Para superar a agonia da civilização patriarcal

Às vésperas do G20, reflexão sobre o agravamento da policrise, à luz de Morin, Maturana e Luiz Marques. Estaríamos no estertor de um padrão cultural iniciado há seis milênios? Quais as chances de evitar o colapso e virar a página?

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Há pouco pensamento político hoje que se esforce para entender o presente.
Parece não haver projeto político que reconheça que a era moderna,
com suas ilusões prevalentes da conquista da natureza e do progresso
rumo a uma civilização universal, realmente chegou ao fim.”
(John Gray, 2008)

Uma crescente e insondável perturbação global, sem precedentes na história da humanidade, apresenta-se como principal sintoma da desorientação contemporânea, face à confluência dos distúrbios climáticos e geopolíticos, em escala planetária, que estão em andamento. Este é um dado da insólita realidade atual muito difícil de ser ignorado, embora ainda haja muita alienação em torno desse assunto e um forte ativismo negacionista daqueles que idolatram o tecnomercado e a manutenção do seu expansionismo predatório e ecocida, uma das causas primárias de tais distúrbios. Esta sombria percepção tem sido ratificada por nada menos que o maior coletivo intergovernamental do globo, a Organização das Nações Unidas (ONU), como podemos observar nos seus frequentes alertas. O mais recente foi manifestado pelo Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos, o diplomata austríaco Volker Türk, para quem “o mundo está em uma encruzilhada e caminhando para um futuro distópico de escalada militar, repressão e desinformação.”

O que é mais emblemático e preocupante nesse processo de decomposição civilizatória é perceber que nossos principais atores políticos, os presidentes dos 193 países-membros associados à ONU e os líderes das megacorporações transnacionais, parecem desnorteados e inertes diante do agravamento dos eventos climáticos e geopolíticos, cada vez mais extremos, e, agora, cotidianos – uma vez que há sempre alguma anomalia ambiental ou política atualmente em curso, em algum lugar do planeta.

A humanidade ultrapassou seis das nove fronteiras planetárias, tornando-se refém de ondas de calor letais, secas severas, incêndios florestais devastadores, derretimento das calotas polares com o consequente aumento do nível dos oceanos, inundações, furacões e ciclones colossais, declínio acelerado da biodiversidade, poluição químico-industrial descontrolada, migrações humanas forçadas, crises sanitárias recorrentes, dentre outras anomalias ambientais, reforçando ainda mais a tendência a conflitos, agora por recursos naturais declinantes. Tudo isso associado a um degradado contexto geopolítico que retroalimenta a catástrofe socioambiental em curso. E essa lista cataclísmica contempla apenas alguns dos indícios mais visíveis de uma aflição civilizatória que está só no seu início.

Diante desse contexto contemporâneo de policrise terminal, face ao aprofundamento da instabilidade geopolítica imbricado com o acelerado processo de mudanças climáticas da Terra, com gravíssimas implicações para a sobrevivência da nossa espécie, uma das perguntas essenciais sobre o futuro, que deveria nortear os governantes hoje é: “Quais são os desdobramentos esperados para o planeta e para a humanidade nas próximas décadas?”.

Embora o imediatismo e as distrações do mundo moderno ofusquem cada vez mais esse tipo de reflexão, o máximo que os agentes políticos e o senso comum têm avançado nessa compreensão de futuro é se conformar com a suposta perspectiva de que a humanidade passará a viver o conturbado contexto atual como um “novo normal”, percepção esta que, em geral, revela-se sob duas principais formas de dissonância cognitiva sobre o futuro, que se reforçam mutuamente.

A primeira é a dos economistas e tecnocratas secularistas, onde se incluem os transumanistas que emanaram do Vale do Silício a partir dos anos 1980, para os quais a percepção sobre futuro é a de que a tecnociência e o desenvolvimentismo laicos darão conta da atual instabilidade planetária, que, segundo estes, nada mais é do que outra perturbação sazonal constitutiva do metabolismo cíclico da Terra, justificadora das tais externalidades inerentes ao suposto progresso da civilização. Ou seja, as instabilidades atuais são apenas sintomas de uma reacomodação climática e geopolítica às necessidades humanas pós-modernas e, segundo os transumanistas, necessidades também pós-humanas, face à aposta que fazem no surgimento de um novo Homo Deus, proporcionado pelas inovações do novo mundo high tech.

