Privatizar a Sabesp é retroceder na pior hora

Sob controle estatal, a empresa levou São Paulo à liderança nacional na cobertura e qualidade do saneamento. Vendê-la quando privatizações fracassam mundo afora e o cenário climático requer mais gestão pública é tomar a contramão da história

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Pesquisa de opinião pública realizada no início de abril, no estado de S.Paulo, confirmou que há nítida maioria contra a privatização da Sabesp: 56% dos paulistas a rejeitam, contra apenas 36% que a apoiam. A mudança no posicionamento da população reacende a esperança de impedir a tran$ação.

Título original
Privatizar a Sabesp é repetir um erro, na pior hora

Há erros históricos que só se revelam em sua essência e dimensão com o passar de anos ou décadas. E os que, por repetir equívocos já feitos e bem compreendidos, podem ser identificados já no momento em que são anunciados. A privatização da Sabesp pertence ao segundo tipo.

Quando, em 1989, sob a liderança de Margareth Thatcher, a Inglaterra privatizou todo o seu sistema de saneamento básico, boa parte do país e do mundo estava convencida, ou pelo menos nutria boas expectativas, de que as promessas do neoliberalismo, se cumpririam. A privatização era vendida aos cidadãos e eleitores como substituição do engessamento corporativista e dispendioso da máquina estatal pela flexibilidade e eficiência da iniciativa privada. Prometia-se mais prosperidade, desenvolvimento e qualidade de vida por meio de menores impostos e taxas, mais investimentos e melhores serviços.

Já havia, claro, céticos e críticos, mas, diante de fórmulas que se apresentam como novidade – como a dos serviços públicos monopolistas em mãos privadas controlados por contratos e agências reguladoras – faltava-lhes a prova dos nove: experiências práticas e seus resultados objetivos.

Hoje, passados quase 35 anos, os resultados da privatização do saneamento na Inglaterra correspondem a um dos maiores problemas daquele país, combinando tarifas crescentes, endividamento e insolvência de empresas, e vastos danos ambientais.

O alerta que vem do norte

A maior empresa de saneamento da Inglaterra, a Thames Water, que provê água e esgoto para 16 milhões de pessoas em algumas das regiões mais populosas e ricas do país, incluindo grande parte da região metropolitana de Londres, é um exemplo de insustentabilidade socioambiental e financeira. Com uma dívida total de cerca de 18 bilhões de libras (mais de R$ 115 bilhões), em março a companhia deixou de pagar uma parcela desse montante, equivalente a R$ 3,2 bilhões, depois que a agência regulatória vetou um plano que aumentaria as tarifas pagas pela população em 40%.

A conta do fracasso do modelo privatista do saneamento já vem sendo paga pelos ingleses, e não somente na forma de tarifas crescentes. A falta de investimentos em infraestrutura e cuidados ambientais vem produzindo efeitos dramáticos. Em 2023 houve, por exemplo, 3,6 milhões de horas de derramamento de esgoto sem tratamento nos rios e no mar, o dobro do total registrado em 2022.

Em contraste com esses resultados, as empresas de saneamento da Inglaterra distribuíram cerca de R$ 360 bilhões em dividendos para os acionistas desde a privatização.

O fracasso do modelo privatista também se evidencia pela comparação entre o atual cenário do saneamento na Inglaterra e nos dois países vizinhos que compõem a Grã-Bretanha, onde tarifas e danos ambientais são menores. Na Escócia, o saneamento é função de uma companhia estatal, a Scottish Water, e no País de Gales, de uma organização sem fins lucrativos, a Welsh Water, que investe integralmente seus ganhos financeiros em manutenção, aprimoramento e sustentabilidade dos serviços.

Lucro privado, prejuízo socializado

A constatação do fracasso do modelo privatista tornou-se uma obviedade no debate público na Inglaterra, reconhecida inclusive, em grande medida, pelo próprio Partido Conservador, que décadas atrás o implementou com entusiasmo.

Com a aproximação das eleições gerais no Reino Unido – para as quais o Partido Trabalhista vem mantendo ampla vantagem, segundo as pesquisas de intenção de voto –, as dúvidas hoje são sobre qual modelo deverá substituir o atual, e como lidar com as imensas dívidas das operadoras privadas. Como costuma acontecer nesses casos, a população ainda deverá arcar com prejuízos causados por um modelo que enriqueceu acionistas e executivos.

Nesse contexto, outra constatação do óbvio, feita pouco mais de século antes da privatização de 1989, tem sido lembrada pelos ingleses. “É difícil, senão impossível, combinar os direitos e interesses dos cidadãos e os interesses da empresa privada, porque a empresa privada visa o seu objetivo natural e justificado: o maior lucro possível.” A frase foi dita em 1884 por Joseph Chamberlain, importante membro do governo britânico, em defesa da gestão pública do saneamento básico.

