Poderão as novas tecnologias tornar o trabalho obsoleto?

Com a IA e as TICs, reaparece velho fetiche – o da “superação” do labor humano.
Inteção é óbvia: esconder uma precarização cada vez mais intensa, para torná-la irreversível. Felizmente, seguem vivos o trabalho, a revolta contra sua exploração e a busca de novos sentidos para ele

Roteiristas de Hollywood em greve, em 2023, contra o uso de inteligência artificial pelos estúdios de cinema, que buscam substituir trabalho humano para multiplicar lucros
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Título original:
O fetiche da tecnologia e o trabalho digital no capitalismo contemporâneo

A “plataformização do trabalho”, no campo da sociologia do trabalho, tem ocupado grande centralidade dentre os estudiosos em todo o mundo, pois se trata de uma nova forma de organização do trabalho no contexto da quarta revolução tecnológica, com a criação das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) – Internet das coisas, “Inteligência Artificial”, Algoritmos, Teletralho. Um conjunto de meios de produção que se propagaram no interior de uma reestruturação produtiva permanente, para atender às demandas do capitalismo financeirizado sob a hegemonia neoliberal e que colocaram a precarização do trabalho como estratégia de dominação, com a supressão da legislação social e trabalhista. 1

O capitalismo contemporâneo, dominado pelo rentismo, funciona com base em um alto volume de dados e informações de curtíssimo prazo, para alimentar a sua volatilidade, onde a aceleração do tempo é condição sine qua non para o seu sucesso. Tal lógica empresarial contamina todos os campos da produção, do trabalho e dos modos de vida. O “curto prazo”, o “aqui e agora” tornam-se práticas sociais e subordinam os trabalhadores a uma condição precária de trabalho e de vida. A insegurança, a provisoriedade, a flexibilidade regem os processos de trabalho, sua organização e as formas de contrato. Nesta medida, se impõem o trabalho fragmentado, sem direitos, individualizado, intensificado, e dominado pela ideologia do empreendedorismo, negando a condição de trabalhador, transformando-o em “empresário de si mesmo” e, portanto, com responsabilização individual sobre o seu sucesso ou fracasso. É a racionalidade neoliberal e a financeirização que buscam destruir o trabalho como espaço coletivo e emancipador.

Neste contexto, é que se pode compreender a busca pelo ocultamento da relação de trabalho via tecnologia, sobretudo pelas empresas de aplicativo e as big techs. O fetichismo da tecnologia atinge o seu mais alto nível, à medida que os algoritmos, a Inteligência Artificial, a Internet, as TICs passam a ter uma autonomia quase absoluta, atuando de “forma fantasmagórica” – uma mercadoria com vida própria, como diz Marx, no mercado e na sociedade.

Na realidade, toda tecnologia é fruto do trabalho humano, principal forma de sociabilidade. Na história do capitalismo, as revoluções tecnológicas sempre estiveram subordinadas à lógica da acumulação de riquezas, tendo por objetivo o controle e a disciplinarização do trabalho. E como a todo trabalho corresponde um modo de vida, o que se assiste hoje é que o trabalho digital passa a determinar outros espaços de sociabilidade: a família, escola/educação, saúde, religião, lazer, o consumo etc, generalizando, portanto, uma “digitalização da vida”. Tal momento histórico da sociedade, embora com denominações diferentes – capitalismo de vigilância, capitalismo de plataforma, capitalismo digital, capitalismo neoliberal – tem em comum o fato de grandes e poucas corporações (big techs) deterem a propriedade dessas tecnologias, o controle sobre o seu uso e disseminarem ideologicamente a ideia do fim do trabalho humano e sua substituição pelas tecnologias digitais.

Esse ocultamento das relações de trabalho através das TICs se expressa no uso de expressões e de seus conteúdos, que reforçam uma autonomização dos fenômenos, cujo exemplo mais evidente é a “Inteligência Artificial”, elevada ao poder de substituição total da ação humana. Para fazer frente a essa disseminação de um determinismo tecnológico fetichizado, há um conjunto de trabalhos acadêmicos e pesquisas que tem revelado a realidade por trás das tecnologias, especialmente sobre o lugar do trabalho humano.2 Vale mencionar a elaboração do Antiglossário – da inteligência “artificial” e do trabalho por plataformas, publicado em 2023, que, além de elaborar verbetes como algoritmo, economia do compartilhamento, empreendedorismo, gig economy, plataforma, trabalho digital, inteligência artificial, dentre outros, disponibiliza textos críticos sobre cada um dos temas.3 ” Segundo os autores, “… a linguagem é sequestrada não pela inteligência artificial, mas por quem cria, opera e detém a propriedade dessas empresas e dessas tecnologias que estão moldando nossa existência.” (p29)

