Molly Bloom: A cena prismática do desejo

Em cartaz, peça com Bete Coelho dá corpo e voz à enigmática personagem de James Joyce, que há um século escandalizou o mundo ao desconstruir o casamento monogâmico — e escancarar os caminhos transgressores de sua sexualidade

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Um teatro de câmera – ou seria, à la Sade, de alcova? – abre-se a uma das personagens mais apaixonantes e enigmáticas do romance mundial. É curioso dizer isso, mas embora o mote central do espetáculo Molly Bloom – com Bete Coelho e Roberto Audio e direção da própria atriz junto com Daniela Thomas (codireção de Gabriel Fernandes) – seja o desvelamento da intimidade da personagem-título por sua própria voz, quanto mais ela se expõe mais parece impenetrável, quando mais se entrega mais se aprofunda e escapa.

Há exatos 101 anos (2/2/22), quando o romance Ulysses foi lançado, a deflagração da sexualidade libertária de Molly foi percebida como pura obscenidade, mas agora, trazida ao centro da cena, pode ter chegado o tempo de curtir o texto de James Joyce em todo o seu frescor. A começar pela impublicável intimidade de uma mulher capaz de percorrer todos os caminhos do desejo e do sexo tal como ela os vive, sente e pensa. Mas também a intimidade de um casal que, apesar de tudo, se ama… se deseja e, mais difícil, se conhece. Complicado é definir esse conhecer, pois cada contato – de pele, de alma, de espírito – aprofunda o abismo do desconhecido, e o saber do outro acaba senso apenas um teatro de sensações, sentimentos e pensamentos que se desenrola continuamente num texto cada vez mais rico… e inabarcável!

Bete Coelho deu à personagem um corpo, e sobretudo uma voz, que a abstrai de toda superficialidade. A voz assenta no grave, em um registro que chamaria de trágico se o adjetivo não fosse em si inapropriado, e as modulações que encontra por ali em nada se confundem com a fala natural. Se Molly é, no romance, também uma certa buliçosidade coquette, Bete, ao converter seu monólogo interior em um monólogo cênico, transformou-a em uma personagem sem idade, e o que afasta seu discurso da solução fácil que seria seduzir a plateia. A fala, releve-se, é central: atriz e ator fazem da enunciação uma arte impecável, dizendo um texto complexo e longo sem deixar nem uma palavra para trás.

O texto, por sua vez, é composto por lapidação a partir do Ulysses, em tradução de Caetano Galindo (Cia. das Letras & Penguin), e consiste basicamente de recortes, costurados em um fluxo contínuo, do famoso monólogo de Molly, o último dos dezoito capítulos do romance. A esposa de Leopold Bloom aparece no quarto capítulo (o “segundo começo”) de Ulysses, e passa todo o romance a atormentar a fantasia do marido enquanto ele vive sua odisseia pelas ruas de Dublin, para reaparecer no último capítulo, conhecido como “Penélope”, e inverter a perspectiva de muito do que imaginávamos saber após centenas de páginas. A este texto, acrescenta-se na parte inicial da peça fragmentos selecionados do penúltimo capítulo, enunciados por Leopold.

Os dois monólogos – um dele e outro dela, incomunicáveis e íntimos entre si – acontecem num teatro sem paredes, já que o fundo da sala é um enorme espelho que expõe a frente e o verso da cena, e há câmeras que, em alguns momentos, capturam closes e os projetam sobre telas em várias camadas de transparência. O cenário é essencialmente uma cama cuja cabeceira gradeada está voltada à plateia, como um impactante modo de derrubar a “quarta parede” e, ao mesmo tempo, ampliar ad infinitum o “buraco da fechadura”, não sem aludir a uma prisão ou moldura quando os personagens se agarram às barras e se postam entre elas. Tudo se organiza nesse desvelar desdobrando, trazendo à simultaneidade os vários modos de ver. Neste sentido, a cena é cubista, não por qualquer clichê geométrico, mas pelo processo de multiplicar os pontos de vista e analisar o que se mostra igualando hierarquicamente suas perspectivas.

