Amazon, o nome da distopia
Há três décadas, empresa de Jeff Bezos é um emblema do capitalismo tardio e seus retrocessos. Devastou as livrarias e o comércio de rua, fez regredir as cidades e subjugou o trabalho. Seu novo projeto é eliminar meio milhão de ocupações
Publicado 23/10/2025 às 20:11 - Atualizado 23/10/2025 às 20:21

I.
Ao longo de três décadas, a Amazon, uma das cinco corporações mais poderosas do planeta, com faturamento superior ao PIB da Argentina ou da Suécia1, ajudou a mudar a face das cidades e as relações de trabalho. Seu imenso capital deu-lhe poder de dumping para destroçar primeiro as livrarias e, em seguida (graças, em parte, à pandemia de covid-19), boa parte do comércio de rua. Sua brutalidade diante do trabalho organizado, num tempo de mudança tecnológica e ocupações escassas, permitiu-lhe impor, em seus imensos armazéns, a submissão total às regras do capital e o banimento dos sindicatos. Agora, ela prepara-se para ir além. Segundo relatos e documentos obtidos pelo New York Times, avançará um pouco mais rumo à automação total de suas atividades e eliminará nos próximos anos, só nos Estados Unidos, meio milhão de ocupações humanas. A que tipo de sociedade pode conduzir o poder sem freios das grandes transnacionais?
II.
O novo alvo da Amazon são precisamente os armazéns-gigantes (warehouses) que lhe deram fortuna e fama, foram imitados por outras empresas em muitas partes do mundo e contribuíram para mudar os hábitos de consumo e de desfrute urbano nas metrópoles, nas últimas décadas. Há 185 deles no mundo (12 no Brasil), muitos com área de vários hectares, todos interligados a uma rede de mais de 1.000 centros de distribuição, triagem e entrega. Esta malha expandiu-se a partir de 1997, favorecida por um ambiente de desregulação das economias e liberdade máxima ao capital. Serviu-se dos avanços da tecnologia de informação, do ataque ao trabalho organizado e do empobrecimento das populações, que torna relevantes as mínimas economias. Tornou-se um concorrente implacável ao varejo tradicional, obrigado ao pagamento de aluguéis cada vez mais altos, limitado à pequena escala e afetado pelo esvaziamento das cidades — que começou na pandemia (em 2020, o lucro da Amazon cresceu 90%) mas persiste depois dele.
Embora a Amazon tenha nascido como uma livraria, em 1994, seu criador, Jeff Bezos, já nutria, antes de fundá-la, a ideia de possuir “a loja de tudo”. O termo the everything store foi cunhado por ele quando, ainda um operador financeiro, vislumbrou a chance de usar a tecnologia para estabelecer intermediação ilimitada. As lojas imensas, de cadeias como o Walmart ou o Carrefour, já existiam há muito. Mas, ao contrário delas, a Amazon podia instalar-se em locais mais remotos e menos sujeitos à especulação imobiliária. Além disso, não precisava atrair os clientes, nem tentar seduzi-los com espaços iluminados ou facilidades como estacionamentos. Cada warehouse é um espaço integralmente dedicado à acumulação.
A redução de custos resultante e as parcerias financeiras viabilizaram, desde a origem, a prática constante de dumping. A primeira vítima foram as pequenas livrarias, hoje quase extintas. Em 2020, Tadeu Breda apontou, em Outras Palavras, que a Amazon oferecia livros por valores abaixo dos praticados até mesmo por sua editora, a Elefante. O preço, além da exploração brutal dos trabalhadores, foi o fim progressivo de espaços culturais e de encontro que ajudavam a tornar mais humana a vida contemporânea.
Idêntico método de devastação da concorrência foi aplicado a todo o varejo, quando a Amazon tornou-se the everything store. O próprio Tadeu observa a relação entre esta prática devastadora e um tempo de precarização material e espiritual da vida: mesmo pequenas diferenças de preço “pesam no orçamento cada vez mais apertado do trabalhador” e o tornam vítima de sedução pelos descontos da Amazon. A promessa de entregas muito rápidas completa a atração. O método torna-se irresistível: as grandes cadeias de lojas aderem, quando têm capital suficiente, ao mesmo modelo. O pequeno comércio sucumbe. São cada vez mais raros, nas grandes cidades, os espaços ocupados por lojas não pertencentes a grandes cadeias. (O mesmo se dá, aliás, em relação a restaurantes e bares, o que estreita a riqueza e a diversidade culturais).
III.
