Quando novos atores entram na outra cena

Na Clínica Pública, a Psicanálise rompe, muitas vezes, o “setting” de quatro paredes, uma poltrona e um divã. É uma de nossas releituras do trabalho analítico. Que está por trás delas?

 

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Texto: Daniel Guimarães | Imagens: Graziela Kunsch (acima) e Daniel Guimarães

Costumo dizer que lá na Clínica Pública de Psicanálise é o povo quem faz o setting. O setting, grosso modo, é a montagem do trabalho analítico. O desenho espacial e relacional em preparação para que a terapêutica aconteça. O setting “tradicional”, já bastante incorporado ao imaginário da classe média até as classes mais ricas, é composto pelo analista que senta em sua poltrona e o paciente que deita no divã, em sessões regulares, num tratamento sem fim pré-determinado em uma sala com quatro paredes. O analista, mais mudo do que falante, escuta o que o paciente diz, prioritariamente o que diz respeito aos problemas interfamiliares, infantis e do amplo espectro da sexualidade. Algo de confessionário, como me diz um paciente de consultório.

A experiência psicoterapêutica nas classes médias baixas até as mais pobres parece produzir outras fantasias. A palavra psicanálise já não aparece tanto. Os encontros são mais esporádicos, para não dizer únicos, em unidades de saúde pública, postos, hospitais. A situação é mais para o cara a cara, para a conversa do que para a fala. O tempo parece ser distinto nas duas ocasiões e o que se faz com ele, também. Penso nas vezes que escutei “qual o projeto terapêutico para esse usuário” em um hospital-dia. Diferente de “qual a questão desse paciente (ou analisando)?” quando duma situação analítica de consultório. Uma sutil diferença da posição de sujeito e objeto que me leva a pensar nas interferências na gestão do tratamento e na montagem do setting em situações distintas como essas, com marcadores de classe envolvidos na dimensão de valor, tempo e organização do trabalho.

Não é de todo sem sentido pensar que a produção do espaço nesses settings distintos diz respeito a visões de mundo, nem sempre conscientes, às vezes inescapáveis no tempo presente, e que têm consequências no processo terapêutico se levarmos em consideração que o mundo intrapsíquico se relaciona dialeticamente com o “mundo de fora”, desde seu desenvolvimento inicial até as reatualizações e novas instigações experimentadas na vida. Privacidade, controle da situação repetida no mesmo ambiente, ou o risco iminente do inesperado a qualquer esquina, são elementos de alguma realidade que interferem na coisa analítica. Que bom. A análise deve estar a serviço da vida, não o contrário. É bom não esquecer também que essas imagens que expus como extremos estereotipados não dão conta da realidade. Nem todo consultório de quadro paredes abriga um analista silencioso e distante. Nem todo trabalho analítico fora de um consultório produz um encontro, ou uma situação, permeável ao inesperado. Num consultório “tradicional” é produzido um universo de afetos, vidas são transformadas. A fala para esse analista mais ou menos mudo, a depender da situação, não perdeu seu lugar de importância. Talvez hoje tenha ainda mais relevância, mas isso é assunto para outro texto.

Na madrugada que escrevo esse texto estou pensando, na verdade já há algumas semanas, em como contar um pouco do que acontece lá na Clínica, nesses cruzamentos do setting tradicional, da invenção do encontro na rua, da produção do espaço da análise e do espaço para produção de análise e essa coisa a mais, esse inesperado que sempre vem, se estivermos dispostos a recebê-lo. É aqui que me vem essa parte especial da psicanálise, como definiu Marthe Robert: a contribuição inteligente do paciente para a produção do trabalho. A prática da psicanálise, mesmo que não saiba, e mesmo que não seja exatamente simétrica (existem pessoas distintas com posições distintas e interesses distintos nessa relação), mudou o polo inacessível de poder médico sobre o paciente. Mudou o poder do especialista que sabe o que fazer, que decifrou o problema no outro e a forma de curá-lo, aqui o paciente como um objeto e o médico sem ser exatamente um sujeito. Estranha essa relação. Muito parecida com o arranjo organizacional social geral, vertical, na política e no trabalho. O patrão que pensa enquanto o trabalhador não deve pensar — ainda que seja ele a vivenciar a tarefa a ser cumprida — apenas executar. Como fica a inteligência do trabalhador afetivo e da pessoa que realiza seu trabalho psíquico, se a prática repetir o sistema da divisão de trabalho intelectual e operacional? Como é trabalhar em um projeto cuja inteligência de todos envolvidos – todos trabalhadores, no limite – não está a serviço da melhoria do produto, pois não se trata de mercadoria, mas como elemento instigador do próprio trabalho?