Talvez seja então no monólogo de Leopold/Poldy, falado por Roberto no início, que se encontre a piscadela de olho que nos deixa atentos ao corpo principal, a fala de Molly. Poldy enuncia fragmentos do texto do penúltimo capítulo do Ulysses, todo ele construído em perguntas e respostas, como se alguém inquirisse a cena e obtivesse respostas que descrevem analiticamente o que está em jogo. Na sua fatura cênica, introduz um inesperado tempero brechtiano, já que o ator se distancia do personagem que representa e partilha com o público perguntas e respostas que analisam suas próprias implicações.

Mas, além da (auto)análise, a multiplicação de perspectivas já aparece nessa fala. É com esse tom que o espetáculo se abre com a longa tirada em que Poldy compara a mulher à lua, o que poderia ensejar alguma patacoada romântica, mas não: a fala se desdobra e redobra, de um modo tal que é uma leitura contraditória, multifacetada e poliperspectivista que se desconstrói diante de nós.

A peça estreou no ano passado, no centenário do Ulysses, e permanecerá em temporada em São Paulo até 26 de março de 2023.


Ficha Técnica

Autor: James Joyce
Tradução: Caetano W. Galindo
Direção: Daniela Thomas e Bete Coelho
Codireção: Gabriel Fernandes
Atriz: Bete Coelho
Ator: Roberto Audio
Direção de Vídeo: Gabriel Fernandes
Consultoria Dramatúrgica: Caetano W. Galindo
Cenário: Daniela Thomas e Felipe Tassara
Produção de Cenografia: Mauro Amorim
Assistente de Direção: Lindsay Castro Lima
Desenho de Luz: Beto Bruel
Assistente de Luz: Sarah Salgado
Figurino: Bete Coelho e Daniela Thomas
Assistente de Figurino: Alice Tassara
Diretor Técnico: Rodrigo Gava
Diretor de Palco: Domingos Varela
Assistente de Palco: João Carvalho
Diretor de Cena: Murillo Carraro
Diretora de Arte: Alice Tassara
Assistente de Arte: Murillo Carraro
Camareiro: João Carvalho
Canção do Amor tocada por Caetano W. Galindo
Operador de Som: Rodrigo Gava
Operadora de Luz: Sarah Salgado
Serralheria: Mauricio Zati / Aço Studio Arquitetos
Diretor de Comunicação: Maurício Magalhães
Programação Visual: Celso Longo / CLDT
Fotos: Jennifer Glass
Assessoria Jurídica: Olivieri Associados
Dramaturgista da Cia.BR116: Marcos Renaux
Local de Ensaio: CASAVACA
Direção de Produção: Lindsay Castro Lima e Mariana Mantovani
Gerente técnico Teatro Unimed: Reynold Itiki
Assessoria jurídica Teatro Unimed: Carolina Simão
Comunicação Teatro Unimed: Dayan Machado
Assessoria de Imprensa Teatro Unimed: Fernando Sant’ Ana
Realização: Cia.BR116

Serviço

Teatro Unimed

Ed. Santos Augusta, Al. Santos, 2159, Jardins, São Paulo
Estreia: sexta-feira, 27 de janeiro de 2022, às 20h
Curta temporada: de 27 de janeiro a 26 de março de 2023 (não haverá espetáculo de 17 a 19 de fevereiro, Carnaval)
Horários: sextas e sábados, às 20h. Domingos, às 18h
Valores: Inteira – R$ 140,00 (plateia), R$ 100,00 (balcão). Meia-entrada – R$ 70,00 (plateia) e R$ 50,00 (balcão).
Clientes Unimed têm 50% de desconto com apresentação da carteirinha. Descontos não cumulativos.
Horários da Bilheteria: Sexta e sábado, das 12h30 às 20h30. Domingos, das 10h30 às 18h30.
Duração: 75 minutos
Classificação: 14 anos

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