Onde moralismo e mercado imobiliário se unem

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Excluir os usuários de drogas do espaço público é péssima política de saúde. Mas faz bem aos bolsos dos especuladores imobiliários

O crack não atinge indivíduos ao sabor do destino, como fatalidade ou epidemia. Há uma questão social precedente, que tem como efeito, entre outros, a dependência química. A região estigmatizada como “cracolândia” em São Paulo – onde o consumo da substância se faz publicamente – é também um local de concentração da miséria social, fundada na ausência de acesso às condições mínimas de cidadania: alimentação, moradia, educação, emprego, saúde, cultura, transporte etc.

O uso de drogas motiva apenas 12,4% das crianças a deixarem suas casas. Tal processo tem início, principalmente, no abandono familiar, abuso e exploração sexual, conforme pesquisa de campo do Projeto Quixote, trabalho realizado na região da “cracolândia”, que você pode acessar aqui. O medo instaurado pelo discurso do crack como “epidemia” pode ocultar estes fatores essenciais e justificar medidas violentas, autoritárias e higienistas.

Os interesses que orientam o projeto de internação compulsória vão além de uma política de drogas. Em São Paulo, a “cracolândia” é alvo de um projeto municipal chamado Nova Luz, concessão urbanística delimitada no perímetro das avenidas Mauá, Cásper Líbero, São João, Rio Branco e Duque de Caxias. Criado pela Prefeitura da Cidade de São Paulo por meio da Secretaria Municipal de Planejamento Urbano, e posto em prática desde o ano de 2005 com a ação conjunta da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), do Poder Legislativo e da subprefeitura da Sé, envolve também instituições como a Guarda Civil Metropolitana.

O Nova Luz visa “revitalizar” o bairro e torná-lo atraente para investidores, promovendo seu embelezamento e reurbanização e consequente aumento do valor imobiliário, favorecendo a especulação imobiliária e sua ocupação pelas classes média e alta. Consequentemente, promove-se a gentrificação (1) e limpeza social no centro da cidade. A política de internação compulsória, juntamente com projetos urbanísticos que prometem devolver a vida àquela região (como se vida ali não houvesse), parecem ser orientados pelas mesmas diretrizes: afastar o lado “feio” e “pobre” da cidade.

O deslocamento do problema para instituições de caráter manicomial, na contramão do que determinam a Reforma Psiquiátrica e o SUS, além de não enfrentar a questão, camufla desvios para atender interesses alheios à sociedade. Na lógica mercantil de produção do espaço urbano, vale mais apresentar uma boa imagem da cidade “limpa” do que respeitar os habitantes e investir na sua saúde e autonomia. A luta antimanicomial terá que somar forças à resistência urbana contra um projeto de cidade que se quer impor.

(1) Chama-se gentrificação a um conjunto de processos de transformação do espaço urbano que ocorre, com ou sem intervenção governamental, nas mais variadas cidades do mundo. O enobrecimento urbano, ou gentrification, diz respeito à expulsão de moradores tradicionais, que pertencem a classes sociais menos favorecidas, de espaços urbanos e que subitamente sofrem uma intervenção urbana que provoca sua valorização imobiliária.

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4 comentários para "Onde moralismo e mercado imobiliário se unem"

  1. TMARTA disse:

    como carioca, permitam-me discordar de tudo que foi dito, o que falta é alegria em todos os níveis, como existir cidadania se os que pagam mais são os excluidos, inutil tapar o sol com a peneira, se é que o sol consegue penetrar nas brumas da injustiça da classe média contra a maioria, servindo de tapa sexo pros ricos….

  2. Acredito que a prefeitura está correta, poís o centro de uma cidade vista como umas das maiores e mais importantes para a economia global não pode apresentar uma imagem desta pro resto do mundo.
    E também defendo a opinião de que se deve dar um jeito nesta situação de abandono.

  3. Olá Anônimo! Obrigada por seu comentário. A ideia do texto é fomentar o debate. Gostaria de esclarecer o que talvez tenha ficado confuso neste parágrafo que vc cita: eu não quis dizer que a região é desprovida de serviços e equipamentos públicos. De fato, a Luz e o centro em geral é uma região cuja infraestrutura e oferta de serviços públicos é farta. A minha intenção foi apontar que a chamada cracolândia não é simplesmente um lugar de uso de drogas, mas resultado da ausência de condições mínimas de dignidade para esta camada da população, que vem de muitos pontos da cidade e até de outras cidades. É dizer que a situação perversa de quem está na cracolândia também é um efeito da miséria social. E concordo com vc: não a toa esta região é alvo da especulação, que pretende fazer do centro um local “limpo” e “sofisticado”, para que tais serviços e equipamentos sirvam a uma outra população que não a popular. Abraços!

  4. Anônimo disse:

    O texto diz que a região conhecida como Cracolândia, em São Paulo, não oferece “acesso às condições mínimas de cidadania: alimentação, moradia, educação, emprego, saúde, cultura, transporte etc.” Não é verdade. Essa parte da cidade é muito bem servida tanto pela rede de ônibus como de trens e metrôs. A Luz talvez seja o bairro mais bem servido de transportes em toda São Paulo. O mesmo com opções culturais: Sala São Paulo, Pinacoteca e Museu da Língua Portuguesa são algumas das instituições que ficam nos arredores. Quanto às fontes de emprego, em São Paulo, elas se concentram na região central — exatamente onde se localiza a cracolândia. Alimentação e moradia também não faltam no bairro. Claro, podemos discutir a utilização dos espaços culturais e a destinação destes postos de trabalho e das moradias. Podemos discutir tudo, mas fica complicado eludir alguns fatos. A Prefeitura só está investindo seu aparato especulador, elaborando projetos urbanísticos mirabolantes para a região e retirando de lá os usuários de crack porque ela é, sim, atrativa.

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