A segunda está refletida no entendimento do cidadão comum, para o qual a resposta a esta pergunta sobre o que nos reserva o futuro é encontrada na religião. Como sempre ocorreu em momentos de profunda desorientação civilizatória, a percepção das massas é, mais uma vez, a de que o tempo do Apocalipse está próximo, restando-nos aguardar a providência divina, imaginário este que sempre resvala para a política, na qual despontam líderes populistas messiânicos, conservadores e extremistas, assim como arrivistas dos mais variados matizes ideológicos, com promessas de prosperidade a todos, via soluções tecnomercadológicas redentoras. Não é à toa, por exemplo, o crescente fenômeno do ativismo neopentecostal no cenário político mundial, que brotou junto com o neoliberalismo despertado nos anos 1970 e 1980.

No entanto, do ponto de vista dos cientistas ambientais e sociais (aqueles não contaminados pelos negacionismos climático e histórico), nos muitos centros de pesquisa que estão se dedicando ao assunto das mudanças climáticas em compasso com a degradada geopolítica contemporânea, a percepção é a de que nossa civilização, face à aguda policrise que vem irrompendo nas últimas décadas, está diante do maior impasse civilizatório já ocorrido em sua história.

Para este restritíssimo grupo, parece haver um consenso de que as circunstâncias históricas que levaram à tragédia civilizatória atual estão, em grande medida, atreladas aos desdobramentos dos muitos eventos geopolíticos encadeados que alçaram os EUA à condição de potência hegemônica global, ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial. Dentre esses eventos, vale relembrar os que talvez tenham sido decisivos para a continuidade do projeto dominador, racionalista e eurocêntrico do Ocidente: a Conferência do Atlântico (agosto de 1941), a declaração conjunta (EUA, Reino Unido, China e Austrália) de guerra ao Japão (dezembro de 1941), a Declaração das Nações Unidas (janeiro de 1942), a Conferência de Casablanca que impôs a “rendição incondicional” às potências do Eixo (janeiro de 1943), os acordos de Bretton Woods (julho de 1944), o cerco dos aliados ocidentais ao exército do Terceiro Reich que culminou na Batalha de Berlim (março e abril de 1945) e a solução americana de desenvolver e lançar as bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki (agosto de 1945) para estancar de vez a matança das duas Guerras Mundias, inaugurando a corrida armamentista da Guerra Fria (1947-1991) – desde essa época, foram realizadas mais de duas mil detonações nucleares de testes e demonstrações.

Tais encadeamentos geopolíticos, somados à leniência da ONU (a partir de sua criação em outubro de 1945) e à proteção da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN (a partir de abril de 1949), asseguraram a hegemonia cultural, tecnológica, militar e econômica dos Estados Unidos nas décadas seguintes, deflagrando o processo de crescimento ilimitado responsável pela “Grande Aceleração” desenvolvimentista iniciada com os Trinta Anos Gloriosos (1945-1975) – que permitiram o Estado de bem-estar social americano, europeu e japonês (1947-1973). Mesmo com os abalos geopolíticos do Choque de Nixon (agosto de 1971), em que o padrão dólar-ouro foi substituído pelo regime de flutuação (dólar como moeda-reserva) ao sabor do mercado, especialmente o do “capitalismo democrático” estadunidense, a insensatez desenvolvimentista e progressista seguiu vigorosa até os dias atuais.

Nessa confluência de acontecimentos geopolíticos, o mercado foi, silenciosamente, tornando-se o principal agente indutor do comportamento humano e, portanto, o novo (des)regulador da civilização, assumindo, gradualmente, um protagonismo antes exercido pelo Estado-nação (que, antes deste, foi exercido pelo Cristianismo). Suas promiscuidades, tais como o livre trânsito de capitais, a financeirização da economia global, a inserção asiática na lógica de mercado do Ocidente, exacerbaram cada vez mais o uso de combustíveis fósseis, os níveis de consumo, a especulação financeira, a acumulação de riquezas, as desigualdades regionais e a explosão demográfica descontrolada, principais vetores responsáveis pela intensificação da inconsequente e irresponsável degradação ambiental em escala planetária, redundando nos diversos distúrbios e anomalias sociopolíticos da contemporaneidade.

Com os flagelos da Segunda Guerra Mundial, seguida das experiências totalitárias em alguns países do Bloco do Leste e do progresso desmedido impulsionado pelo capitalismo globalizado, a humanidade inaugurou a sombria “fase damoclena” da História, como bem identificou o sociólogo francês Edgar Morin. Inauguramos uma nova fase histórica de elevadíssimos riscos planetários (e, até mesmo, existenciais), reconhecida pela própria comunidade científica, que passou a estabelecer um marco de término civilizatório simbolizado pelo Relógio do Juízo Final, o instrumento escatológico criado em 1947 pelo Bulletin of the Atomic Scientists da Universidade de Chicago, segundo o qual a humanidade está, neste ano de 2024, a apenas 90 segundos da meia-noite, ponto mais crítico registrado na sua longa série histórica (1947-2024).

