Qual o caminho para construir metrópoles ecológicas?

Cidades espraiadas, sem fronteiras com a natureza, como propunha Wright, ou adensá-las, em prol do equilíbrio ecológico, segundo Le Corbusier? Pós-pandemia exigirá superar polêmicas — e redesenho urbano, a partir do bem-estar e do Comum

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Por Adalberto Retto Jr, no Le Monde Diplomatique Brasil

Não há nenhum registro histórico que indique que dois dos maiores arquitetos modernos no cenário internacional conheceram-se pessoalmente. No entanto, é fato notório que as visões do americano Frank Lloyd Wright (1867–1959) e do franco-suíço Le Corbusier (1887–1965) são irreconciliáveis. Em um acalorado debate público em 1932 nas páginas do New York Times, a ecocidade do futuro – que o próprio Wright chamou de Broadacre City – deveria caracterizar-se por baixa densidade, extensão horizontal e distribuição no ambiente natural até o desaparecimento definitivo da tradicional fronteira entre cidade e campo, como teorizado em seu conhecido ensaio: The Disappearing City[1].

Em vez disso, a formulação de Le Corbusier visava restaurar o equilíbrio entre o homem e a natureza por meio do desenvolvimento vertical da metrópole. O uso intensivo do solo, ao invés de extensivo, liberaria espaço para as áreas verdes circundantes e tornaria a vida na cidade ecologicamente sustentável no longo prazo. Talvez a realização histórica mais famosa do sonho funcionalista de Le Corbusier seja Chandigarh, a capital do Estado de Punjab, na Índia, que o arquiteto franco-suíço projetou na década de 1950 por encomenda do então primeiro-ministro indiano, Jawaharlal Nehru (1889—1964).

Naqueles mesmos anos, mais precisamente em 1926, John Nolen (1869–1937) comparou o fato de reorganizar e reconstruir cidades existentes com a construção de novas cidades. O principal aspecto a embasar o argumento do norte-americano seria o de aumentar a consciência sobre o que acarretaria o processo de fundação de um novo organismo urbano, visto que aí estariam envolvidas novas comunidades. O problema de construir novas cidades é, portanto, diferente de reorganizar cidades existentes: projetar (e construir) novas cidades significaria utilizar conhecimentos, potencialidades, previsões. Novas cidades deveriam expressar novos critérios e novos ideais que pudessem resolver problemas modernos e responder a novas situações.

Em retrospectiva, foi a cidade vertical de Le Corbusier que prevaleceu, encorajou e, ao mesmo tempo, absorveu o fenômeno do adensamento longe da natureza e que, infelizmente, ainda se coloca como paradigma dominante para alguns arquitetos e gestores.

A grande densidade populacional e a verticalização (Le Corbusier), ambas gerando sérias questões ambientais, como ilhas de calor por exemplo, ainda são demandas que emergem e persistem no cenário contemporâneo. Segundo estimativa das Nações Unidas, em 2020 a população dos centros urbanos ultrapassou a do campo pela primeira vez na história e o maior crescimento se concentrará nas metrópoles que, hoje, já contam mais de dez milhões de habitantes. Obviamente, em cidades com alta densidade populacional, a temperatura tende a ser mais alta, em parte porque o concreto dos edifícios absorve mais energia solar do que as áreas verdes e, em parte, porque o calor emitido por carros e aparelhos de ar-condicionado dissipa-se mais lentamente. Isso sem mencionar a barreira propiciada pelos arranha-céus, barreira que desenha o perfil vertical das cidades/metrópoles modernas e das cidades médias, impedindo a livre circulação dos ventos.

Levando em conta os dados do aquecimento global e as temperaturas mais elevadas registradas nas cidades em comparação com as zonas rurais, será difícil reverter a desastrosa espiral atual e as cidades do futuro correm o risco de se tornarem áreas dramaticamente escaldantes.

