A tragédia das cidades que odeiam suas águas

Em Belo Horizonte, caso emblemático de alienação urbana: ao invés de projetar convívio harmonioso com rios, prefeitura quer “contê-los” por meio de túneis faraônicos. Especuladores agradecem; as enchentes persistirão

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Reúna todas as suas economias. Tome emprestado o máximo que conseguir. Peça adiantamento do salário. Limpe o cofrinho das crianças. Junte tudo em um saco grande, de papel. Reserve.

Disponha pedaços de lenha em formato radial, como uma mandala. Coloque no centro o saco com todo o dinheiro – garanta que não ficou nada nos bolsos – jogue álcool e risque o fósforo. Pronto, suas reservas e os empréstimos que você levará a vida para pagar arderão em poucos minutos.

Esta é a receita tradicional, mas há outras. Você pode substituir a fogueira por grandes obras de engenharia, por exemplo – o que traz a vantagem de agradar construtoras amigas. Infelizmente, parece ser o que pretende a Prefeitura de Belo Horizonte ao gastar 300 milhões de reais em obras que não solucionarão os problemas com enchentes na região de Venda Nova.

A Avenida Vilarinho tem sido palco de tragédias ano a ano. Com as chuvas, o rio transborda no fundo do vale. Este é o movimento natural, mas hoje as áreas de inundação têm avenidas e casas. E a água chega ao fundo do vale mais rapidamente, graças à crescente impermeabilização do solo.

É evidente que se deve buscar soluções para a região, onde morreram quatro pessoas nas últimas chuvas. Mas é ainda mais evidente que o projeto apresentado às pressas pela Sudecap não é a solução. No máximo, desloca o problema de lugar, a um custo enorme para a população.

Esta avaliação quem faz são especialistas que trabalham há décadas com a questão hídrica, ligados ao projeto Manuelzão, à UFMG e aos Comitês de Bacias. Em uma carta apresentada recentemente à Prefeitura, estas entidades alertam que a obra é faraônica e tem alto grau de insegurança.

A carta bem lembra que “os processos e erros que geraram os alagamentos da Avenida Vilarinho são antigos e tornaram a questão complexa: não existe uma única e mágica solução. Se não for entendido desta forma, corre-se o risco de cair na tentação de simplificação e mais uma vez gastar recursos públicos com resultados pouco eficientes”.

Quem estuda a história das águas nas cidades sabe que as obras que supostamente evitariam as enchentes, em muitos casos, acabaram por agravá-las – graças a uma mentalidade rasa de engenharia, que ignora a dinâmica da natureza e só ataca os sintomas.

Se aqueles que dedicam suas vidas ao tema afirmam que a solução proposta tem alto grau de insegurança, por que a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) insiste na obra caríssima? Para se ter uma ideia, com 300 milhões poderiam ser construídas quase 100 unidades de saúde com 15 consultórios cada. É um montante enorme, cuja aplicação deve seguir o princípio da economicidade, previsto na lei orgânica do Município.

Este princípio é especialmente ferido quando se olha para a infraestrutura existente na região, bastante sucateada. Bacias de contenção, que ajudariam a conter as águas, estão sem manutenção, danificadas e inoperantes em tantos pontos. Não seria fundamental colocar em bom funcionamento e garantir a manutenção das estruturas que já foram feitas, com dinheiro dos contribuintes, para então se pensar em novas obras?

O que diz a Câmara de Vereadores sobre esta obra de altíssimo custo, feita sem participação da sociedade, sem estudos que comprovem sua eficácia e que se sobrepõe a investimentos anteriores?

As enchentes demandam respostas efetivas, mas isso nada tem a ver com projetos feitos às pressas, toscos e ineficazes. A solução para a Vilarinho passaria por aumentar a captação da água da chuva onde ela cai (nos terrenos e ruas dos bairros vizinhos), criar pontos intermediários de retenção, deslocar o tráfego da beira do rio, aumentando a área livre de absorção da cheia.

Tudo isto poderia ser feito em tempo rápido, a partir de estudos sérios, com custos menores. Poderia ser incorporada ainda uma perspectiva ambiental e de lazer, criando-se um parque ciliar, como se faz em tantos lugares do mundo.

Tudo isto foi informado à PBH na carta das entidades aqui citada. Se o prefeito e seus secretários preferirem colocar o dinheiro dos contribuintes na fogueira das construtoras, deveriam assumir responsabilidade pelo gasto. Se as enchentes persistirem na região, quem devolverá os R$ 300 milhões à cidade?

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