Talvez seja mais razoável adotar como marcador temporal para a duração da nossa conflituosa civilização a longa prevalência da cultura patriarcal, inaugurada com as chamadas invasões kurgan, as sucessivas ondas de conquistas e expansões patrocinadas pelos povos pastores guerreiros indo-europeus vindos do leste, na Antiga Europa, ocorridas entre sete e seis mil anos atrás, sobre a qual abordei recentemente aqui no Outras Palavras. Evento que provavelmente explica a ruptura do padrão cultural até então predominante dos povos pré-patriarcais (povos de culturas matrísticas) que habitavam a Antiga Europa, possível origem da cultura de dominação patriarcal que iniciou e forjou o processo civilizador do Ocidente, segundo a visão sustentada pelos estudos e pesquisas da arqueóloga lituana Marija Gimbutas (1921-1924), entendimento também reforçado por nomes como o neurobiólogo chileno Humberto Maturana e outros pensadores.

Inclusive, o expansionismo do “capitalismo democrático” estadunidense, que redundou no fenômeno da globalização econômica e tecnológica ocorrida no final do século XX e início do século XXI, guarda similaridade com o expansionismo das sucessivas ondas invasoras kurgan (ondas migratórias dos povos kurgan mapeadas por Gimbutas: Primeira Onda, de 4300-4200 a.C.; Segunda Onda, de 3400-3200 a.C.; e Terceira Onda, de 3000-2800 a.C.), responsáveis pela desintegração do padrão pré-patriarcal vigente da Antiga Europa. Talvez essa similaridade seja um prenúncio de que um padrão cultural emergente esteja irrompendo para encerrar os seis milênios de condicionamento à cultura patriarcal do Ocidente.

O fato é que essa abordagem de que a humanidade está atualmente imersa numa policrise global tem levado renomados pensadores a refletir sobre como será o porvir, e questionar se há alguma saída desse catastrófico cenário de futuro que tem se revelado cada vez mais distópico, tendente a ganhar contornos de uma verdadeira crise existencial. Retornando, portanto, à pergunta formulada acima, pelo que se depreende das condições dadas no contexto global atual, é possível identificar, de imediato, dois prováveis desdobramentos civilizatórios para as próximas décadas, inequivocamente terminais. O primeiro seria o colapso socioambiental e o segundo seria esse mesmo colapso socioambiental antecipado por uma guerra nuclear global.

Há, no entanto, um terceiro desfecho, a priori improvável, ao qual me associo, que me parece mais adequado chamar de Governança Global Democrática Restauradora. Trata-se da aposta num padrão civilizatório emergente que poderá trazer algum alento para as presentes e futuras gerações. Cabe, então, um aprofundamento desses desdobramentos civilizatórios.

1) O mais provável, dado ser evidente por si mesmo: o colapso socioambiental

Há hoje um claro consenso científico acerca do acelerado e descontrolado processo de colapso socioambiental em andamento, contra o qual não há, em âmbito global, nenhuma política consistente de mitigação adotada, a despeito das muitas conferências internacionais realizadas desde Estocolmo, em 1972. Inclusive, existe hoje um coletivo francês, iniciado e mantido pelos pesquisadores Pablo Servigne e Raphaël Stevens, dedicado a um novo campo de estudo chamado colapsologia. Eles mantêm um portal de acesso aberto (https://collapsologie.fr/), com um vasto banco de dados científicos sobre o tema.

Porém, quem talvez melhor reuniu as evidências, científicas e geopolíticas, desse cenário terminal foi o pesquisador da Unicamp, Luiz Marques, por meio do seu livro-dossiê O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência (Editora Elefante, 2023). Segundo Marques, “os anos 2020 serão decisivos se quisermos evitar que as crises postas em marcha pelo sistema econômico global ultrapassem nossa capacidade de adaptação. As opções, agora, são entre um futuro pior, mas ainda reversível a longo prazo, e um futuro em estado terminal”.

