Quando o precarizado serve às máquinas

Plataformas crowdwork robotizam o trabalho humano através de microtarefas — e instituem “leilões de frilas”. Quase sempre são para “treinar” a inteligência artificial. É o sonho capitalista de cortar custos dos tempos improdutivos

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> Este artigo integra as discussões sobre o espraiamento do processo de digitalização da economia, sobretudo no que se refere às empresas-plataforma de trabalho, no Brasil. São publicadas semanalmente em Outras Palavras e fazem parte de duas edições da Revista da Faculdade do Dieese de Ciências do Trabalho. A publicação é fruto de parceria com a Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) e a Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET). Leia outros textos desta série sobre as várias faces da precarização do trabalho.

> Título original: Plataformas de trabalho crowdwork

O crowdwork (ou trabalho-de-multidão, em uma tradução literal) é uma forma de trabalho realizada por meio de plataformas digitais em que indivíduos ou empresas solicitam a execução de tarefas online para trabalhadores.as1. Também chamada de terceirização online, geralmente é adotada por empresas que transferem uma atividade que anteriormente era executada por seus empregados.as para uma grande e indefinida rede de trabalhadores.as a partir de uma chamada aberta em uma plataforma digital. A fragmentação do trabalho proporcionado pelo crowdwork nega aos trabalhadores.as a possibilidade de visualizarem o processo produtivo do qual são parte, de compreenderem a contribuição dada a um produto ou serviço e de valorarem o que fazem.

Os três principais atores da relação de trabalho no crowdwork são os solicitantes/tomadores de serviço, as empresas proprietárias da plataforma digital e os trabalhadores.as. Como regra, o conteúdo do trabalho é determinado pelos dois primeiros e os trabalhadores.as são contratados como autônomos.

Os tipos de trabalho mais comuns solicitados nas plataformas de crowdwork se relacionam com projetos, competições ou microtarefas. Os primeiros abrangem atividades de alta ou média complexidade, cuja duração pode chegar a meses. Nesses casos, os solicitantes escolhem um trabalhador para realizar uma determinada atividade em um certo período, existindo espaço para negociar o valor da remuneração. A Topcoder, a Appen e a Lionbridge são plataformas de crowdwork que operam com projetos. Os segundos são trabalhos de média complexidade, realizados em semanas ou meses. Os solicitantes fazem uma chamada para trabalhadores desenvolverem certa atividade e, após recebê-las por um determinado período, selecionam uma ou algumas vencedoras. O preço é estabelecido previamente e pago somente para quem teve o trabalho escolhido. Como exemplos de plataformas que oferecem esse tipo de trabalho, há a InnoCentive e a crowdSPRING. Os terceiros tratam de tarefas simples, em que sua execução dura segundos ou minutos e a seleção dos trabalhadores é feita por ordem de chegada, em plataformas como a FigureEight e a Clickworker.

Em termos quantitativos, a maior demanda é pelas microtarefas. Suas principais categorias são busca por informações (em que a pessoa tem de procurar dados na internet, como o endereço de um estabelecimento), verificação e validação (como a averiguação da veracidade de um perfil em uma rede social), interpretação e análise (como a classificação de produtos comercializados por uma empresa) e criação de conteúdo (como resumir um documento ou transcrever uma gravação de áudio).

Parcela expressiva das microtarefas solicitadas se relacionam com o chamado trabalho cultural, ou seja, com a classificação e o processamento de grandes volumes de dados, como novas formas de linguagem, imagens, sons e informações sensoriais. Estes tipos de dados alimentam intensamente redes sociais, como o Facebook, canais de vídeo, YouTube, sites de busca como o Google, e telefones celulares. Os trabalhadores geram informações “treinadas” e customizadas, que ensinam algoritmos a combinar e compreender padrões produzidos por seres humanos em face de determinados assuntos.

Grande parte da demanda por essas microtarefas é oriunda de empresas de tecnologia. Elas precisam dos trabalhadores.as pois os computadores não têm as referências culturais necessárias para interpretar linguagem, imagem e som. Muito pouco da face humana da tecnologia é mostrada, apesar de o trabalho humano viabilizar que essas empresas desenvolvam produtos dotados de inteligência artificial, aprendizado de máquinas e big data.

Um exemplo desse trabalho cultural é a avaliação de timelines de usuários.as de redes sociais e o julgamento de disputas sobre conteúdo denunciado em páginas da internet. Isto exige, da parte dos.as trabalhadores.as destas plataformas, o conhecimento de contexto e particularidades próprias das interações humanas. A inteligência artificial e o aprendizado de máquinas possuem limitações para fazer essa análise. Assim, conforme os.as trabalhadores.as vão realizando tais atividades e “treinam” as tecnologias, as capacidades de inteligência artificial avançam e os trabalhadores.as são designados para executarem novas atividades. É um ciclo virtuoso para as empresas de tecnologia. Diversos autores chamam essas tarefas realizadas pelos seres humanos de “trabalho escondido”, “trabalho fantasma” e “atrás das cortinas”, o que evidencia a sua invisibilidade2.

A plataforma de crowdwork mais conhecida que oferece microtarefas é a Amazon Mechanical Turk (MTurk). Segundo a empresa, há 500 mil trabalhadores registrados, sendo que a grande maioria está localizada nos Estados Unidos e na Índia. Em pesquisa realizada pelo Escritório Internacional do Trabalho da OIT entre 2015 e 2017 com trabalhadores.as de ambos os países, a maioria relatou o recebimento de baixos valores pelas atividades executadas, a ausência de instruções suficientes para realizar as tarefas oferecidas e a realização de trabalhos sem a correspondente remuneração3.

