E a Tensão Pré-Golpe chega ao Século 21

quino-guernica

Quino, o cartunista argentino, em diálogo com a “Guernica” de Pablo Picasso

Nós, que achávamos que a democracia estava consolidada, temos agora de lidar com a perplexidade, e com sentimentos ambíguos de revolta e tristeza, asco e esperança

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

O que passava pela cabeça dos brasileiros no dia 30 de março de 1964? Apenas esperavam? Escreviam? Participavam de reuniões, articulavam manifestações? Sofriam, como sofremos hoje, ao observar esse misto de farsa e insanidade, esse desfile de usurpadores? Faziam cálculos? Tinham ideia do que viria, das duas décadas de obscurantismo, de que uma geração (a minha) seria criada sob o signo do medo?

Ao observar o cenário político, a dois dias de um golpe anunciado, tento entender o turbilhão interno, a tensão que já afetou meu braço (nada menos que meu instrumento de trabalho) e gera uma aflição à qual não estou acostumado. Como se eu estivesse andando sobre o gelo, como se algo estivesse para trincar em vários pontos, e as ilhas de conforto (as nossas ilhas de democracia) fossem se distanciando no horizonte.

Ontem escrevi sobre traições, traições políticas – de Brutus a Calabar, de Tulius Detritus a Michel Temer. Ninguém deu bola. Escrever sobre o quê? Comunicar o quê a mentes igualmente aflitas, supostamente com tensões similares? Imaginar algum consolo possível, algum jogo do contente? Repercutir a ação conjunta dos movimentos sociais pelo Brasil, sendo redundante e sem o menor cálculo sobre suas consequências?

Como falar de tensão pré-golpe em plena execução do golpe, sendo o dia 17 de abril – o dia do massacre de Eldorado dos Carajás, o dia de luta pela reforma agrária – apenas o gran finale dessa operação grotesca? Se essa tensão que sentimos já significa, em si, reação a uma violência, a uma sequência de golpes? Quando essa tensão já significa um olho roxo (imaginário), um braço espancado (quase isso), esperanças cauterizadas?

Como expor a perplexidade no momento em que ela se desenha de braços dados com a repulsa, com o mais completo asco, em meio a um sentimento de aversão que poucas vezes senti na minha vida? (Lembro-me de uma vez que entrevistei Paulo Maluf em sua casa, nos Jardins. Sentei-me ao lado dele, no mesmo sofá, estávamos em três entrevistadores. E me lembro perfeitamente do desprezo infinito que senti.)

O pesadelo vivido há 50 anos, de um país que permitia que um ser como Maluf representasse algo, fosse um prefeito, construísse um Minhocão, esse pesadelo daquela face cínica destruindo a minha cidade, em nome da ordem e do progresso, ele se concretiza agora, por meio de uma face que consegue ser mais cínica que a dele: a de Eduardo Cunha. Quem precisa de generais de pijama com civis de cara lavada?

Eu ia para a escola, nos anos 70, e cantava o hino, em fila. Agora vejo as pessoas enroladas em bandeira acreditando nesse discurso anticorrupção. Talvez nem mais acreditando tanto assim, mas vivemos numa década em que as pessoas se recusam a dar o braço a torcer, não é mesmo? Já sabem que a Presidência da República será tomada de assalto por uma quadrilha, mas ainda fazem de conta que não.

E fico triste ao pensar que aos golpistas incorrigíveis se somaram os tais isentões, outros brasileiros (supostamente mais bem informados) que igualmente minimizaram esse assalto. Movidos por rancores mais ou menos justos, eles agora assistem à iminência desse golpe um pouco mais calados. Eu diria quase envergonhados. Arriscando uma frase aqui, outra ali, de um longínquo mea culpa.

Ou talvez isso já seja um delírio pré-golpe da minha parte? Um esboço de esperança atávica de que haja unidade mínima na adversidade? Um esboço que logo se implode ao lembrar de alguns desses rostos, de certas petulâncias, de certos fanatismos monotemáticos, como se um país pudesse ser apenas o show de horrores que já foi, como se aqueles mencionados cínicos não pudessem promover horrores ainda piores?