Para os principais coletivos da atualidade que monitoram as mudanças climáticas, em especial o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), ambos ligados à ONU, o período entre 2030 e 2050 representa o intervalo limite de possibilidade de reversão do processo de colapso ambiental, após o qual poderá haver rupturas de consequências não conhecidas no metabolismo do ecossistema Terra, caso não haja um esforço global de redução das emissões de gases de efeito estufa, já iniciado no presente decênio (2021-2030). No entanto, até este ano de 2024, nenhuma proposta de transição energética consistente para sairmos da matriz termo-fóssil sequer foi pensada e articulada globalmente, quanto mais posta em prática.

Nesse quadro desalentador, ratificado por vários cientistas, nos deparamos não só com provas inequívocas acerca do acelerado processo de colapso climático, já em andamento, mas com inúmeras conclusões convergentes de cunho existencial, como a do cientista australiano Will Steffen (1947-2023), um dos fundadores do Conselho do Clima, grupo consultivo independente criado em 2011 pelo governo da Austrália: “Estamos agora numa bifurcação. Não teremos outra década para hesitar como fizemos na década passada.” Por isso, Luiz Marques tem frequentemente vaticinado com contundência a gravidade da situação climática: “Tenhamos a honestidade de dizê-lo sem rodeios: nossas opções são entre um futuro pior e um futuro terminal. Um futuro pior é agora inevitável, mas ações políticas imediatas para atenuar a piora redundarão em possibilidades crescentes de reversão de tendências, de atenuação dos impactos, de adaptação e, portanto, de sobrevivência.”

O fato é que a cada dia surgem novas evidências científicas para confirmar esse prognóstico terminal de Marques. Um desses dados mais recentes, por exemplo, está no artigo intitulado “Deforestation and world population sustainability: a quantitative analysis”, publicado em maio de 2020 na conceituada revista científica Nature, dos físicos Gerardo Aquino, do Alan Turing Institute, e Mauro Bologna, da Universidad de Tarapacá. Eles realizaram um estudo correlacionando a taxa atual de crescimento populacional com a taxa de desmatamento, a partir do qual observaram que “um colapso catastrófico da população humana devido ao consumo de recursos é o cenário mais provável da evolução dinâmica com base nos parâmetros atuais”. Nas palavras de Bologna e Aquino, “adotando um modelo combinado determinístico e estocástico, concluímos do ponto de vista estatístico que a probabilidade de nossa civilização sobreviver é inferior a 10% no cenário mais otimista”.

2) O menos provável, mas potencialmente realizável: o colapso socioambiental antecipado pela guerra nuclear

Trata-se da indescritível perspectiva de que o processo de colapso socioambiental em curso seja retroalimentado e hiperamplificado por uma conflagração nuclear global. Quem fez recentemente uma avaliação bem ampla e consistente acerca dessa assombrosa possibilidade foi o ativista e pacifista Ruben Bauer, um conhecedor em profundidade dos sintomas mórbidos de nossa época. Em uma série de textos publicado no Outras Palavras, Bauer recorre ao conceito de autopoiesis, cunhado pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, para explicar como a perda de identidade norte-americana, que, segundo ele, “é fundada na hegemonia sobre o planeta e na acumulação de riqueza dela decorrente”, cujos pilares são “o dólar como reserva universal de valor e o poderio militar inconteste” – em ruína frente ao avanço econômico-militar da aliança China-Rússia – pode ser o gatilho para uma conflagração nuclear total.

De fato, aprendemos com Maturana e Varela que, na dinâmica constitutiva dos seres vivos, a identidade se confunde com a própria vida. Eliminar a identidade representa uma sentença de morte. Assim, Bauer teme que a plutocracia norte-americana faça uso de sua “prerrogativa do first strike” – obviamente muito bem calculada para não “atingir o ponto de guerra nuclear mutuamente devastadora” – para assegurar a manutenção da sua identidade, isto é, da sua sobrevivência como nação hegemônica. Desfecho este também aventado pelo analista geopolítico e professor da UFRJ José Luís Fiori.

Penso, no entanto, que este desdobramento planetário terminal seria menos provável pelo fato de que o tecnomercado, que vem se firmando como principal vetor civilizatório desde que o ultraliberalismo irrompeu a partir dos anos 1970, tem cada vez mais o planeta nas mãos e, portanto, é quem tem um crescente poder de influência sobre o modo de operar do Estado-nação, que invariavelmente atuou na História sob a lógica clausewitziana de fazer política por meio da guerra. O “grande jogo” geopolítico é hoje decidido mais pelos imperativos do sistema-mundo capitalista globalizado do que pela soberania belicista do Estado-nação.