Questionar a trajetória desse tipo de desenvolvimento é também tentar conter o aquecimento global. Um estudo realizado recentemente pela Politécnica de Zurique prevê que, em 2050, Madri (média 14,5o C) terá o clima atual de Marrakesh (média 20,5o C); Estocolmo (média 8,4o C), o clima de Budapeste (média 11,1o C); Londres (média 10,8o C), o de Barcelona (média 15,5oC); ​​Seattle (média 10,8o C), o de São Francisco (média 13,5o C); e Tóquio (média 15,2o C), de Changsha, na China (média 23,2o C).

Nesse sentido, um retorno ao campo proposto por Wright – supondo que isso ainda fosse possível – não é uma solução desejável ou viável hoje. A abordagem idealizada pelo arquiteto de Wisconsin não é adaptada às cidades do terceiro milênio, pois previa uma mobilidade baseada na liberdade do transporte individual que, hoje, é o maior fardo do qual as metrópoles hipercongestionadas tentam se libertar.

Um exemplo virtuoso pode ser encontrado por ocasião da crise mundial de 2008-9, quando a Europa investiu 24 bilhões; os Estados Unidos, 100 bilhões e a China, 220 bilhões no setor verde. Em apenas um ano, as emissões globais de CO2 caíram 460 milhões de toneladas e, nos nove anos seguintes, a taxa média de crescimento anual das emissões foi de 1,7%, diante dos 3% nos nove anos anteriores. Tudo isso aconteceu sem maiores problemas para a economia. Aliás, na Europa entre 1990 e 2018 houve uma redução nas emissões de carbono de 23% com um crescimento do produto interno bruto de 60% (PASOTTI, 2020).

Ao longo dos anos, as questões de sustentabilidade e bem-estar ambiental têm assumido considerável importância na agenda política internacional e nacional. Em setembro de 2015, os 193 países membros da ONU assinaram a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável a fim de promover o bem-estar humano e proteger o meio ambiente. O documento reúne os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em um único programa de ação que visa erradicar a pobreza, combater as desigualdades, promover o desenvolvimento social e econômico, enfrentar os desafios das mudanças climáticas e construir sociedades pacíficas até 2030.

O relatório que trata desses Objetivos de Desenvolvimento Sustentável destacou estudos para desenvolver indicadores que pudessem representar a evolução das três dimensões fundamentais (social, econômica e ambiental) que caracterizam os ODS. Num primeiro experimento, estudou-se a tendência dessas três dimensões entre 2010 e 2018, através da desagregação dos 17 objetivos para cada dimensão considerada, conforme o diagrama abaixo.

A partir dessa subdivisão, foram considerados, em cada país, os indicadores para os quais existiam séries históricas do período considerado (2010-2018). Tais indicadores foram trazidos a uma escala comum, mediante procedimentos de normalização, e agrupados por meio da média geométrica. Pelas análises, percebeu-se que, no período considerado, os indicadores mostraram um avanço generalizado na componente ambiental, graças aos avanços alcançados no domínio das energias renováveis ​​e ao consumo de recursos responsáveis. Na componente social, a melhora deveu-se e aos progressos realizados nos campos da saúde e da educação. A dimensão econômica, por outro lado, apresentou piora nos primeiros três anos, até 2013, quando houve queda nas taxas de produção, havendo uma melhora nos anos seguintes.

Na sequência desse estudo experimental, verificou-se, portanto, que a introdução dos indicadores proporciona uma visão mais ampla do modo de interpretar a evolução dos ODS.

A pandemia destacou ainda mais o frágil equilíbrio entre saúde, meio ambiente e bem-estar; mostrou como a questão da sustentabilidade ambiental está intimamente ligada às questões econômica e social, e como a dinâmica existente entre esses componentes tem um caráter global. A emergência de saúde, que ora enfrentamos, e a crise econômica associada a ela representam mais uma dificuldade para alcançar os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável definidos pelas Nações Unidas.

Considerando o fato de que ainda não saímos da pandemia de Covid-19, ainda é difícil estabelecer, em termos quantitativos, seus impactos nos diferentes países, mas é possível formular a hipótese de quais ODS sofrerão mais danos e aqueles que poderão sair fortalecidos desta conjuntura. É possível, portanto, fazer uma avaliação qualitativa dos efeitos da crise sobre o cumprimento dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, tentando prever como e quais efeitos da pandemia afetarão a economia e quanta atenção os países dedicarão aos desafios colocados pela Agenda 2030.