Já era evidente, então, que os benefícios coletivos da competição capitalista por mercados – que, em condições de efetiva competição, requer constante busca por eficiência, inovação e qualidade – não se aplicam a monopólios naturais como o do saneamento, nos quais um único provedor de serviços tende a maximizar lucros e dividendos reduzindo custos e investimentos necessários ao atendimento do interesse público.

No atual contexto paulista, na iminência da privatização da Sabesp, a constatação de Chamberlain e as fartas evidências que a corroboram – vindas não só da Inglaterra, mas de dezenas de países e centenas de casos de reestatização do saneamento registradas mundo afora nos últimos anos – devem nos alertar para os riscos de um erro histórico previsível e evitável.

Riscos conhecidos e desnecessários

Constatar que a privatização não é um bom modelo para o saneamento básico não implica, necessariamente, defesa de um modelo estatal tradicional. Existem várias soluções bem-sucedidas que combinam qualidades da boa gestão pública e da iniciativa privada. Por exemplo, companhias sem fins lucrativos, como a do País de Gales, que provê saneamento para três milhões de pessoas.

Empresas de economia mista controladas pelo poder público, a Sabesp é outro exemplo internacional de sucesso. Atendendo quase 30 milhões de pessoas com serviços de qualidade a preços módicos, ela é responsável pela liderança de São Paulo no cenário brasileiro do saneamento, tanto em termos de cobertura quanto de qualidade, e ainda gera significativos lucros para acionistas, incluindo o próprio governo estadual.

Por que São Paulo trocaria um modelo bem-sucedido, alinhado com as evidências e o conhecimento acumulado internacionalmente, por outro, que já se mostrou inadequado?

Os discursos em defesa da privatização da Sabesp se assemelham aos feitos na Inglaterra de Thatcher, em 1989. É como se as promessas de então não tivessem sido amplamente testadas e descumpridas mundo afora, nas últimas décadas.

Seria o modelo proposto pelo governo Tarcísio e aprovado pela Assembleia Legislativa paulista algo muito distinto e melhor que os marcos contratuais que se revelaram inadequados aqui mesmo, no Brasil, no caso, por exemplo, do setor de energia?

Especialistas identificam problemas e riscos de privatizações anteriores no projeto que está sendo implementado para a Sabesp. Um desses analistas é o economista Hugo Oliveira, que abordou o tema em recente palestra online para a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes). Ex-presidente da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp), com 40 anos de experiência no setor, Oliveira conhece a fundo os desafios para conciliar as motivações de concessionários privados e o interesse público.

Analisando o modelo que deverá ser implementado na Sabesp, Oliveira vê uma tendência de encarecimento das tarifas a médio e longo prazo e risco de enfraquecimento da política de tarifa social para populações pobres. O economista identifica também uma ausência de mecanismos capazes de prevenir insuficiência de investimentos após a primeira fase da privatização. Outro problema apontado pelo ex-presidente da Arsesp é a  redução do poder decisório da maioria dos municípios – que, pela Constituição, são os titulares dos serviços de saneamento –, em razão do peso do governo estadual em comitês gestores regionais que deverão ser instituídos juntamente com a privatização.

Na contramão da sustentabilidade

A adoção de políticas públicas na contramão das evidências é uma forma de negacionismo. As motivações por trás dessa escolha podem ser ideológicas, ligadas a planos político-eleitorais de curto prazo ou a interesses econômicos particulares.

Sejam quais forem as causas da decisão de privatizar a Sabesp, ela vem num momento dramático, no qual a aceleração das mudanças climáticas e a perspectiva de agravamento de escassez de água reforçam a necessidade de aumento do controle público e de gestão estratégica desse recurso vital. A ideia de que essas necessidades crescentes serão mais bem atendidas pelo controle privado da Sabesp contradiz o bom senso e o conhecimento acumulado sobre o tema – que mostram que a privatização do saneamento nunca foi tão arriscada e potencialmente danosa.

A privatização da Sabesp, em 2024, é o avesso de uma gestão pública baseada em evidências, ciente dos desafios contemporâneos e comprometida com o desenvolvimento sustentável a médio e longo prazo. Neste momento decisivo, de tomada de consciência sobre a nova realidade do clima e da água, em vez de avançar, São Paulo está tomando um rumo de retrocesso.

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Um comentario para "Privatizar a Sabesp é retroceder na pior hora"

  1. MARIA APARECIDA DE MATTOS disse:

    Sou contra a privatizacao da Sabesp, haja vista exemplos no mundo desse erro.

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