para que cada família deixasse o edifício. A Prefeitura Municipal permanece alheia ao processo. A Companhia de Habitação da Baixada Santista (Cohab Santista) disse, em nota oficial, que não existe disponibilidade de empreendimento habitacional para essa demanda no momento. A indicação é para que as famílias se cadastrem no Conselho Municipal de Habitação, no segmento por moradia de interesse social, e no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS).

A questão da moradia popular em Santos

Para além do enfrentamento do déficit e da precariedade habitacional, está em jogo a produção de um território mais democrático e inclusivo, tanto na escala intraurbana quanto metropolitana. Desde a segunda metade do século XIX, Santos passa por conflitos para localização habitacional de sua população economicamente mais fragilizada, inicialmente dentro do perímetro da cidade e, depois, extrapolando os limites do município. Apesar da integração territorial da Região Metropolitana da Baixada Santista (RMBS), a questão da moradia popular não aparece como prioridade na agenda do órgão regulador metropolitano (Agência Metropolitana da Baixada Santista – AGEM). Entretanto, a consequência da ineficácia de políticas voltadas para provisão de moradia popular em Santos tem influenciado diretamente a dinâmica das cidades vizinhas, especialmente do ponto de vista da mobilidade. A escassez de terrenos e o alto valor daqueles à beira-mar, cujo preço acaba por reverberar para o restante da cidade como em um “jogo de bilhar”, transformam Santos em uma cidade quase inacessível. Isso repercute na chamada “mobilidade pendular” da população economicamente ativa, que significa o movimento de trabalhadores que exercem regularmente suas atividades em um município diferente daquele em que residem.

Intervenção foi determinada pela então prefeita de Santos, Telma de Souza, em 1989 — Foto: Arquivo/Jornal A Tribuna

Também é consequência direta desse processo a precarização da moradia na região com aumento progressivo de ocupações nas encostas da Serra do Mar próximo a Cubatão, nos manguezais e morros, ao longo das rodovias, na área continental de São Vicente, além do crescimento no número de cortiços no centro da cidade. Esse cenário é ainda mais agravado com a intensificação do desemprego, do trabalho informal, do endividamento, da precariedade e da fome, efeitos que já se apresentavam nos últimos anos com o avanço das políticas neoliberais, mas que são aprofundados como reflexos sociais da pandemia de Covid-19.

As características topográficas e a reduzida dimensão do território municipal fazem com que o poder público tenha papel fundamental para assegurar a permanência e a existência de grupos economicamente fragilizados na cidade, garantindo um Estado Democrático de Direito. A desigualdade socioespacial está diretamente relacionada à distribuição de investimentos públicos e de infraestrutura urbana na cidade. Constitui desrespeito ao direito à moradia digna, nos termos fixados pelos instrumentos internacionais de direitos humanos, habitações isoladas de oportunidades de emprego, equipamentos de saúde, escolas, creches e outras instalações. No caso da Ocupação Anchieta, luta-se pelo direito à moradia digna bem localizada, com maior possibilidade de profissionalização e oportunidades de emprego, além de menor risco de exposição à violência para grupos que já se encontram em situação de vulnerabilidade, dada sua situação socioeconômica. A ideia da raridade do solo não pode se tornar um legitimador da segregação socioespacial na Baixada Santista.

No Brasil, a terra vale muito; em Santos não poderia ser diferente. Na cidade dividida entre o maior porto exportador do Brasil e a maior favela sobre palafitas da América Latina (Dique da Vila Gilda), até a lama tem valor.

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7 comentários para "Santos: ocupação sob ataque"

  1. Pingback: toto sanitary
  2. Absurda decisão de uma justiça elitista e mercenária na Dubai do Brejo, escancara a insensibilidade e frieza do santista. Em plena pandemia, diante da falta de uma política habitacional que contemple os mais vulneráveis, volta a perseguição aos moradores do prédio do Anchieta. Mas, no mês de dezembro qnd se comemora o Natal irão todos à missa, celebrando hipocritamente o nascimento daquele que defendeu os pobres e alimentou os famintos. Tenho vergonha de morar nessa cidade. #OCUPAÇÃOANCHIETAFICA

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