Além disso, com base em algumas análises, algumas opiniões prevalentes afirmam que a pandemia provocará alterações em 10 dos 17 objetivos já listados. Para os remanescentes, espera-se uma situação de substancial invariabilidade. Em geral, os objetivos que mais sofreriam impactos negativos seriam aqueles diretamente relacionados à esfera social, portanto, inerentes à redução da pobreza, da fome e da desigualdade, mas também ao trabalho, ao crescimento econômico e à educação de qualidade.

Embora estejamos diante de uma emergência sanitária, o objetivo referente a saúde e bem-estar não parece ter recebido um impacto negativo; ao contrário, prevalecem as opiniões otimistas. Outros objetivos sobre os quais prevalecem julgamentos positivos são os objetivos referentes a: Indústria, Inovação e Infraestrutura, Cidades e Comunidades Sustentáveis, Consumo e Produção Responsáveis, ​​e Ação pelo Clima.

Em vez disso, um predomínio de julgamentos inalterados sobre os outros objetivos surgiu principalmente em relação aos temas da conservação e defesa do meio ambiente, igualdade de gênero, água limpa e higiene, energia limpa e acessível, vida subaquática, vida na terra, paz, justiça forte e instituições, parcerias para objetivos.

Desde os primeiros tempos, a literatura sempre tratou de recontar ou historiar as epidemias que ocorreram na história, sem abordar as consequências; talvez porque o medo da pandemia prenda as pessoas ao presente e, assim, não se consiga imaginar um futuro. Mas foi justamente a história que nos permitiu saber o que aconteceu a seguir: a peste do século XIV, que dizimou a Europa, teve como “depois” o Renascimento; a peste do século XVII, que dizimou Londres, teve como “depois” o nascimento da nova capital idealizada por Christopher Wren; o cólera do século XIX, que afetou a maioria das cidades europeias, teve como “depois” o progresso da medicina, da ciência e, pela primeira vez, a ideia de uma cidade saudável.

Agora, em 2021, neste período de pandemia global que ainda vivemos, no qual o depois ainda não foi escrito, temos de nos perguntar como imaginamos o futuro de nossas vidas, o que vai mudar, o que permanecerá inalterado e o que será necessário mudar para o futuro.

No debate científico, econômico e cultural, concomitante ao enfrentamento da pandemia, estudiosos dos diferentes campos disciplinares que lidam com as questões urbana e territorial começaram a refletir sobre quais seriam as consequências em termos de tempo e espaço em nossas cidades e territórios.

Daí, dois cenários principais surgiram no pós-Covid-19. O primeiro vê a pandemia como um evento que, uma vez passada a emergência, não deixará rastros, o território e os modelos de assentamento nele baseados não mudarão e, no final, passada a crise, tudo será como antes.

O segundo cenário, por outro lado, vê a pandemia de Covid-19 não como uma simples “suspensão”, depois da qual tudo será como antes. Ao contrário, o que estamos vivenciando representa um dos maiores processos de mudança cultural dos últimos séculos. Em outras palavras, a pandemia representa um acontecimento capaz de mudar radicalmente nosso modo de viver e de relacionar-se com o espaço envoltório, os padrões de povoamento, a organização da mobilidade, a produção, a gestão e o consumo; um evento capaz de restabelecer um novo equilíbrio entre homem, natureza e tecnologia.

Foi levantada até mesmo a hipótese de uma contraurbanização, com a mudança das cidades para áreas mais internas e antigas aldeias abandonadas; a emergência da Covid-19 reabriu, assim, o antigo debate “cidade versus campo”, do qual participaram vários arquitetos de renome internacional.