O armazém-gigante é o núcleo desta máquina de concentração de riqueza e uniformização. Mas o efeito só pode ser obtido submetendo e alienando o trabalho em escala inédita. O processo é analisado pela socióloga Tabata da Luz Ribeiro e pelo Procurador do Trabalho Renan Kalil, em dois outros artigos publicados por esta revista (1 2). Os autores descrevem a subordinação dos trabalhadores às máquinas, nos espaços da Amazon. Neles, a lógica é a alocação aparentemente “caótica” das mercadorias, por entre os imensos corredores e suas prateleiras. Os produtos são estocados por ordem de chegada, nota a consultora norte-americana Sarah Kessler. “Em uma visita a um armazém em Nova Jersey, vi uma caixa de chá de café da manhã irlandês ao lado de um jogo de tabuleiro chamado ‘Quick Cups’, ao lado de um espremedor de frutas cítricas”, conta ela.
Mas há lógica nesta aparente desordem. Tabata explica que o registro da localização de cada item é feito por um código de barras e armazenado na memória das máquinas e sistemas da Amazon. Configura-se o que alguns autores chamam de “desapropriação mecânica”: “O conhecimento sobre um inventário tão grande e organizado dessa maneira só pode ser feito por um software. Nenhuma pessoa é capaz de operar o galpão sem o leitor [de códigos de barras]”. Além de estocar, cabe aos trabalhadores a colheita (“pickling”) das mercadorias, quando demandadas. “O algoritmo atribui a demanda às/aos trabalhadoras/es que estão espalhadas/os pelo galpão, ditando ritmo de trabalho e gerando informações sobre o desempenho de cada uma/um”. A atividade humana é substituível e essencialmente braçal. Em sua faina, os trabalhadores acosturam-se, em determinada fase da empresa, a caminhar muitos quilômetros, todos os dias, pelos infinitos corredores.
Em 2018, a Amazon chegou a criar e patentear um bracelete que, atado ao pulso de cada trabalhador, mediria e registraria os movimentos de suas mãos, braços e todo o corpo. O dispositivo não chegou a ser implementado, devido à óbvia rejeição social e jurídica que poderia despertar. Mas o recuo é quase irrelevante. A corporação alcança seus objetivos de “eficiência” e monitoramento por meio de uma combinação de scanners de mão, tablets, câmeras de segurança, sistemas de gerenciamento por algoritmos e robótica avançada.
Uma cultura corporativa muito específica tenta criar condições ideológicas e psíquicas para os trabalhadores suportarem tal regime. Elas estão descritas num texto de Panos Theodoropoulos, intitulado “A Amazon tenta forjar o trabalhador-vassalo”. Há intensa gamificação, com metas, punições e “recompensas”. Há um sistema interno de comunicação, por meio do qual os funcionários são estimulados a apontar falhas e fazer elogios (shout-outs). Nele, contou Ken Kloppenstein no Intercept Brasil, estão banidas palavras “perigosas”, como “sindicato”, “demitir”, “aumento salarial”, “assédio”, “estúpido”, “queixa”, “escravo”, “salário digno”, “injusto” e “liberdade”.
Sindicato, aliás, é algo vedado muito além do léxico. Para impor suas relações de sujeição total, a Amazon age para buscar restringir ao máximo qualquer forma de união e solidariedade entre os trabalhadores. Nos Estados Unidos, onde a participação sindical é coletiva e precisa ser decidida no âmbito de cada unidade de trabalho, a empresa atua intensamente para tentar impedi-la. O primeiro sindicato numa warehouse surgiu somente em 2022, em Nova York, após prolongada luta, relatada pelo jornalista Arturo Pacheco, no Brasil de Fato. Segundo ele, “os trabalhadores reportaram que, diariamente — duas vezes por dia — ou ao final de semana, eram organizados encontros nos quais a empresa reunia os trabalhadores e lhes dizia os efeitos negativos de se filiar ao sindicato. (…) Vídeos e material impresso tentavam desencorajar os empregados de votarem para aderir. Utilizavam frases como ‘Um time trabalhando junto’ e ‘Desempacote isso: saiba os fatos sobre os sindicatos’”. Ao final, 4.785 dos 8 mil trabalhadores resistiram à intimidação e conseguiram criar sua entidade.
IV.
Sintonizada com as lógicas do capitalismo tardio, a Amazon recebeu, além disso, a partir de 2020, o impulso… da pandemia. O isolamento social, que fez minguar o comércio de rua, estufou suas velas. Para ampliar seus lucros, receitas e a fortuna de Jeff Bezos (da qual se falará adiante), a corporação foi obrigada a contratar um exército de trabalhadores. Há 1,2 milhão deles hoje — três vezes mais que em 2018. Em todo o mundo, só a Walmart, bem menos avançada tecnologicamente, emprega mais.