Esse novo Estado-corporação (expressão muito bem cunhada por Luiz Marques), ou Estado-empresa (como prefere a filósofa Marilena Chaui), não tem nenhum interesse nesse desenlace nuclear como bem disse (em entrevista à revista Rolling Stone, em janeiro de 2017) o renomado climatologista norte-americano da Universidade de Columbia, James Hansen, ao comparar o risco nuclear implicado na atual disputa geoeconômica EUA versus China com a inevitabilidade da catástrofe climática em curso: “Há muita discussão sobre a ascensão da China como potência militar. Bem, eles não vão bombardear seus clientes. A ameaça maior é a ameaça climática. É ela que pode destruir a civilização tal como a conhecemos” (citado por Luiz Marques, em O Decênio Decisivo, 2023). Assim como Hansen, creio que os mercadores americanos e europeus também não cogitam a possibilidade de perder seus clientes chineses, mesmo estes sendo hoje aliados incontestes de seus maiores desafetos no campo político, os russos e os iranianos.

Portanto, parece mais factível imaginar que as forças do mercado sobrepujarão a insensatez dos neocons straussianos que comandam o deep state (Estado profundo – um governo dentro de um governo) estadunidense, o que já deve estar interferindo no tratamento usual dos atuais epicentros do tabuleiro geopolítico. Se prevalecerem os interesses do mercado, o establishment estatal norte-americano provavelmente será convencido a continuar prestando apoio à Ucrânia e a Israel – países já condenados a temperaturas inumanas nos próximos anos em face do comprovado aumento de temperatura na Europa e no entorno do Mediterrâneo, que é bem superior a outras partes do planeta –, porém dentro de certos limites que não comprometam o funcionamento da economia global.

Assim, o povo de Israel descobrirá por si próprio que, para ter alguma sobrevida como nação, precisa se desfazer, rapidamente, do seu líder extremista bélico Benjamin Netanyahu, realizar a devida reparação do genocídio perpetrado contra o povo palestino da Faixa de Gaza e, sobretudo, criar as condições para uma coabitação com o mundo muçulmano. Quanto ao que restar da Ucrânia devastada pela guerra sem fim com a Rússia, a perspectiva mais provável é ela se tornar um “Estado falido disfuncional”, como prevê o professor norte-americano de ciência política John J. Mearsheime. O seu atual presidente Volodymyr Zelensky, ao ter abraçado o projeto hegemônico do Ocidente, condenou seu país a se tornar uma grande zona morta nos próximos anos ou décadas, demarcando o limite da expansão insana da OTAN.

O mesmo desfecho pró-mercado deve prevalecer também para a cobiçada Taiwan, possível candidata à próxima bola da vez do “grande jogo” geopolítico, que provavelmente ficará sob as rédeas da China, dada a proximidade territorial e os vínculos históricos, ainda que mantendo algum nível de independência e soberania, o que forçaria as multinacionais pró-Ocidente como a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC), uma das corporações mais valiosas do mundo, a transferirem seus segredos comerciais de produção de semicondutores para outras terras.

A bem da manutenção do capitalismo, a dissuasão negocial pela via do “deixa-disso” tem mais chances de prevalecer, ante a insensatez da destruição nuclear mútua assegurada de uma terceira e última guerra mundial, inclusive para dar alguma sobrevida à própria ideia de Estado, que está num irrefreável processo de sublimação patrocinado pela idolatria do deus mercado. Só assim o nosso abalado ecossistema Terra, do qual a humanidade é parte interdependente para sobreviver, poderá continuar sua depuração via catástrofes ambientais e, com isso, ganhar tempo (antes de alcançar o limiar crítico que inviabilizaria o nicho ecológico humano) para ver a autodestruição dos dois Leviatãs que nos arrastaram para a atual agonia planetária. Primeiro, o Estado-nação (o Leviatã de Hobbes), enquanto entidade hobbesiana detentora do poder soberano sobre os homens e sobre os povos periféricos, que já está em acelerado curso de desconstituição desde que o neoliberalismo entrou em cena nos anos 1970. Depois, o seu substituto, o Tecnomercado (o Leviatã de Karl Marx), representado pelo capitalismo de vigilância, que ainda deverá reinar absoluto pelas próximas duas ou três décadas, para que, só então, possa ocorrer (se o colapso climático, turbinado ou não por uma catástrofe nuclear, não chegar a termo) uma ruptura civilizatória, por volta de 2060.