Ao redor do mundo temos exemplos de como governos, urbanistas e arquitetos preparam-se para redesenhar conjuntamente as metrópoles ecológicas do amanhã. Em Melbourne, por exemplo, a nova sede da administração municipal foi recentemente construída para ser autônoma (em 85%) com relação à eletricidade que consome e (em 70%) das necessidades de água. O novo Reichstag de Berlim, por outro lado, usa óleo combustível vegetal e sem carbono para reduzir suas emissões em 94%. Até 2030, cerca de três milhões de árvores serão plantadas em Milão, graças ao projeto de reflorestamento urbano “ForestaMi”, que conta com o arquiteto Stefano Boeri, conhecido pelo inovador projeto da Floresta Vertical, agora exportado para todo o mundo. Los Angeles, uma das cidades mais quentes dos Estados Unidos, lançou recentemente um plano de adaptação climática com o qual pretende reduzir em um grau e meio a temperatura média da cidade utilizando uma cobertura viária capaz de refletir os raios solares, sistemas de recuperação de águas pluviais e reflorestamento urbano.

Em conclusão, percebe-se que as cidades têm um forte potencial na gestão de situações de crise, porém as estratégias a serem postas em ação, para mitigar os riscos causados ​​pelo evento, devem ser claramente avaliadas seguindo uma abordagem sustentável dos pontos de vista econômico, ambiental e social.

A resiliência de uma cidade também reside na opção pela sustentabilidade de uma intervenção de construção em vez de outra, se tiver sido concebida de forma a minimizar os impactos sociais, ambientais e econômicos negativos; a resiliência representa, portanto, uma das características que contribuem para a sustentabilidade da cidade.

No caso brasileiro, todavia, desenhar as cidades do futuro talvez exija ir além dos eixos supracitados, pois é preciso incrementar o desenvolvimento de processos de manifestações artísticas, culturais e simbólicas que envolvem comunidades e que, em certa medida, ainda geram conflitos. Contudo, o conflito é natural e inerente ao ser humano e a forma de concebê-lo, entendendo sua definição, deve ser a de se construir propostas e cenários que tenham impacto no desenvolvimento de estratégias nas gestões municipais.

A metáfora utilizada no subtítulo “A cidade como um Jogo de Cartas” alude ao livro homônimo do arquiteto e urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1943-1989), publicado em 1988. Segundo o autor, para que uma cidade atinja um nível de desenvolvimento digno, é necessário que cada cidadão se torne um urbanista seja trabalhando, deslocando-se ou vivendo na cidade, pois, assim estará contribuindo para refazer o espaço urbano. Para tal, não se pode apostar em baralhos com regras diferentes e sem um campeonato limpo. Tampouco pode-se depender daquele que se diz o dono das cartas e que só admite jogadas de seu interesse. Cabe ao especialista (urbanista, planejador, arquiteto), portanto, assumir um papel dentro dessa perspectiva, já que é ele que acompanha a partida com interesse, procura dirimir as dúvidas e solucionar pontos obscuros. Ou seja, o especialista visto como mediador, aconselhando o melhor modo de agir da população, em geral.

No entanto, embora os questionamentos de Carlos Nelson tenham sido apreciados e reconhecidos, é necessário atualizar as hierarquias para a construção coletiva da cidade contemporânea. Os novos cenários deverão permitir uma mudança na dinâmica urbana e garantir a continuidade de processos para geração e consolidação de projetos. Por meio da pesquisa e da implantação de metodologias participativas novas, tais projetos iniciarão a construção de uma memória coletiva e a apropriação do território como bem comum. São experiências que nos permitem refletir sobre a importância da construção da memória via reconhecimento dos processos territoriais e identitários gerados a partir das comunidades, como efetivos atores de mudança do atual contexto da sociedade.


Adalberto da Silva Retto Júnior é professor de Desenho Urbano e História do Urbanismo na Universidade Estadual Paulista – Unesp Bauru e Visting Schoolar do Programa Erasmus Mundus Sorbonne I (Paris, Evora, Pádua). Doutor pela USP/IUAV de Veneza e Pós Doutorado no Doutorado de Excelência do IUAV de Veneza.

[1] The disappearing city, [by] Frank Lloyd Wright. Wright, Frank Lloyd, 1867-1959. New York, W. F. Payson, [c1932]. Public Domain. Available at: http://hdl.handle.net/2027/mdp.39015047936219. Accessed in December 2021.

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