E o capital sequestra agora os cuidados animais

Tratamentos caríssimos e ineficazes. Prolongamento artificial da vida, em sofrimento. Chantagens emocionais. Grandes corporações já controlam clínicas veterinárias e comida para pets, gerando uma indústria de lucros e dores psíquicas

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Numa fria tarde de domingo, no final de fevereiro, Louise Taylor notou que um dos dois coelhos de estimação de sua família, Honey, não conseguia ficar de pé direito. “Conseguimos uma consulta no veterinário de emergência e eles deram-lhe analgésicos e medicamentos”, diz Louise, uma funcionária pública de 46 anos. “Mas ela ainda não conseguia ficar de pé. O veterinário acho que deveria passar a noite em casa, e isso custaria £900 (R$ 5.700), ou poderíamos levá-la para casa, e pagar £ 200 (R$ 1.300). Não parecia uma grande escolha.” Mas foi-lhe apresentada assim: é o que você tem que fazer, caso se preocupe com seu coelho.

Ao pensar nisso agora, Louise diz que a família, que não tinha seguro para animais de estimação, estava preparada para ser pragmática. “Ela tinha oito anos e meio; isso é bastante para um coelho. Eles tendem a viver de oito a 10 anos. Mas fizemos o que o veterinário disse.”

No dia seguinte, a clínica – que tinha sido comprada pouco antes por uma das seis grandes cadeias empresariais que detêm 60% das clínicas veterinários do Reino Unido, telefonou para dizer que Honey não melhorava e provavelmente deveria passar mais uma noite nos “cuidados intensivos”. Recebeu alta na manhã seguinte, mas quando Taylor levou-a de volta para a casa da família em Londres, ela era uma sombra do que havia sido antes – “muito sonolenta e piorando rápido”. Louise voltou ao veterinário para colocá-la para dormir. . “Realmente, acho que teria sido o melhor resultado na primeira consulta”, diz . “Mas nós a mantivemos viva por mais uma semana, a um custo de mais de £ 1.200 (R$ 7.700). Acho difícil saber como pode ter custado tanto.”

Os Taylor não são os únicos a achar cada vez mais caras as contas do veterinário ou a se perguntar se os tratamentos cada vez mais complexos sugeridos atendem aos melhores interesses de seus animais de estimação. Todo mundo parece ter uma história: £ 3.000 (R$ 19.000) para exames de sangue para um gato letárgico; £ 2.000 (R$ 12.800) para remover um dente quebrado de Jack Russell; £400 (R$ 2.500) para enfaixar o dedo deslocado de um coelho. Outros queixam-se de comprar, nas clínicas, medicamentos a preços muito superiores aos que custam online.

Escolher um veterinário para Lemony, uma cadela beagle/spaniel marrom e branca de oito anos, foi algo óbvio para Nicky Baker, 40 anos, que mora em Londres. “Há um veterinário na nossa rua, a 10 casas”, diz ela. Mas agora ela se pergunta se deveria ter feito mais pesquisas antes de adotar Lemony, resgatada de Chipre, há sete anos.

“O veterinário a examinou e foi muito gentil e com um preço razoável”, diz Nicky. “Mas alguns anos depois, tudo está muito caro e continuamos pensando que estamos sendo roubados.”

Primeiro, o veterinário disse que Lemony teria que limpar os dentes profissionalmente: “E para isso ela teria que ser sedada, o que custaria £ 500 (R$ 3.200)”. Nicky disse que ela e o marido escovavam regularmente os dentes de Lemony e recusaram a limpeza profissional. “Mas saí me sentindo mal, como se não estivesse fazendo o melhor por ela.” Em seguida, em seu check-up anual, o veterinário disse que Lemony tinha um sopro no coração. “Era novidade para nós”, diz Nicky. “O veterinário disse que poderia ser sério, mas que agora eles são muito bons em cirurgias de coração aberto para cães.” O custo foi estimado em £ 2.000- £ 4.000 (R$ 12.700 – 25.400). Mais uma vez, ela recusou o tratamento.

Então, algumas semanas atrás, Lemony comeu meio pacote de uvas passas e, como todo amante de cães sabe, elas, assim como os chocolates, podem ser venenosos para os cães. O veterinário deu a Lemony uma injeção (£ 150 – R$ 960) destinada a fazê-la vomitar as passas. Não funcionou. Eles então ofereceram uma segunda injeção, para neutralizar a náusea (mesmo preço). “O veterinário disse que ela deveria passar a noite na clínica e ser monitorada; custaria £ 500 (R$ 3.200).” Baker recusou tanto a nova injeção quanto a internação, dizendo que poderiam observá-la em casa. “Perguntamos quais mudanças deveríamos observar e o veterinário disse que ela ‘poderia parecer um pouco pálida’. Eu queria rir – ela é uma cadela predominantemente branca.”

