“A água só não lava a língua dessa gente…”

Períodos de chuvas são pródigos em propostas demagogas – e caríssimas – para acabar com as inundações. Há alternativas muito mais eficazes, simples e baratas. Talvez por isso sejam rejeitadas…

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A ocorrência de inundações cada vez mais severas nas metrópoles — sem que a intensidade e a duração dos índices pluviométricos históricos sejam notavelmente ultrapassados — põe em evidência o modelo de crescimento urbano dos últimos trinta anos, que acentua a disputa por espaço entre a cidade e as águas. Tornou-se um desafio e um pesadelo das administrações municipais.

A primeira culpa pelas chuvas e inundações é, quase sempre, atribuída a São Pedro. Mas, como ele tem estado ocupado nessas horas, as atenções se voltam para os administradores da cidade. Articula-se, então um ritual típico dos períodos chuvosos: vereadores ou representantes das comunidades pressionam por verbas; empreiteiras apresentam projetos de canalização fechada de córregos, com avenidas superpostas; e políticos oportunistas, de olho na próxima eleição, prometem adotar essa solução técnica para “acabar” com o problema de enchentes e esgotos na cidade.

Um simples levantamento histórico de notícias de jornal é um mostruário desse jogo de cena, quase sempre partilhado por opiniões de “especialistas”, em que prevalece a visão unilateral da engenharia de obras como solução definitiva. O discurso tecnocrático tem ressonância momentânea nos meios de comunicação e na própria população, que, via de regra, não tem a dimensão da geografia urbana, embora conheça bem seu pedaço.

Ora, o agravamento das inundações urbanas é o resultado da vertiginosa taxa de urbanização das cidades que engendrou: a) a crescente impermeabilização da bacia hidrográfica, com o consequente aumento do escoamento superficial; b) a ocupação das planícies naturais de inundação; c) a erosão provocada pelos loteamentos urbanos e o assoreamento dos cursos d’água. Nestas condições, o sistema de drenagem urbana tornou-se insuficiente e ineficaz; e a solução de transformar a cidade num imenso canteiro de obras não passa de demagogia. Lembra os versos de uma antiga marchinha de carnaval: “A água lava, lava, lava tudo/ a água só não lava a língua dessa gente”.

A administração pública, por sua vez, por causa da segmentação de funções, carece de uma percepção integrada dos fatores que acentuam o desarranjo e a degradação da bacia hidrográfica. A superação desta deficiência é condição preliminar para o planejamento de ações objetivas sobre o meio ambiente das diversas regiões da cidade, de modo a promover a recuperação ambiental e minimizar as consequências das inundações. Coloca-se, portanto, o desafio da priorização correta de investimentos e a obtenção de resultados concretos e duradouros nas intervenções de governo.

Nos últimos anos, vem ocorrendo uma mudança de hábito no meio técnico: as calhas dos rios principais já não suportam as vazões crescentes dos córregos afluentes. Em vez das obras pesadas de canalização, o jeito é tratar de “segurar” as águas de chuva em reservatórios de retenção provisória, rio acima, e estimular os estabelecimentos – supermercados, postos de gasolina e outros – a fazerem o mesmo.

A diretriz permanente de uma política de drenagem urbana e de defesa das populações face a ocorrência de inundações deve privilegiar as ações preventivas. Os estudos e tecnologias hidrometeorológicas tiveram um notável desenvolvimento nos últimos anos, de modo que a previsão de chuvas, em tempo real, já pode ser feita com boa margem de segurança e confiabilidade. A implantação de sistema da alerta contra cheias em cada metrópole torna-se imperativa face a sua extrema utilidade nas ações emergenciais de defesa civil, durante o período chuvoso. Tal sistema consiste, basicamente, de um radar meteorológico e de uma rede telemétrica de postos fluviométricos e pluviométricos; um programa específico em computador processa os dados do radar e da rede e pode emitir prognósticos com duas horas de antecedência e a cada dez minutos, contendo: posição, sentido e velocidade de deslocamento das nuvens com formações chuvosas; quantificação da chuva; vazões em rios e córregos e áreas sujeitas a inundação. (Em São Paulo, o sistema instalado permite fazer previsões por bairro, devendo evoluir para áreas da ordem de quatro quilômetros quadrados).

Uma organização central de defesa civil, devidamente equipada pode ter um desempenho bastante eficaz no alerta às populações mais vulneráveis, minimizando os prejuízos materiais e salvando vidas, na realocação de moradores em áreas de risco, além do controle de tráfego durante os eventos críticos.

O envolvimento dos meios de comunicação – em especial as rádios e tevês – é fundamental. Se o núcleo técnico de defesa civil estiver bem equipado, boletins de alerta podem ser emitidos em tempo real, juntamente com instruções, e imediatamente divulgados. Desta maneira, consolida-se aos poucos um serviço público de informações qualificadas no qual a população confia. Por fim, é necessário envolver a própria comunidade dos bairros que, dispondo de pronta informação, pode ser mobilizada nas ações de autodefesa, suprindo as deficiências locais não cobertas pelo sistema geral e reforçando a solidariedade.

O texto corresponde a um tópico do livro “Um copo dágua” do autor, publicado em 2002 pela Editora Unisinos.

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Um comentario para "“A água só não lava a língua dessa gente…”"

  1. José Eduardo Campos disse:

    É uma satisfação reler o meu amigo Gerôncio Rocha. Tratando das questões ambientais, os problemas, sempre com uma visão humanista, tão em falta nestes tempos atuais.

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