Esse seria o tempo-limite para não ultrapassarmos os 2ºC acima dos níveis pré-industriais, patamar a partir do qual a ameça existencial está posta, como adverte o climatologista britânico Sir Brian Hosking, Diretor Fundador do Grantham Institute for Climate Change and the Environment do Imperial College de Londres: “Não temos evidência de que um aquecimento de 1,9ºC é algo com que podemos conviver facilmente, e 2,1ºC é um desastre.” (citado por Luiz Marques, em O Decênio Decisivo, 2023).

Assim, podemos ter a esperança na emergência de um desdobramento impensável, uma mutação civilizatória capaz de superar a lógica da cultura patriarcal milenar do Ocidente, que resgate a ancestralidade das culturas pré-patriarcais e as condições de estabilidade e habitabilidade do nosso planeta.

3) O improvável, a aposta no impossível possível: a emergência de uma ruptura civilizacional

Trata-se do imponderável campo da esperança, no qual se vislumbra a reversão de seis milênios de uma agonia patriarcal que forjou o Homo historicus e o seu longo e contraditório processo civilizador do Ocidente, refletido numa ambígua e conflituosa história de conquistas, progressos, domínios, guerras, destruições, genocídios e devastação dos recursos naturais, que, se mantida, condenará a civilização ao colapso socioambiental. Aqui se situam pensadores que articulam uma saída para além da visão gramsciana do perene conflito entre o velho e o novo, em que precisaríamos, como dizia o teólogo e filósofo espanhol Raimon Panikkar, “ver, por um lado, se o projeto humano realizado durante seis milênios pelo Homo historicus é o único possível e, por outro lado, ver se não seria necessário, hoje, fazer outra coisa”.

Nessa impensável perspectiva, há uma brecha de possibilidade de que uma insondável ruptura civilizatória talvez já tenha sido iniciada. Tal possibilidade, totalmente inconcebível no atual cenário de policrise global, anima um seletíssimo grupo de pensadores que lidam com a condição humana em profundidade, como Edgar Morin, Humberto Maturana (1928-1921), John Gray, Jacques Attali, Zygmunt Bauman (1925-1917), Byung-Chul Han, dentre outros. Trata-se da “esperança trágica”, como propõe o filósofo e crítico literário britânico Terry Eagleton.

O esforço de restauração civilizatória pela via do multilateralismo, no qual os países tentam formar alianças e pactos de cooperação para tratar questões de interesse comum, é o campo de atuação em que normalmente se vislumbra a possibilidade de superação dos impasses contemporâneos. No entanto, a irrelevância dos organismos supranacionais como a ONU, o mais abrangente órgão intergovernamental do planeta, que foi criado para tentar unir as nações e exercer protagonismo geopolítico de modo a evitar mais regressões civilizatórias como as ocorridas na primeira metade do século XX, é talvez o principal sintoma da morbidez dos tempos atuais.

Próxima de completar seus 80 anos de existência, a ONU parece destinada a repetir o fracasso da sua antecessora, a Liga das Nações, criada em 1919, que foi incapaz de conter as conflagrações que se sucederam à Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A razão maior dessa irrelevância parece residir na anomalia jurídica da soberania nacional, herança da ordem vestfaliana. Quem bem identificou essa disfuncionalidade do arcabouço jurídico internacional foi Luiz Marques, ao entender que “a soberania nacional deve cessar onde houver ameaça ao interesse comum. O Estado-nação é uma estrutura disfuncional diante de ameaças ambientais de natureza global.” Por isso, “se quiser sobreviver, a civilização humana, em suas mais diversas acepções, precisa substituir o axioma da soberania nacional absoluta por um novo princípio: o da soberania nacional relativa.”

Para tanto, a ONU precisaria fazer grandes esforços de compreensão civilizatória para se reinventar e escapar da dominância Ocidental. Pelo menos ela vem, aos poucos, incorporando uma ideia-chave para a superação do abismo civilizatório que se avizinha, que é a ideia de reforçar seu papel de instância de Governança Global, conceito sobre o qual aprofundaremos mais adiante.

A ONU ainda tem uma dependência cognitiva muito grande da dinâmica econômica e progressista do Ocidente. Isso pode ser observado no recente lançamento do Pacto pelo Futuro, que inclui o Pacto Digital Global e a Declaração sobre as Gerações Futuras, ratificado por ocasião da Cúpula pelo Futuro, ocorrida em Nova Iorque, de 20 a 23 de setembro deste ano, evento que antecedeu a 79ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. E ainda houve, logo após a realização da Assembleia Geral, no dia 25, a aprovação do Chamado à Ação sobre a Reforma da Governança Global, em que os ministros de Relações Exteriores dos países do G20 se reuniram pela primeira vez na história, numa iniciativa liderada pelo Brasil. Essa reforma tem a intenção de revisar o funcionamento das principais organizações internacionais e traz propostas como fortalecimento do papel da Assembleia Geral, aumento do número de membros do Conselho de Segurança e uma Comissão para Consolidação da Paz mais estratégica e eficaz.