Ambiguidades. O golpe que ainda não veio e já veio. Dúvidas. Sobre o cenário político nos próximos dias – nas ruas, no campo. Sobre o papel das polícias. Sobre essa violência federativa. Sobre o jogo de descolorir promovido pelo binarismo político. Certezas. De que muita coisa já se perdeu nessa farra às avessas, nesse hospício sem doçura, nesse teatro de marionetes entristecidas. De que todos já perdemos, eu já perdi, e de que meu braço dói a cada toque no teclado.

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13 comentários para "E a Tensão Pré-Golpe chega ao Século 21"

  1. Simone Salles disse:

    Demos bola, sim, Alceu. E compartilhamos seus sentimentos. Só nos resta resistir mobilizados nas ruas, em todas as frentes e trincheiras que econtrarmos, até domingo. E também depoi, independentemente do resultado.

  2. Catarina disse:

    Gosto muito dos seus textos e me sinto acolhida nas suas palavras em muitos deles. Me solidarizo o asco e na perplexidade!!

  3. Catarina disse:

    Gosto muito dos seus textos e me sinto acolhida nas suas palavras em muitos deles. Me solidarizo o asco e na perplexidade!!

  4. Henrique Mumme disse:

    Pra renovar as esperanças, porque quando aumenta a pressão, as pessoas explodem. Que “explodam” de forma organizada e pacífica:

    Toda pessoa deve se perguntar, de preferência por diversas vezes, se deseja ser um agente de manutenção do establishment, ou se deseja ser um agente da mudança. E se deseja manter ou mudar, de que forma? Até onde está disposto a ir? No caso da opção por mudar, as escolhas são muito mais complexas e exigem diagnósticos prévios constantemente atualizados. Exigem também sacrifícios, e que se saia das zonas de conforto (cada vez mais escassas). As armadilhas no caminho são enormes, como “clichês buracos negros” relacionados principalmente aos meios e fins, às opções difíceis que parecem não surtir efeito ou oferecer saída. Mas não se esqueça: o bater de asas de uma borboleta em Pequim faz chover em Nova Iorque… Uma vez com as asas desamarradas, bata-as com sabedoria.

    O “Império Galáctico” está prestes a exterminar a “Primeira Ordem”.
    Bandeirosos da galáxia, ao invés de apoiar a “Aliança Rebelde” (real opção contra a opressão e o colonialismo) apoiam e torcem para o Império…
    Já a “Primeira Ordem” cooptou uma série de rebeldes, convencidos de que a ameça do Império justifica tal alinhamento.
    O futuro nos reserva um incremento no alistamento de “Stormtroopers”, bem como da perseguição contra os rebeldes, e contra qualquer um que for entendido como tal.
    Enquanto se exterminam pessoas e se queimam vilas e fazendas, como a do “Tio Owen”, ficaremos no aguardo de uma “Nova Esperança”…

  5. Henrique Mumme disse:

    Pra renovar as esperanças, porque quando aumenta a pressão, as pessoas explodem. Que “explodam” de forma organizada e pacífica:

    Toda pessoa deve se perguntar, de preferência por diversas vezes, se deseja ser um agente de manutenção do establishment, ou se deseja ser um agente da mudança. E se deseja manter ou mudar, de que forma? Até onde está disposto a ir? No caso da opção por mudar, as escolhas são muito mais complexas e exigem diagnósticos prévios constantemente atualizados. Exigem também sacrifícios, e que se saia das zonas de conforto (cada vez mais escassas). As armadilhas no caminho são enormes, como “clichês buracos negros” relacionados principalmente aos meios e fins, às opções difíceis que parecem não surtir efeito ou oferecer saída. Mas não se esqueça: o bater de asas de uma borboleta em Pequim faz chover em Nova Iorque… Uma vez com as asas desamarradas, bata-as com sabedoria.

