Cinema: Sissi, a prisioneira

Novo filme revisita a vida da imperatriz da Áustria no século XIX. O espartilho é sua síntese: vaidade narcisista e convenções sociais estrangulam suas pulsões íntimas – e, aprisionada em seu tempo, a qualquer hora tudo pode estourar

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

É impressionante a fixação que os austríacos têm pela figura de Elisabeth da Baviera, imperatriz da Áustria, também conhecida como Sissi. Nos últimos três anos, nada menos que cinco produções, entre curtas, longas e uma série da Netflix, trazem a personagem como protagonista. Uma delas, talvez a mais interessante, estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 12 de janeiro: Corsage, de Marie Kreutzer.

A ação se passa toda em 1877, quando a imperatriz (a ótima Vicky Krieps) completou 40 anos. O título do filme em português poderia ser Espartilho, peça do vestuário que se tornou central na vida da personagem, obcecada pela manutenção de sua silhueta. Não por acaso, numa das primeiras cenas, duas amas se revezam na tentativa de apertar ao máximo a peça que sufoca o abdome e a cintura de sua majestade.

Narcisismo e papel social

Na cena seguinte, um funcionário explica em detalhes qual deve ser o comportamento da imperatriz em determinada solenidade. À constrição autoimposta do espartilho somam-se as limitações externas, as regras sociais e morais que cerceiam os movimentos de uma mulher em sua posição. É no jogo entre a vaidade narcisista de Sissi e seu papel social no contexto do império austro-húngaro que a narrativa se desenvolve.

Que não se espere fidelidade histórica desse relato. As liberdades tomadas pela diretora Marie Kreutzer são enormes, e ela não faz questão de escondê-las, espalhando anacronismos ostensivos ao longo do filme: um telefone, um trator motorizado, mops e baldes de plástico, barras de aço antipânico, etc. – sem falar da canção “As tears go by”, dos Rolling Stones, cantada em cena.

Há subversões significativas de dados biográficos, culminando na cena final, em total desacordo com os fatos históricos. Algumas dessas liberdades parecem gratuitas, outras suscitam situações interessantes, como por exemplo o encontro (que, segundo consta, nunca existiu) entre Sissi e o francês Louis Le Prince, tido como pioneiro do cinema. Ele apresenta seu invento à imperatriz e realiza graciosos filmetes protagonizados por ela. Vale para sugerir uma mulher curiosa, à frente de seu tempo.

Diálogo com outros filmes

É irresistível traçar um paralelo entre Corsage e Maria Antonieta (2006), a versão irreverente e quase pop de Sofia Coppola para a vida da rainha guilhotinada na Revolução Francesa. A diretora Marie Kreutzer, contudo, rechaça a aproximação, chegando a dizer que não gosta do filme da colega norte-americana.

Outro cotejo inevitável é com a trilogia Sissi, Sissi a imperatriz e Sissi e seu destino, realizada entre 1955 e 1957 por Ernst Marischka, em que a personagem era vivida por uma Romy Schneider adolescente. Corsage pode ser visto como um brusco contraponto àquela visão um tanto edulcorada da juventude da personagem. O contraste não é apenas entre a menina Sissi e a imperatriz madura, mas também entre concepções de mundo, sobretudo do papel da mulher na sociedade.

É possível lembrar também Ludwig: a paixão de um rei (1973), de Visconti, que retratava com requinte barroco a figura delirante de Ludwig II da Baviera, primo de Sissi. Significativamente, Visconti escalou em seu filme a própria Romy Schneider para o papel da imperatriz que ela encarnara duas décadas antes.

Em Corsage, Ludwig (Manuel Rubey) é o personagem mais próximo de Sissi. Eles mantêm uma relação de cumplicidade, como dois excêntricos que não cabem no mundo ritualizado das cortes da época. Na primeira cena entre os dois, a imperatriz ensina ao primo como simular um desmaio em situações desagradáveis ou entediantes.

Aparência e intimidade

A relação entre a aparência externa e as pulsões íntimas está no centro do filme. A protagonista expressa sua inquietação em viagens, cavalgadas, flertes, aulas de esgrima, surtos de vaidade obsessiva e, por fim, nas drogas. Para a diretora, parece importar pouco o quanto disso corresponde à biografia real da imperatriz. Ela a retrata como uma mulher aprisionada em seu tempo, como um corpo constrito por um espartilho, mas que ameaça estourar.

Uma figura histórica como Elisabeth da Baviera se transforma, com o passar do tempo, numa tela em branco, onde cada época desenha praticamente o que quer. Como dizia um personagem de filme de John Ford: se a lenda é mais interessante que os fatos, imprima-se a lenda.

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