12.02.21 — POR QUE LER KROPOTKIN HOJE

Esforço por reconstruir um pensamento pós-capitalista inclui abrir as fronteiras que separavam, no passado, as distintas correntes contra-hegemônicas. Combate do príncipe rebelde russo ao darwinismo vulgar também diz algo sobre narcisismos da esquerda

Por Antonio Martins

No final dos anos 1970, o enfraquecimento da ditadura militar-empresarial permitiu que voltasse a florescer uma cultura política de esquerda, sufocada com brutalidade a partir do AI-5. No novo ambiente que se formou – a princípio nas universidades (onde a repressão era mais tênue), mas em seguida entre as oposições sindicais, as periferias, as pastorais católicas – imprimiam-se livros, organizavam-se cursos e círculos de leitura, distribuíam-se jornais alternativos, formavam-se ou ressurgiam coletivos e células partidárias. Nestes círculos, as ideias revolucionárias eram, de longe, predominantes. A intensa criatividade militante (acompanhada, naturalmente, de transgressão à moral sexual conservadora) encontrava, porém, limites num forte sentimento sectário e rivalista. A esquerda dividiu-se em dezenas de correntes, separadas às vezes por filigranas mínimas, muito mais voltadas à autoafirmação narcísica que ao diálogo com os diferentes – e com frequência reciprocamente hostis. Nesta matriz de clivagens infinitas, a primeira era a que colocava em campos opostos marxistas e anarquistas.

A obra do anarquista russo Pietr Koprotkin, cuja morte acaba de completar cem anos (em 8/2), foi vítima desta divisão. O caudal majoritário, marxista, tendeu a ver no anarquismo ou um adversário a ser batido ou, no máximo, a expressão de estágio inferior, na formação de um pensamento anticapitalista mais avançado. Por isso Kropotkin – assim como Proudhon, Mikhail Bakunin, Emma Goldmann, Enrico Malatesta e outros – foi escassamente publicado, lido ou estudado no Brasil. E talvez os próprios anarquistas tenham contribuído para este ocultamento, já que também eles, participantes ativos da dinâmica narcísica, fecharam-se frequentemente em suas próprias verdades.

No entanto, o próprio Kropotkin – e em especial sua obra maior, Ajuda Mútua, um brilhante fator da evolução – são um sinal de que tal distanciamento pode ser superado. Nascido em 1842, fixado na Rússia até 1876, ele não participou das ácidas disputas que marcaram a I Internacional, e tiveram como protagonistas Marx e Bakunin. Chamada por alguns de anarco-comunismo, a vertente teórica com a qual contribuiu compartilha com o marxismo certas posições – entre elas a ideia de que, numa sociedade pós-capitalista, a partilha das riquezas deve basear-se nas possibilidades e necessidades de cada ser humano, não em seu trabalho. E ele próprio, que se exilara por 40 anos, fez questão de regressar à Rússia após 1917. Entusiasmou-se a princípio com a revolução de outubro (mais tarde, classificaria o poder bolchevique como “uma ditadura de partido fortemente centralizada”).

Kropotkin foi um revolucionário improvável. Príncipe russo (membro de um ramo lateral da família do czar), herdeiro da nobreza rural muito poderosa e abastada, teve educação magnífica. Tornou-se geógrafo e cartógrafo de renome internacional, liderando a refeitura dos mapas de relevo do oriente da Ásia. Muito jovem, em suas expedições à Sibéria tomou contato com a obra de Proudhon. Sua ligação imediata com círculos socialistas e populistas levou-o a uma vida de prisões (na Rússia e na França), exílio e atividade de reflexão e organização anticapitalista incessantes.

Escrito quando Kropotkin beirava os 60 anos, Ajuda Mútua – que bem merece uma nova edição em português – tem atualidade dramática. Ali afloram tanto o revolucionário quanto o cientista. Embora entusiasmado com a obras de Darwin (como também o foi Marx), Kropotkin confronta os darwinistas que veem na competição e e na sobrevivência do mais apto a forma essencial de evolução das espécies. E volta-se em especial contra os liberais que usam o argumento para defender a sociedade de todos contra todos. Com base em seus estudos científicos e em suas observações da natureza, argumenta que a cooperação, a colaboração e a ajuda mútua são no mínimo igualmente importantes. Apoia-se em inúmeros exemplos destas práticas do mundo natural. E, em divergência com o idealismo de Rousseau, defende que elas não expressam um etéreo “amor universal” – mas de “um instinto que se desenvolveu lentamente entre animais e seres humanos, ao longo de uma evolução extremamente longa, a qual ensinou tanto aos animais quanto aos homens a força que podem obter da prática de apoio e ajuda mútuos, e as alegrias que podem encontrar na vida social”

O anarco-comunismo de Kropotkin leva-o a propor a coletivização das riquezas, que no entanto não seriam geridas por um Estado central, mas por federações de coletivos autônomos territorializados. Para ele, as ideias igualitárias, muito antes de serem formuladas por filósofos, emergiram, ao longo da História, de um impulso atávico ao apoio mútuo. Ele estaria presente nas sociedades tribais, nas comunidades aldeãs, nas guildas medievais ou nas sociedades de assistência mútua entre trabalhadores — embriões dos sistemas estatais de Previdência. Esta tendência teria se defrontado sempre com a tendência ao autoritarismo, expresso pelo surgimento de elites e governos.

Ninguém precisa comprar o pacote completo das ideias de Kropotkin. A ideia de que o choque entre comunidade e autoridade é permanente ao longo do tempo parece desconsiderar as especificidades de cada formação histórica, e em especial as classes sociais atuantes em cada época. A recusa do anarquismo a qualquer tipo de relação com o poder sobre impediu que o comunismo federativo imaginado pelo revolucionário russo se efetivasse – a não ser em situações muito particulares e sempre por períodos efêmeros.

Mas como ressalta o texto póstumo de David Graeber que Outras Palavras publica hoje – prefácio à nova edição em inglês de Mutual Aid – há pelo menos duas excelentes razões para ler o príncipe anarco-comunista hoje. A primeira é seu magistral combate contra a tentativa, feita há mais de um século e meio pelas classes dominantes, de “naturalizar” as lógicas capitalistas; de sustentar que o estímulo à competição infernal e a recusa à colaboração baseiam-se no “caráter egoísta” do ser humano. A segunda é o alerta – implícito em Kropotkin e exposto por Graeber – aos que querem superar o capitalismo. Jamais será possível, sugerem eles, enquanto não se compreender que valores como a generosidade, a cooperação e o altruísmo têm potência revolucionária, e não podem ser vistos como meras “ilusões burguesas”. E enquanto não se superar o rivalismo narcísico cuja presença é testemunho de um darwinismo vulgar, típico do modo burguês de estar no mundo.

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