Além disso, há o problema do não pagamento de trabalhadores.as que ocorre quando o trabalho realizado é rejeitado pelo.a solicitante. Este recurso foi introduzido pelas plataformas com a justificativa de inibir trabalhadores.as de enviarem tarefas mal executadas aos solicitantes e serem remunerados mesmo assim, sendo uma forma de “controle de qualidade”. A rejeição deveria ocorrer por “justa causa”. Contudo, não há especificação do que seja “justa causa” e, geralmente, quando se rejeita um trabalho, os.as solicitantes preenchem qualquer caractere no campo destinado à apresentação da justificativa – como “.”, “x” ou “1” e não há análise sobre a motivação da rejeição por parte da Amazon Mechanical Turk. Ou seja, um mecanismo introduzido para evitar supostos abusos dos.as trabalhadores.as é utilizado para permitir uma grave violação aos direitos dos.as mesmos.as, que é a execução de trabalho sem a correspondente remuneração.

Em relação ao tempo de trabalho, de acordo com o estudo citado anteriormente da OIT, os.as trabalhadores.as norte-americanos da MTurk realizam, em média, 22,7 horas de atividades pagas e 8,2 horas de tarefas não pagas, como procurar trabalhos na plataforma, por semana. Os indianos fazem 24,4 horas de tarefas pagas e 7,3 horas de tarefas não pagas semanalmente. Portanto, percebe-se que aproximadamente um terço do tempo dedicado às plataformas pelos.as trabalhadores.as não é remunerado.

A combinação do acesso rápido ao trabalho, da multidão de trabalhadores.as disponíveis nas plataformas de crowdwork e desse formato de remuneração permite aos.as solicitantes diminuir ou eliminar os custos dos tempos improdutivos no trabalho sem grandes perdas no processo produtivo, reduzir o preço para os seus consumidores e aumentar a sua margem de lucro. Nesse sentido, o CEO (Chefe Executivo de Ofício) da FigureEight (antiga Crowdflower) expressou sua opinião sobre o grande diferencial do crowdwork: “Antes da internet, seria muito difícil encontrar alguém, sentar-se com ele por dez minutos, fazê-lo trabalhar para você por dez minutos e então dispensá-lo depois desses dez minutos. Mas com a tecnologia, você realmente pode encontrá-lo, pagar uma pequena quantia de dinheiro e livrar-se dele quando não precisar mais”4.

Em pesquisa desenvolvida com brasileiros que atuam para a MTurk em 2018, além de a maior parte dos.as entrevistados.as mencionar os mesmos problemas dos.as norte-americanos.as e dos.as indianos.as – indicando que algumas insatisfações ultrapassam as fronteiras nacionais –, apontou-se o desejo de ser pago em espécie. Isto porque o pagamento dos.as trabalhadores.as ocorre conforme a localização. Os que atuam nos EUA recebem em dólares e os que trabalham na Índia, em rúpias. Os trabalhadores que executam as tarefas em outras localidades – como no Brasil – recebem créditos para serem utilizados na loja virtual da Amazon.

Especificamente em relação ao Brasil, há plataformas de crowdwork que operam com projetos e estão ganhando popularidade no país, como a Appen e a Lionbridge, cujas condições de trabalho são diferentes da MTurk. Trata-se de plataformas de projetos nas quais as atividades demandadas são de alta ou média complexidade e os/as trabalhadores.as possuem melhores condições para estabelecer o preço em seu trabalho, o que não ocorre na plataforma da Amazon.

Compreender a dinâmica e as particularidades das plataformas de crowdwork é fundamental para que os debates sobre as condições de trabalho em plataformas digitais e as tentativas de regulação levem em consideração a realidade desses.as trabalhadores.as, de forma que possam ser efetivamente protegidos.


1 Parte das reflexões apresentadas neste texto foram inicialmente desenvolvidas em: KALIL, R. B.. A regulação do trabalho via plataformas digitais. São Paulo: Editora Blucher, 2020, p. 139-170; KALIL, R. B.. Crowdwork, a terceirização online. Carta Capital, São Paulo, 06 abr. 2021. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/crowdwork-a-terceirizacao-online/. Acesso em: 06.08. 2021.

2 IRANI, L. The cultural work of microwork. New Media & Society, v. 17, n. 5, may 2015; GRAY, Mary; SURI, Siddarth. The Humans Working Behind the AI Curtain. Harvard Business Review, Cambridge, jan. 2017. Disponível em: https://hbr.org/2017/01/the-humans-working-behind-the-ai-curtain. Acesso em: 06.08. 2021; GRAY, M; SURI, S. Ghost work: how to stop Silicon Valley from building a new global underclass. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2019, p. xxii.

3 BERG, J. et al. Digital labour platforms and the future of work: Towards decent work in the online world: Geneva: International Labour Office, 2018.

4 MARVIT, Moshe. How crowdworkers became the ghosts in the digital machine. The Nation, New York, 24 feb. 2014. Disponível em: https://www.thenation.com/article/how-crowdworkers-became-ghosts-digital-machine. Acesso em: 16.08.2018.

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