Sobre a “Inteligência Artificial”4, há um conjunto de questionamentos que buscam demonstrar o necessário e indispensável trabalho humano para todos os sistemas automatizados. Segundo estudiosos, para o funcionamento de um sistema de inteligência artificial, é necessário partir da atividade extrativista nas minas, trabalho em condições precárias, em muitos casos análogo à escravidão, com o uso de trabalho infantil, em minas localizadas no sul global e que produzem as matérias primas básicas para as tecnologias de informação. Numa outra etapa, o trabalho realizado para a produção e montagem de hardware submetido a um rigoroso controle sob a “gerência científica” das big techs e sua cadeia de fornecedores. E o trabalho invisível de um exército de trabalhadores, com contratos através de terceirização, por projetos e em geral sem nenhuma proteção social, que examinam, classificam e alimentam os dados para a IA. E ainda se pode acrescentar o trabalho não pago dos usuários da IA. São processos de trabalho diferentes que constituem o “trabalho digital”, que não é nem efêmero, nem virtual, mas composto por diferentes processos de produção.5

Em síntese, é preciso desmistificar que o futuro do trabalho humano é o seu fim, suplantado pelas novas tecnologias. Para isso é fundamental valorizar e divulgar as pesquisas que revelam as realidades socioeconômicas transformadas por esta última revolução tecnológica que, no campo do trabalho, não diminuiu o desgaste e sofrimento dos trabalhadores, não reduziu o grau de exploração a que estão submetidos, não diminuiu as jornadas de trabalho e intensificou a precarização. As grandes corporações, através de plataformas digitais, não dispensam o trabalho humano, mas não reconhecem a condição de trabalhadores empregados e submetidos ao seu controle. Por isso, são milhões de empregados sem direitos, com baixos salários que vivem na solidão do mercado, responsabilizados pelo seu sucesso ou fracasso, individualizados e dispersos, enfraquecendo os vínculos sociais e ações coletivas.

As tecnologias não são neutras; produtos de relações de poder, são um terreno permeado de contradições e disputas políticas. E, apesar da dispersão e do grau de precarização, diversas são as manifestações de resistência e recusa dos trabalhadores, a exemplo dos “breque dos apps”, que reuniu milhares de trabalhadores de aplicativos nas ruas, reivindicando melhores condições de trabalho e de remuneração; das estratégias individuais e coletivas de trabalhadores que alimentam os dados e fiscalizam conteúdos, que burlam os controles de algoritmos e redefinem seus tempos de trabalho, ou mesmo aqueles que abandonam suas atividades, negando continuar em condições tão precárias. Assim como as experiências, no Brasil e internacionalmente, da auto-organização dos trabalhadores, através das cooperativas de plataformas, movimentos que colocam em questão as relações de propriedade numa clara perspectiva de desmercantilizar as TICS. Portanto, o futuro do trabalho depende das lutas e relações de forças construídas pela ação dos trabalhadores em sua disputa com o capital, que só pode continuar existindo através do uso da força de trabalho.

1 Há um conjunto muito amplo de publicações sobre o tema no Brasil e no mundo, cito a coletânea organizada por Ricardo Antunes: Uberização, trabalho digital e indústria 4.0, publicada pela Boitempo, em 2021, que reúne 21 autores brasileiros e de outros países, com 19 capítulos que analisam criticamente, a partir de diferentes campos empíricos, o trabalho digital e suas implicações para os trabalhadores.

2 Ver os trabalhos e seminários organizados pelo Digilabour- Laboratório de Pesquisa – https://digilabour.com.br/ e o livro organizado por Rafael Grohmann: Os laboratórios do trabalho digital (entrevistas), Boitempo, em 2021.

3 Antiglossário – da inteligência “artificial” e do trabalho por plataformas , Cristina Maiello, Fabiana de Oliveira Benedito, Paulo Eduardo Palma Beraldo, julho/2023, disponível em: https://digilabour.com.br/pt/antiglossario-questiona-imaginarios-sobre-ia-e-trabalho-por-plataformas/

4 De acordo com o neurocientista Miguel Nicolelis, a Inteligência Artificial “não é nem inteligente, nem artificial”.

5 Ver Anatomia de um sistema de inteligência artificial: o amazon echo como mapa anatômico de trabalho humano, dados e recursos planetários. Por Kate Crawford e Vladan Joler. (2018) Tradução e análise de Cristiana Gonzalez e Pedro P. Ferreira; com colaboração de Pedro Paulino. Disponível em: https://www.comciencia.br/anatomia-de-um-sistema-de-inteligencia-artificial/ Revista Eletronica ComCiência da SBPC.

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