Os documentos aprovados nesses dois eventos fazem menção à necessidade de um fortalecimento da Governança Global, porém limitam-se a oferecer 56 ações e compromissos de reforma das instituições internacionais, que se constituem em retóricas incapazes de frear a lógica expansiva, excludente e predatória do mercado. Não fazem nenhuma menção à necessidade de a ONU assumir uma posição de protagonismo global acima dos interesses do laissez-faire neoliberal e dos interesses corporativos dos Estados-nações, condição imprescindível à reversão do acelerado processo de colapso civilizatório em curso. Infelizmente, ainda deveremos assistir, por um bom tempo, a uma ONU inócua e refém da hegemonia do mercado.

Conforme dito antes, paradoxalmente, o mercado, embora seja o principal agente indutor das mudanças climáticas, é que poderá evitar a guerra nuclear total, que, se desencadeada, aceleraria ainda mais o processo de colapso socioambiental em andamento. A História nos ensina que um conflito entre potências escala para uma guerra total quando uma dessas potências se vê ameaçada existencialmente, seja esta ameça imediata ou mesmo a longo prazo, que é quando uma potência emergente ameaça substituir a potência hegemônica. Trata-se da chamada armadilha de Tucídides, que tem sido evocada em face das crescentes tensões entre a decadência estadunidense e a prosperidade chinesa. Porém, o mercado, ao ser alçado à condição de novo regulador civilizatório, assumindo o lugar do Estado-nação, acabará por subverter a lógica tucidideana. Revela-se, desse modo, como o salvador da humanidade no curto prazo e, ao mesmo tempo, o algoz no médio e longo prazos.

Se o Estado-nação tivesse o mesmo vigor hobbesiano que teve até a primeira metade do século XX, os atuais conflitos, entre OTAN e Rússia (iniciado desde pelo menos 2014) e entre Israel e o mundo muçulmano (desde 1982), provavelmente já teriam escalado para uma conflagração nuclear mundial. Haja vista que, por muito menos, chegou-se muito perto desse desfecho terminal durante a Guerra Fria (1947-1991), especialmente quando houve a crise dos mísseis cubanos em 1962 e o exercício de lançamento nuclear Able Archer da OTAN em 1983. Alguns analistas militares apontam que esse segundo episódio pode ter sido o mais perto que a humanidade chegou da sua autodestruição, quando a OTAN colocou mísseis nucleares Pershing II na Europa provocando o Politburo soviético a mobilizar suas forças nucleares na Alemanha Oriental e na Polônia. Nessa época, em que o ímpeto belicista do Estado-nação era bem superior ao atual, talvez o nível de risco de guerra nuclear total fosse muito mais elevado quanto no presente cenário de disputa econômica e militar entre EUA versus China-Rússia e, no entanto, foi superado (vale ainda lembrar que em 1986 havia 70,3 mil ogivas ativas que foram reduzidas para 3.750 em 2019).

O fato é que o risco de uma deflagração nuclear global, seja alimentada pela insensatez imperialista dos neocons estadunidenses, seja pelo instinto de sobrevivência da Rússia de Putin ante a ameaça da OTAN, ou ainda pela pujante e incontida ascensão econômico-militar da China do Partido Comunista Chinês (PCCh), é cada vez mais mitigado pelos imperativos do mercado, que, contraditoriamente, foi se tornando o principal (des)regulador civilizatório, após a agonia das duas Guerras Mundiais, o que poderá representar o fiel da balança que decidirá a sobrevivência da nossa espécie, ao fornecer o tempo necessário à imprescindível emergência de uma ruptura civilizatória, diante da exaustão dos domínios patriarcais.

O modo de viver patriarcal milenar do Ocidente esbarrou nos seus limites lógicos

A longa agonia do projeto civilizatório do Ocidente, provavelmente iniciada com as ondas invasoras kurgan seis mil anos atrás, esbarrou, agora na contemporaneidade, em dois impasses lógicos: armas nucleares que não podem mais ser usadas para resolver os perenes conflitos por hegemonia mundial e um colossal crescimento demoeconômico global que não tem mais lastro sociofísico para sustentá-lo. E o que torna esses impasses mais emblemáticos é que nossos atores políticos, e até uma considerável parcela da inteligência científica, parecem não ter essa compreensão e muito menos saber conceber outro modo de viver que não seja o da guerra combinada com o progresso tecno-econômico, dado o seu longo condicionamento à dinâmica civilizatória herdada dos ideais greco-judaicos aflorados por volta de 1.300 a.C., nas cercanias do Mediterrâneo.

