Aftersun: o amor nas ambivalências da memória

Filme de Charlotte Wells revisita, nas incertezas das recordações de uma viagem de férias, a difícil conexão entre pai e filha. Em intrincada elaboração, a câmera busca os fragmentos do vivido – latentes, mas que escapolem fora do plano

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Não é de hoje que costumamos dar à infância lugar privilegiado na análise de nossas vidas. Ainda que memórias cotidianas possam ter e tenham efeitos concretos no modo como agimos, as experiências infantis parecem resguardar algo da gramática fundamental pela qual aprendemos a desejar e, por conseguinte, falarmos sobre nós. Muito mais vezes do que gostamos de imaginar, no entanto, essa gramática funciona como uma prisão existencial: ela refreia nossa capacidade de elaboração diante do que outrora não tivemos capacidade de expressar em palavras, de imagens desconexas que não se teceram enquanto narrativa.

O longa de estreia de Charlotte Wells pode ser entendido como uma visita a – senão um acerto de contas com – sua própria infância. Ao elaborar por meio da ficção uma viagem de férias com seu pai, a diretora, cuja presença se corporifica na trama através da pequena Sophie, reencontra os gestos de uma vida que começa a ensaiar voz própria. Dentre os primeiros olhares e gestos curiosos, ainda que desencontrados, com um grupo de turistas mais velhos e que lhe chamam a atenção, até as suas tentativas de documentar a viagem com uma câmera de vídeo, Sophie busca sobretudo se conectar com o pai.

O cinema parece ter sido desde muito cedo seu principal meio para tal. Não como se as lentes lhe permitissem recordar aquilo que não foi capaz de o fazer por meio dos olhos, e sim como a maneira de deixá-los demorar sobre a realidade até que nela reencontrem a capacidade do encanto. Boa parte dos enquadramentos nas cenas parecem confirmar essa necessidade, que à época parecia tão imediata quanto hoje se revolve numa busca angustiada pelos fragmentos de memória que escapuliram pelos cantos do take.

A câmera captura gestos aparentemente cotidianos – as danças embaraçosas dos pais, os primeiros beijos ainda descoordenados, o esboço de um olhar não correspondido, a inadequação e o estranhamento de não saber nadar quando já se sonha com mergulhos profundos. Ela os captura e parece devolvê-los com a dignidade do inusitado, assim como a infância é sempre o tempo onde os gestos banais ainda podem parecer tão primeiros e espantosos.

Mas há sempre algo que escapa à suposta onipresença da câmera. Assim como quando pergunta a Calum, seu pai, sobre o que ele teria desejado fazer caso novamente tivesse 11 anos, ou por que os adultos aprendem a falar “eu te amo” quando já não mais sabem outra coisa para falar em troca, Sophie se depara com os escombros de uma memória sempre fadada a ser incompleta.

Pois subjaz um mistério sob os momentos que nos serão decisivos. Quando Freud pensou a relação entre nossa vida inconsciente e sua elaboração simbólica, ainda sob o signo da transição do excesso de afeto à adesão semântica com a qual adquiriríamos agência sobre nossos traumas, ele chamou a esse funcionamento específico de significação de a posteriori. Era questão de lembrar como lá onde mais nos pensávamos donos de nós mesmos, lá onde a história já teria sido escrita em dados irretocáveis e objetivamente anexados, pairava uma inconstância fundamental. A memória está sempre à mercê de sua significação tardia – e das conexões que traçamos para através delas narrarmos nossas histórias, sempre por se atualizar.

Esse parece ser o caso quando somos convidados à sua vida no presente. Mostrada em duas sucessões não-convergentes de cortes, a Sophie de 31 anos – mesma idade que tinha seu pai quando da viagem – parece buscá-lo na imensidão escura de seus próprios trechos de recordações. Entre os clarões e trechos que consegue alcançar, são os gestos de seu pai que lhe permitem identificá-lo em meio ao anonimato superpovoado da pista de dança. É da dança que outrora lhe envergonhava em seu pai que Sophie vai ao encontro; e como quem se desespera com o infamiliar que rebole em lembranças, ao mesmo tempo num abraço desesperado e na queda com a qual seu pai novamente lhe escapa, ela se perde no silêncio do desencontro.

Pois talvez seja o caso de que nossas memórias jamais se conciliem numa linearidade. Se Sophie não consegue fazer convergir abraço e queda é porque ambos expressam aspectos de seu pai que jamais poderia conhecer por completo. Não há totalidade na memória – e como mais tarde ela parece perceber, nem mesmo nossa infância parece imune a se ver despossuída de qualquer certificação.

Calum, por sua vez, tampouco parece saber lidar com essa incerteza. Embora Wells decida – acertadamente – não nos contar muito de seu passado, sabemos que ele se divorciou da mãe de Sophie e já não mora mais em sua cidade-natal, Edimburgo. Apesar dos esforços e da inegável doçura com a qual a trata, o personagem parece incapaz de se sintonizar com sua filha e os impasses próprios a idade. Como se evidencia quando o vemos aos prantos, Calum parece chorar sobretudo uma infância duplamente não-vivida. Primeiro, a sua própria, como parece ser o caso a partir das pequenas pistas que o filme nos fornece. Mais decisivamente, a de sua filha, cuja curiosidade pela vida do pai parece sempre esbarrar na dificuldade deste em permitir-lhe habitar suas fragilidades.

Ainda assim, resta a Wells o silêncio de quem amou sem precisar desvendar o todo. Como o a posteriori de que falava Freud, tal elaboração permite-nos não uma posse da totalidade, mas certa abertura para saltar na construção contínua de uma subjetividade que transborde nossos primeiros gestos de amor. O amor ocorre exatamente nesse deslize, na discordância entre as fatalidades que julgamos impossíveis de remediar e a força de elaboração do que jamais poderemos desvendar por inteiro. Ele resta como o vínculo fundamental que nos enlaça aos que escapam de serem totalmente nossos, mas que jamais deixaremos de procurar em nossas infâncias.

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