Os acidentes com fogos e a nossa opção pelo sacrifício
Publicado 04/01/2016 às 07:00
https://www.youtube.com/watch?v=jQP6QB88PIg
Naturalização dos fogos de artifício ocorre apesar das mutilações e mortes causadas pelo ritual, bancado também com dinheiro público; indústria do turismo agradece
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
Observem as cenas do vídeo acima. Em Rio das Ostras, no litoral norte fluminense, a comemoração do réveillon por pouco não acaba em tragédia. As pessoas estão de branco, com aquela alegria protocolar estampada no rosto, e os fogos começam a estourar baixo demais. Resultado: explosões em sequência, correria.
A entrada do ano ocorre sob o signo do risco. Você não verá essas cenas na televisão – é como se tivessem acontecido em outro milênio. Como se fosse obrigatório passar por essa ameaça – um tanto inerente à brincadeira com fogos – para cumprir o ritual de mais uma entrada de ano.
Sentimo-nos mais fortes, confiantes, mas somos frágeis. Em Grandes Rios, no norte do Paraná, três crianças e uma adolescente sofreram queimaduras após uma explosão. A mãe de duas das crianças postou fotos no Facebook dos filhos enfaixados, no hospital. O menino de 6 anos aparece com o rosto queimado e uma chupeta na boca.
Fiquei pensando se republicaria a foto. E está aí: republiquei. E por quê? Como alerta. E porque a cobertura dos rituais de explosões de fotos no Brasil – vem aí as festas juninas, quando os acidentes são mais frequentes – praticamente não leva em conta esse fator de risco. Como se vidas perdidas ou corpos mutilados fizessem parte do show.
Como se devêssemos oferecê-los em sacrifício, em nome da alegria coletiva.
NÓS, OS RACIONAIS
Em Manaus, um homem de 38 anos decidiu soltar fogos com a boca. Todo ano fazia algum tipo de brincadeira com os rojões. Desta vez, morreu. A bomba estourou – curioso como damos outros nomes para as bombas – e Antônio Flaguison Silva dos Santos teve o maxilar arrancado.
Boa parte dos leitores invoca sua cota diária de crueldade para ofender o falecido. Como se fôssemos razoáveis, todos nós, e ele não. Mas esse argumento vale para as crianças de 6, 9 e 11 anos acidentadas no Paraná? Qual a cota de responsabilidade da sociedade nesses acidentes?
Notem que ainda nem falei dos efeitos sobre os animais. As clínicas veterinárias recebem casos e mais casos de cães feridos ou traumatizados em decorrência do pânico. Meu irmão (veterinário) contou sobre um pastor alemão que tentou enfrentar uma porta de vidro e ficou entalado – era cortado enquanto tentava sair.
A cidade italiana de Collecchio optou por fogos de artifício silenciosos, em respeito aos animais. O post brasileiro sobre o tema teve mais de 100 mil compartilhamentos. O problema é que a iniciativa não deu certo: o barulho continuou. E o prefeito teve de pedir desculpas.
SIGAM O DINHEIRO
Em São Paulo, os municípios de Castilho e Penápolis teriam vetado a queima de fogos no réveillon “em respeito aos animais“, diz o título do Estadão. Mas o prefeito de Penápolis informa que a necessidade de economia também pesou na decisão.
E aí começamos a chegar em aspectos essenciais dessa fúria piromaníaca. Sua institucionalização ocorre com dinheiro público. E em nome de quê? Em nome do turismo – da indústria do turismo. Não se enganem: alguém estará contando dinheiro em nome de nossa alegria tão espontânea.
Até que aconteça um acidente de proporções gigantescas. Nesse dia, a imprensa ficará subitamente atenta, e se fará caça aos responsáveis. A centena de mortos nos últimos 20 anos e os milhares de feridos (ou mutilados, com dedos e mãos amputados), porém, são tomados como um efeito colateral aceitável. São os nossos sacrificados.
A terra continua girando em torno de uma bola de fogo. E que todos tenham um bom ano – mas que ninguém tenha a indelicadeza de fazer uma reportagem em hospitais de queimados.
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Alceu,
Muito bom rapaz! Mais uma vez.
Muitas vezes penso que estou equivocado, nadando contra a corrente, perto do desânimo, até aparecer idéias como a sua, a nossa. Tais “opiniões” são de uma pertinência impar. Vida longa ao seu trabalho.
Grato, Luiz! Seguimos contra a corrente.
Você não está sozinho, amigo. É que somos poucos e quietos. E,
nossa voz é baixa.
Nem tenho o que acrescentar. A constatação é óbvia: mas nossa imprensa foge do óbvio. Uma constatação só pode ser óbvia no Brasil se não fere o bolso de ninguém. É um tema que sempre me intrigou: se é tão perigoso, se as pessoas se ferem tão feio, qual o motivo de continuar com essa bobagem irresponsável? Tá respondidíssimo. A resposta nem podia ser outra. Grana, por milênios embotando a sensibilidade para a dor humana.
Nem tenho o que acrescentar. A constatação é óbvia: mas nossa imprensa foge do óbvio. Uma constatação só pode ser óbvia no Brasil se não fere o bolso de ninguém. É um tema que sempre me intrigou: se é tão perigoso, se as pessoas se ferem tão feio, qual o motivo de continuar com essa bobagem irresponsável? Tá respondidíssimo. A resposta nem podia ser outra. Grana, por milênios embotando a sensibilidade para a dor humana.
Samara, você foi a um dos pontos principais da questão: dinheiro. Os outros pontos,como exibicionismo e teleaculturalismo, também pesam, mas, o vil metal domina. O importante é que não estamos sozinhos.
Samara, você foi a um dos pontos principais da questão: dinheiro. Os outros pontos,como exibicionismo e teleaculturalismo, também pesam, mas, o vil metal domina. O importante é que não estamos sozinhos.