O drama da política contemporânea, conforme adverte o filósofo político e escritor britânico John Nicholas Gray na epígrafe deste texto, está refletido na ausência de um pensamento político que seja capaz de compreender a especificidade do atual impasse histórico. A política continua a viver de autoengano, condicionada às ideias de conquista da natureza, de progresso e de homogeneização da civilização, agora sob o influxo do transumanismo que emanou do Vale do Silício nos anos 1980. Sob a ilusão das narrativas retóricas como “desenvolvimento sustentável”, “descarbonização”, “transição energética” e “capitalismo verde”, a política atual não tem uma efetividade à altura do drama climático e geopolítico que vivemos. O que há é uma política desenvolvimentista a serviço do mercado, sem correspondência no campo da ética, enquanto a humanidade desliza rapidamente para sua autodestruição. A política não consegue perceber, como sugere o sociólogo e economista estadunidense Jeremy Rifkin, que a situação global “não se trata mais de progresso, mas de resiliência e adaptabilidade”.

Portanto, não é incomum hoje ver pessimismo e desesperança até mesmo entre renomados pensadores contemporâneos como é o caso do filósofo, escritor e ativista italiano Franco Berardi (Bifo), que em reflexão recente afirmou que “nenhuma política pode induzir os cidadãos do mundo contemporâneo a renunciar ao dom do fogo ou, pelo menos, a limitá-lo de forma compatível com a salvaguarda de um clima habitável. Não há, pois, nenhuma possibilidade ‘política’ de deter a autodestruição.” Por isso, diante de um mundo que opera à beira do colapso ambiental e geopolítico, vale a recomendação do experiente jornalista e escritor estadunidense Robert Kaplan, de que “nós devemos nos empenhar para pensar tragicamente a fim de evitar a tragédia.”

É nessa perspectiva de evitar a tragédia anuncia que Luiz Marques, ao tratar no seu livro O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência (Editora Elefante, 2023) do processo de colapso ambiental em curso, faz o contundente alerta:

Mudar nossa trajetória de colapso requer não apenas parar de destruir a natureza agora, mas nos empenhar em reconstruir, na medida do possível, o que foi destruído desde ao menos a década de 1950. Se os últimos setenta anos foram os anos da ‘Grande Aceleração’, ou seja, da ‘Grande Destruição’, os próximos decênios terão de ser os da ‘Grande Restauração’. É preciso apostar que isso ainda é possível.”

Para que essa “Grande Restauração” aconteça, Marques entende que o ponto crucial do impasse climático é que “tudo depende agora da política”. De fato, para os poucos que se dedicam a buscar soluções para as mudanças climáticas parece haver um consenso de que a política precisa suplantar o racionalismo econômico para que a humanidade possa escapar do abismo. Penso, no entanto, que se considerarmos que o problema de fundo da civilização reside no seu condicionamento milenar à cultura patriarcal do Ocidente, o atual impasse civilizatório é, antes de ser uma questão política, um bloqueio cognitivo cultural. Portanto, trata-se de uma questão de fundo de natureza antropológica. A política define sim como vivemos, mas há sempre uma visão de mundo que a condiciona, e a política contemporânea é culturalmente condicionada pela visão tecno-econômica de mundo, sejam os atores políticos progressistas, conservadores ou extremistas. Para o modo de viver Ocidental predominante, não há outro modo de viver fora do realismo capitalista.

Isso tanto é verdade – e mais razoável para explicar a inércia política – que o fato do establishment político mundial ter ficado paralisado desde o final dos anos 1960, quando surgiram os primeiros alertas científicos (The Population Bomb, 1968; Conferência de Estocolmo, 1972; Os Limites do Crescimento, 1972) sobre a inviabilidade climática para sustentar nossa civilização do progresso e da abundância material, comprova que nosso problema é cultural e não fundamentalmente uma questão política. Portanto, uma ruptura civilizacional requer uma restauração no âmbito cultural que possa reverter a prevalência da cultura de dominação patriarcal milenar que forjou todo o percurso civilizatório do Ocidente. Esta restauração cultural é o principal pressuposto para que a humanidade consiga reverter seu modo de viver, ideia sobre a qual aprofundaremos em um próximo texto aqui em Outras Palavras.

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