Mas a julgar pelos documentos obtidos pelo New York Times e pelo anúncio feito pela própria corporação horas depois, parece ter sido algo indesejado — um dano colateral temporário. A Amazon já tem planos detalhados, e talvez a tecnologia necessária, para continuar expandindo seu domínio no setor de varejo e dobrar as vendas até 2033, mantendo o mesmo número de funcionários de hoje. Significa, num primeiro momento, deixar de contratar 600 mil pessoas; e possivelmente, numa segunda fase, demitir, via automação, parte considerável de seu gigantesco exército de mão de obra.
O flerte de Jeff Bezos com a substituição do trabalho humano é antigo. Em 2012, a Amazon adquiriu, por 775 milhões de dólares, a Kiva, uma fabricante de robôs hoje rebatizada como Amazon Robotics. Esta passou, desde então, a se concentrar no exame do trabalho humano nos armazéns e em como substituí-lo. Vieram robôs como Proteus, Hercules, Shantus, Robin e Cardinal. Entre outras tarefas, eles passaram a se deslocar pelos corredores, identificar e transportar prateleiras inteiras, para em seguida entregá-las aos humanos e designar-lhes tarefas — o empacotamento, por exemplo. A última novidade é o Blue Jay, apresentado nesta quarta-feira (22/10). Batizado em referência ao galo azul, uma ave nativa do sul dos Estados Unidos, ele funciona em conjunto com o sistema de IA Eluma. Muito mais refinado que seus irmãos mais velhos, é capaz de cumprir a maior parte dos papéis que haviam restado aos humanos nas warehouses. Suas células poderosas de sucção pinçam os produtos das prateleiras. Seus sensores óticos permitem ler etiquetas, separar e armazenar itens e consolidar as entregas em pacotes para endereços semelhantes.
Embora já desenvolvidos e operacionais, Blue Jay e Eluma foram mantidos em segredo até 22/10. Vieram à luz um dia depois de o New York Times quebrar o sigilo sobre os planos da Amazon para eliminar ocupações em massa. Diante da revelação, é provável que a Amazon tenha pretendido mudar o foco, usando a novidade tecnológica para encobrir a devastação social.
Assinada pela experiente repórter Karen Weixe, e construída com base em documentos da Amazon e depoimentos de desenvolvedores da empresa que falaram sob anonimato, a matéria demonstra que está em curso uma transformação radical nos armazéns gigantes. A experiência piloto foi lançada na warehouse de Shreveport, Louisiana, inaugurada no final do ano passado, com área de 28 hectares. Até o final de 2027, mais 40 armazéns gigantes passarão por retrofit, para incorporar os novos robôs. O objetivo é eliminar 75% das atividades humanas hoje realizadas nos galpões. Esta “economia” eliminará mais de meio milhão de postos de trabalho até 2033, segundo os planos da Amazon.
Os planos da Amazon incluem um esforço de anestesiamento social. A empresa lançará um esforço de relações públicas para sustentar que adota “boas práticas corporativas”, nas cidades e regiões cujos armazéns passarem pela transformação. Os documentos reunidos por Karen Weixe descem aos detalhes. Quando o uso de robôs vier à baila, deve-se evitar termos como “automação” e “IA”. É melhor substituí-los por “tecnologia avançada”. Mesmo a palavra “robô” deve ser deixada de lado, buscando-se emplacar o neologismo “cobô” (cobot), que sugere colaboração com humanos…
V.
Um dos paradoxos centrais da crise civilizatória é a captura do saber tecnológico por um punhado de rentistas. Invenções como o Blue Jay e seus antecessores seriam, em outras condições, extremamente úteis e bem-vindas, pelo trabalho humano que poupam. Os resultados de três décadas de existência da Amazon são, em contrapartida, devastadores. Milhares de pequenas livrarias foram varridas do mapa. O comércio de rua refluiu. A ação da empresa ajudou a tornar as cidades menos movimentadas e diversas. Para cada ocupação criada, muitas outras deixaram de existir. Em breve, as novas rodadas de “modernização” eliminarão até estes postos de trabalho provisoriamente criados.
No mesmo período, Jeff Bezos tornou-se um dos homens mais ricos da Terra (costuma oscilar entre o primeiro e quarto postos, em função apenas das oscilações da cotação da Amazon nas bolsas de valores). No ano central da pandemia, 2020, sua fortuna ampliou-se em 64 bilhões de dólares. A cada minuto, ele ganhou 120 mil dólares. No tempo em que você levou para ler este texto até aqui, foram 12,5 milhões de reais — o mesmo que um trabalhador de salário mínimo levará 688 anos para receber.
Um sistema que alimenta relações sociais deste tipo merece sobreviver?
Nota:
1A Amazon anunciou, em 2024, um faturamento de US$ 638 bilhões. No mesmo ano, segundo o Banco Mundial, o PIB da Argentina atingiu US$ 633 bi e o da Suécia, US$ 610 bi.
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