Como seria a psicanálise sem essa particularidade estranha ao mundo dos negócios e das burocracias, dos sistemas fechados ao público e abertos apenas aos patrões, intelectuais e gestores da vida alheia?

Talvez seja bom dizer assim: nossa forma de pensar a psicanálise é que cada situação nova produz um desarranjo do que nos fazia sentir seguros um minuto atrás.

A psicanálise só pode existir de verdade na relação mútua entre os que se encontram para realizá-la. Caso contrário, se a montagem do trabalho for fixada por intelectuais bem formados, a psicanálise jamais poderá ser acessível às classes populares. Não digo mais sobre a oferta de atendimento. Falo sobre a abertura para a formação de psicanalistas vindos das classes populares. Com suas referências, suas vivências distintas das nossas formações de classe média. Se ela, a Psicanálise, com P maiúsculo, se mantiver apenas superficialmente aberta ao povo, acredito eu, ela perderá razão de existir. E seguirá distante da população, porque a população só se aproxima do que lhe faz sentido e do que ela pode se apropriar, com todas as contradições.

Pois bem. Na Clínica Pública de Psicanálise vivemos nessa tensão. A cada período nos deparamos com alguma nova modalidade de acontecimentos que nos fazem parar para entendê-los e mudar nosso trabalho. Por exemplo, num dado momento chegavam mais pessoas do que poderíamos atender num plantão de sábado. Pessoas que vinham de longe e que merecem todo nosso respeito. Antes tínhamos ao nosso lado o Peroba, a Bruna, a Isa, entre outras e outros trabalhadores do Canteiro Aberto, que inventaram formas de receber as pessoas e organizar o plantão. Não era uma folha em branco para que a pessoas escrevessem seu nome. Há quem não consiga fazer isso, aliás. Não, lá havia ao menos uma pessoa. Depois, um integrante novo da Clínica passou a acompanhar o Peroba nas manhãs de sábado. Ele queria entender o funcionamento, como era o espaço, quem vinha nos procurar, para se preparar para lá atender. Foi, aliás, sua primeira experiência clínica. Pois dessa soma de duas cenas, duas situações, percebemos três coisas: nosso incômodo com a frustração de quem não conseguia ser atendido ou atendida; a situação de recepção como um já atendimento; a criação espontânea de grupos de pessoas que ficavam sentadas perto umas das outras, conversando, aguardando a possibilidade de serem escutadas por algum de nós.

Importante lembrar que a ampla maioria dos analistas da Clínica não são plantonistas. Atendem em dias de semana pessoas que são encaminhadas geralmente a partir dos plantões, em arranjos, diria, mais próximos da psicanálise tradicional: sessões regulares, com hora marcada. Esse é nosso principal norte: que não façamos um experimento com os pobres, para provar alguma teoria que não praticamos em nossos consultórios particulares; nem um plano B, reservando aos pacientes dos consultórios particulares a melhor psicanálise possível. Algo politicamente muito delicado e não inteiramente verdadeiro, pois nossa prática na Clínica Pública transforma nossa prática no consultório não-público. Mesmo o nome “plantão” já soa estranho. Conversamos sobre isso algumas vezes. Resíduos hospitalares. O primeiro deslocamento dessa palavra foi para as plantas que temos dentro da salinha da Clínica no galpão. Nosso Plantão, então, é como uma planta, que brota e é cultivada. Por boa coincidência, brotar é uma possível tradução de um conceito chave na psicanálise, Trieb, vertido aqui ora por pulsão, ora por instinto.