    O “Império Galáctico” está prestes a exterminar a “Primeira Ordem”.
    Bandeirosos da galáxia, ao invés de apoiar a “Aliança Rebelde” (real opção contra a opressão e o colonialismo) apoiam e torcem para o Império…
    Já a “Primeira Ordem” cooptou uma série de rebeldes, convencidos de que a ameça do Império justifica tal alinhamento.
    O futuro nos reserva um incremento no alistamento de “Stormtroopers”, bem como da perseguição contra os rebeldes, e contra qualquer um que for entendido como tal.
    Enquanto se exterminam pessoas e se queimam vilas e fazendas, como a do “Tio Owen”, ficaremos no aguardo de uma “Nova Esperança”…

  6. Lilian Pesce disse:

    Prezado Alceu,

    Curioso seu texto, pois por diversas vezes na vida imaginei como teria sido ser uma jovem nos anos 1960. Nasci em 1966, já debaixo dos tamancos da ditadura, contudo, tenho dois irmãos que eram jovens na época e me perguntava como eles conseguiram ficar indiferentes ao que se passava. Uma irmã, mais alienada, trabalhava na Fiesp em plena ditadura, tudo em nome da necessidade, é claro. Confesso, me assaltava até certa inveja daquela juventude que julgava ter tido uma oportunidade única, enquanto eu deveria me conformar com a mesmice dos dias. Então, quis o destino, que hoje eu assistisse a esses mesmos escabrosos dias, que pensei, jamais voltariam. Sobre o que pensavam os brasileiros à época? Confesso ter dificuldade em deduzir, já que tive em casa os piores exemplos de alienação política. Mas o passado não me assombra mais, o presente me entristece enormemente e relativiza as atitudes de então. Espero que seu braço esteja melhor na segunda-feira…

  7. Lilian Pesce disse:

    Prezado Alceu,

    Curioso seu texto, pois por diversas vezes na vida imaginei como teria sido ser uma jovem nos anos 1960. Nasci em 1966, já debaixo dos tamancos da ditadura, contudo, tenho dois irmãos que eram jovens na época e me perguntava como eles conseguiram ficar indiferentes ao que se passava. Uma irmã, mais alienada, trabalhava na Fiesp em plena ditadura, tudo em nome da necessidade, é claro. Confesso, me assaltava até certa inveja daquela juventude que julgava ter tido uma oportunidade única, enquanto eu deveria me conformar com a mesmice dos dias. Então, quis o destino, que hoje eu assistisse a esses mesmos escabrosos dias, que pensei, jamais voltariam. Sobre o que pensavam os brasileiros à época? Confesso ter dificuldade em deduzir, já que tive em casa os piores exemplos de alienação política. Mas o passado não me assombra mais, o presente me entristece enormemente e relativiza as atitudes de então. Espero que seu braço esteja melhor na segunda-feira…

  8. Renata disse:

    A gente tava num bar hoje falando disso. Como terá sido? O que será que terão pensado? Será que tinham ideia do que viria? Falamos de quem apostou em tirar o governo vigente achando que logo viria outra legalidade. Era só naquela hora. Só porque não gostavam daquele.
    E depois veio o depois.

  9. Renata disse:

    A gente tava num bar hoje falando disso. Como terá sido? O que será que terão pensado? Será que tinham ideia do que viria? Falamos de quem apostou em tirar o governo vigente achando que logo viria outra legalidade. Era só naquela hora. Só porque não gostavam daquele.
    E depois veio o depois.

  10. Samara Leonel disse:

    Obrigada por escrever o que estou mastigando há dias sem conseguir externar.
    Quero acreditar que enquanto houver gente que sente esse asco, será possível evitar que a treva se estenda tão densa.
    Mas não são dias bons pra acreditar.

  11. Samara Leonel disse:

    Obrigada por escrever o que estou mastigando há dias sem conseguir externar.
    Quero acreditar que enquanto houver gente que sente esse asco, será possível evitar que a treva se estenda tão densa.
    Mas não são dias bons pra acreditar.

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