No dia seguinte, Lemony defecou as passas e está “absolutamente bem desde então”.

Todos – incluindo os veterinários – concordam que os custos dispararam nos últimos anos. Mas é difícil descobrir exatamente quanto, já que oito em cada 10 consultórios não exibem preços em seus sites. Quando a Autoridade da Concorrência e dos Mercados do Reino Unido convidou os donos de animais de estimação a levantarem preocupações sobre o setor de 2 bilhões de libras (R$ 12,8 bi), no ano passado, 56 mil pessoas (um número sem precedentes) responderam, levando o regulador a lançar uma investigação formal sobre “múltiplas preocupações” sobre possíveis abusos de mercado.

Até uma mudança na lei em 1999, apenas cirurgiões veterinários certificados poderiam possuir clínicas veterinárias. Isto significava que a maioria dos consultórios eram pequenos negócios geridos por parceiros que conheciam os seus pacientes e desempenhavam um papel importante na comunidade, tal como na acolhedora série televisiva dos anos 80, All Creatures Great and Small (“Criaturas grandes e pequenas”). Nas últimas décadas, porém, grandes corporações têm adquirido clínicas num ritmo furioso, atraídas pelas suas margens de lucro, já razoáveis, mas que podem ser multiplicadas através da consolidação dos serviços sob a égide de uma grande empresa. Os veterinários também são considerados “à prova de recessão”, já que os britânicos reduzirão quase todo o resto das despesas para priorizar seus animais de estimação.

Em 2013, cerca de 10% dos consultórios veterinários pertenciam a seis grandes corporações; agora 60% são. Mas a marcha das “seis grandes” passou despercebida a muitos tutores de animais de estimação, uma vez que quatro em cada seis clínicas mantêm o nome e a marca da empresa independente anterior. Na maioria dos casos, eles também mantêm os veterinários existentes, dando aos antigos proprietários novos títulos, como diretor clínico (e, muitas vezes, um bom bônus…).

Gez, uma acadêmica enérgica de quase 50 anos, com cabelo prateado e óculos de aro preto, frequenta o mesmo veterinário nos arredores de Glasgow há 24 anos. Ela já levou dezenas de animais de estimação – cães, gatos e galinhas – para o consultório e eles “sempre receberam atendimento excelente, gentil e acessível. Depois foi adquirida pela My Family Vets e não só os preços dispararam, mas ela acredita que o cuidado dos animais de estimação não é mais tão bom.

“Os principais veterinários ainda são maravilhosos”, diz Gez, que não quer revelar o sobrenome devido à proximidade de sua comunidade, “mas os custos aumentaram bastante”. Ela também percebeu o que considera ser uma “cultura corporativa agressiva”. “No ano passado, quando levei nossa gata de 12 anos, Tillie, para vacinação e check-up, mal tinha largado a cesta quando a venda começou. Ofereceram-me um ‘exame completo’ muito caro, mais ou menos como exames de saúde privados para humanos.”

A agressividade continuou durante toda a visita, diz ela, com um folheto detalhando o tratamento odontológico que Tillie precisava, a um custo de £ 800 (R$ 5.100). “Havia um tom sugerindo que eu estaria de alguma forma negligenciando meu gato se recusasse.” Agora, diz ela, ir ao veterinário “pode ser como ir a uma fábrica de salsichas que vê cada animal de estimação como cifrão. Tenho sorte, posso cuidar dos meus animais.” Um porta-voz da empresa recusou-se a discutir casos individuais, mas disse que a empresa “está comprometida em fornecer aos clientes uma ampla gama de opções de cuidados e tratamento de alta qualidade”. Eles acrescentaram que seus veterinários “não recomendam tratamentos ou diagnósticos desnecessários”.

Dê uma olhada nas letras pequenas no site My Family Vets – “uma rede nacional de clínicas veterinárias locais, apoiando os donos de animais de estimação e suas comunidades” – e você descobrirá que faz parte da Independent Vetcare Ltd. Suas aquisições mais recentes mostram que foram compradas 35 clínicas ao longo deste ano, além das 60 do ano anterior. E a corporação está procurando comprar mais, com uma parte de seu site corporativo destinada a incentivar os veterinários a “ vender sua clínica … para que você possa se concentrar em ser veterinário novamente”.

Além dos consultórios veterinários, possui 38 “locais de referência” para diagnóstico especializado (radiografia digital, tomografia computadorizada, ressonância magnética, ultrassom, endoscopia) e centros de tratamento (incluindo salas de cirurgia, unidades de terapia intensiva e de reabilitação), centros para questões comportamentais, serviços de emergência fora do horário comercial, farmácias on-line e seis crematórios. O seu volume de negócios no último ano foi de quase 1 bilhão de libras (R$ 6,39 bi), um aumento de 12% em relação ao ano anterior.

