Carnaval, desengano: quando os sonhos tomam a cidade

Em dez anos, Belo Horizonte tornou-se uma das referências das novas festas de rua no Brasil. Aqui se narra como começou esta virada – esta pequena revolução tão necessária para nosso futuro

Foto: Priscila Musa
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Parece que foi ontem, mas faz dez anos. Verão de 2009 em Belo Horizonte, calor e chuva. Em uma festa de aniversário, a conversa chega em o que fazer no carnaval. Por quê não fazemos um bloco em BH, alguém perguntou.

Houve quem risse. Naquela época, só ficava na cidade quem queria fugir da folia. A dúvida se haveria quórum era real. Ainda assim, no embalo etílico, marcamos o dia do bloco e as providências: chamar os amigos músicos, pensar o trajeto, criar um blog (sim, naquela época usava-se blog).

No domingo do carnaval, me lembro de ir para a concentração do bloco com um frio na barriga. E se não tivesse ninguém? Saberíamos tocar? Seríamos mesmo capazes de fazer carnaval na terra que já foi chamada de túmulo do samba?

Éramos poucos, uns 30, e saracoteamos por ruas desertas com bastante liberdade rítmica. As pessoas olhavam das janelas e estranhavam. Alguns desciam. “Quem descia, não voltava mais para casa”, como bem lembrou um amigo sobre este dia.

O bloco perambulou por becos e lotes vagos, adentrou bancos, postos de gasolina e sorveterias, enfrentou a chuva torrencial e teve seu fim em algum boteco.

O sentimento era de euforia, por termos conseguido tornar possível algo que parecia distante. Sim, era possível retomar a rua, estar junto com amigos, vestir fantasias, cantar e dançar, tomar banho de mangueira, caminhar com alegria. “Inventar a maravilha de amanhã”, diz uma canção que marcou esta geração.

A partir dos três blocos que saíram naquele ano, o carnaval de BH cresceu organicamente: 6 em 2010, 11 em 2011, algumas dezenas em 2012 e assim por diante. Hoje são centenas de blocos, com as propostas mais variadas, uma festa diversa com muita autonomia nas pontas.

A cidade mudou, com o carnaval. Passamos a perceber mais as ruas, a cidade, a andar a pé – e isso contaminou a vida de muita gente. Passamos a entender que festa é política e que celebrar com os outros é das grandes belezas da vida.

Tudo isso não se deu sem conflitos. Nos primeiros anos, a Prefeitura tentou reprimir a folia. Teve pirata e marinheiro que levou bomba de gás lacrimogênio da polícia.

Como a festa resistia e crescia, o poder público começou a investir em publicidade, palcos, etc. Isso deu um impulso que, para muitos, foi desproporcional à capacidade de absorção da cena cultural da cidade.

Seja como for, estamos entre os maiores carnavais do Brasil. E o desafio é enorme. O poder público tem o importante papel de prover infraestrutura (reorganizar o trânsito, instalar banheiros, coletar lixo, etc.), mas deve parar por aí. No momento em que os foliões perderem a liderança da festa, este carnaval começa a morrer.

Afinal, o que deu força vital à folia foi justamente o que nela há de desobediência, de mudança do estado atual das coisas: tomar o centro das ruas, vestir roupas inimagináveis, andar por lugares onde não se andava.

Certa vez ouvi de um sargento da Polícia Militar que “estávamos colocando a vida de milhares de pessoas em risco por um capricho”. Isto foi em 2018 e o capricho era atravessar um túnel com um bloco.

Eu sabia que o risco não existia, por conhecer a legislação sobre eventos abertos, por saber que blocos passam em túneis em outras cidades – mas aquela fala me deixou um mal-estar. Ao fim, é isso que o poder busca tanto: tirar a alegria, nos deixar tristes, amuados. E nos fazer pensar que nossos desejos mais profundos são caprichos.

Não, senhor oficial, ocupar com nossos pés um espaço em que só passam carros não é um capricho, mas um movimento de transformação. É sonhar com outras cidades possíveis, vivenciar pequenas revoluções tão necessárias para nosso futuro. Aquele bloco passou no túnel sem nenhum incidente – a não ser a emoção que aflorou em cada um daqueles milhares de foliões que lá estavam.

Pela primeira vez em uma década, não estarei em BH no carnaval. O desejo que envio de terras mais frias é que cada foliã ou folião, cada bloco, cada bateria, possa viver uma desobediência alegre, que leve a fundo os desejos mais inusitados, que faça da folia o grande momento de invenção que ela é, apesar de todas as tentativas de tolhê-la. Que seja linda a festa.

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