Mas fui escapando do assunto do início do parágrafo. Essas novas situações nos fizeram repensar o cotidiano do trabalho e também os processos de entrada de novos integrantes na Clínica. Abrimos um horário para atendimento em grupo, o Grupo das 11, para o qual não é necessário retirar senha. O grupo já existia, informalmente, agora demos a ele estatuto de acontecimento, lugar e horário, para que nós, analistas e participantes do grupo, possamos voltar a nos encontrar e trabalhar as questões que lá surgem também espontaneamente. E depois de poucos meses já se formou um grupo dentro do grupo. É aberto, vai quem quer, quando quer. E quem não quer mais não precisa ir. Nem precisa avisar. Mas há uma quantidade nada desprezível de pessoas que vêm todas as semanas, que estabelecem vínculos horizontais, inclusive. Nos últimos meses tivemos de fazer dois grupos simultâneos por conta do aumento dos participantes. Portanto, o grupo foi produzido espontaneamente por não-analistas. Tivemos de mudar nossa rota. Não temos uma teoria sobre nossa forma de produção de grupo. Não seguimos rigidamente nenhuma formulação teórica pré-existente, surgida em outros contextos, com outras matrizes clínicas e entendimentos psicopatológicos, ainda que tenhamos conhecimentos sobre o que já foi pensado e produzido em trabalhos grupais a partir da psicanálise. É ali, nos atendimentos, em grupo ou individuais continuados, mesmo nos plantões, onde os analisandos podem continuar a ser atendidos pelo mesmo analista, que podemos saber do que se trata o nosso trabalho. A fragmentação do convívio e das relações, como no sistema taylorista, dita “organização científica do trabalho”, aliena os sujeitos. É muito produtivo, sem dúvidas, para a empresa.

Uma pessoa que acaba de chegar na Clínica pode, com um gesto, mudar nosso entendimento sobre o próprio processo de entrada. Hoje, as pessoas que estão em processo de entrada passam algum tempo ali na recepção. Além de ajudar a organizar os horários, se conhecem, conversam, percebem o espaço e seu funcionamento, fantasiam sua própria singularidade ali. São apresentadas aos trabalhadores do galpão. E, o mais interessante, podem se perceber já escutando pessoas. Como no caso de um dos novos analistas que, logo no primeiro ou segundo dia como recepcio-analista, foi eleito por um homem para que o escutasse enquanto outro analista não o pudesse atender. Eu estava aguardando uma paciente que estava atrasada. Se em 15 minutos ela não chegasse, eu poderia atendê-lo. Depois de mais de 15 minutos o novo analista veio perguntar se eu poderia atendê-lo e eu, que via aquela cena, só pude responder: “mas você já está atendendo ele!” Ele voltou e anunciou ao homem: “então, serei eu mesmo” e o encontro prosseguiu.

Qual é a tensão, então? É uma Clínica sem organização? Não. A boa tensão é justamente entre a organização, a coordenação, o espaço de fala regular para todos, a transparência dos processos de funcionamento, e o não fechamento das modalidades de receber as pessoas e perceber quais as coisas que elas estão expressando e quais formas possíveis para que a análise aconteça, com o cuidado de não reproduzir, de forma alienada, as formas estereotipadas de suas existências, ou de nossas próprias neuroses. Elasticidade da técnica, sem adaptação passiva, como diria Pichon-Riviére, à organização alienada do mundo. Alienação que, introjetada no mais íntimo do indivíduo, o faz sofrer.

Por isso a brincadeira do título deste artigo. Freud chamava o inconsciente de “a outra cena”. Eder Sader, por sua vez, escreveu o clássico Quando novos personagens entram em cena, sobre os movimentos sociais populares, criados de baixo para cima, que insistiram em participar, de seu jeito, de acordo com suas particularidades, no redesenho da democracia brasileira em fins das décadas de 1970 e 1980.

A Clínica Pública de Psicanálise e suas situações de análise para aqueles que estão excluídas desse saber só faz sentido se for pensada como uma Clínica de Psicanálise Pública. Como insistência de abertura para que novos personagens se tornem atores e entrem na outra cena, a elaborem, dela se apropriem, dela se beneficiem e beneficiem o entendimento dela, sem constrangimentos.

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