A Independent Vetcare faz parte do ainda maior, a IVC Evidensia, que desde que foi fundada em 2011 comprou mais de 2.200 clínicas, hospitais e centros de urgência em 19 países. A empresa, cuja sede fica numa antiga fábrica da Cadbury perto de Bristol, está avaliada em quase 11 bilhões de libras (R$ 70 bi). Isto é mais do que o valor de mercado da Sainsbury’s e da Marks & Spencer combinadas, e se a IVC Evidensia estivesse cotada na bolsa de valores de Londres, provavelmente estaria entre as 50 maiores empresas do Reino Unido. Mas não está. É propriedade da gigante suíça de alimentos Nestlé; da Silver Lake, empresa de private equity (administração de fortunas) do Vale do Silício famosa por investir no Skype, Airbnb e Twitter; e a empresa de private equity (idem) EQT, que pertence parcialmente a um bilionário chileno.

A IVC Evidensia é o maior dos seis grandes grupos veterinários do Reino Unido. Os demais incluem Pets at Home, supermercado para animais de estimação, que possui 447 clínicas; e o Grupo CVS, que possui mais de 500, uma série de laboratórios de diagnóstico e sete crematórios para animais de estimação . A Medivet, proprietária da clínica usada pelos Taylors tem 383 veterinários e 27 veterinários noturnos de emergência no Reino Unido. Em 2023, a LGT Capital Partners, o fundo de investimento de 100 bilhões de dólares (R$ 510 bi) da “Família Principesca do Liechtenstein”, o principado de baixos impostos espremido entre a Áustria e a Suíça, comprou uma participação nele, juntamente com mais alguns fundos de private equity.

A VetPartners, outro grupo de propriedade privada, tem mais de 500 clínicas, duas escolas de enfermagem veterinária, laboratórios, uma agência local, farmácia online e 14 crematórios para animais de estimação. Finalmente, a Mars, o conglomerado norteamericano famoso por sua barra de chocolate, possui 168 clínicas veterinárias e 17 hospitais de referência no Reino Unido através da sua subsidiária Linnaeus. A Mars possui mais de 2.500 clínicas veterinárias ou hospitais em todo o mundo e mais de 40 marcas de alimentos para animais de estimação, incluindo Pedigree, Whiskas, Cesar, Sheba e Royal Canin.

O marido de Ruth Armstrong levou seu labrador preto idoso, Blackmore, ao veterinário depois que ele teve uma convulsão. Suspeitavam que talvez fosse hora de ele descansar. O veterinário aconselhou uma investigação mais aprofundada: houve uma ressonância magnética, exames de sangue e uma investigação metabólica. A conta chegou a mais de £ 7.000 (R$ 44.000).

Blackmore recebeu alta com medicação que Armstrong diz que não tolerava e “sem um plano de manejo claro”. De volta à casa da família, Blackmore sofreu outra convulsão algumas semanas depois, e Armstrong colocou-o no banco de trás do carro e foi ao veterinário. “A convulsão continuou durante todo o caminho e ele morreu na parte de trás do meu carro. Foi muito traumático porque era um cachorro maravilhoso e não merecia morrer daquele jeito.” Armstrong, 54 anos e médica, diz que não teve a opção de permitir que Blackmore pudesse descansar na primeira consulta. Ela acredita que muitos tutores preferem ver os animais de estimação livres de sofrimento do que esperar que os veterinários façam de tudo para prolongar suas vidas mais um pouco.

Ela estima que as contas do veterinário aumentaram 300% nos últimos oito anos. “Examinámos a fatura e a comparamos com os preços online, mas foi fácil ver como os números pareciam estar extremamente inflacionados”, diz ela. “Por exemplo, £ 49 (R$ 313) por uma colher de paracetamol em suspensão.” Num caso, o veterinário cobrou “uma conversa telefônica, apesar de eu não conseguir ouvir o que ele dizia”.

É a falta de transparência em torno dos preços e da propriedade das clínicas veterinárias que irrita Beverley Cuddy, editora da revista Dogs Today, e seus leitores. Beverley, cuja “obsessão por cães a acompanha ao longo da vida”, diz que seu maior orgulho foi entregar na sede do governo do Reino Unido uma petição com 100 mil assinaturas por uma nova lei para regulamentar as fazendas de criação de filhotes. Ela diz que os cães e os seus donos “precisam da sua própria Greta Thunberg” para destacar os muitos problemas enfrentados pelos bichos, acrescentando: “Enquanto não houver uma Greta, terei todo o gosto em intervir.

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