Cinema: As entranhas da terra

Il buco reconstitui a expedição de espeleólogos a uma das cavidades mais profundas da Europa, num vilarejo italiano. Em três dimensões peculiares (a humana, a animal e a mineral) o filme revela seu principal protagonista: o tempo

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

Existem filmes que não se limitam a contar uma história, mas exploram de modo original as relações entre tempo e espaço, atiçando e ampliando a nossa percepção. É o caso do belo e surpreendente Il buco, de Michelangelo Frammartino, disponível de graça no Sesc Digital.

O filme, que ganhou o prêmio especial do júri em Veneza, reconstitui a expedição de espeleólogos a uma caverna (o buraco do título) nos confins da Calábria. A cavidade é uma das mais fundas da Europa, com quase 700 metros de profundidade.

Norte e sul, alto e baixo

O ano é 1961, e em Milão, no norte rico da Itália, em pleno boom econômico, constrói-se o edifício mais alto do continente até então. Esse contraste espacial, entre o alto e o baixo, o aéreo e o subterrâneo, é entrelaçado organicamente no filme a uma disparidade de tempo, ou melhor, de tempos.

As primeiras imagens que vemos são tomadas a partir do buraco. De início está tudo escuro e aos poucos, como num amanhecer, a luz revela o céu, as nuvens e as paredes da caverna. Uma vaca se aproxima e sua cabeça assoma no espaço, contra o céu.

Em seguida, uma reportagem em preto e branco fala sobre o arranha-céu milanês. O quadro se amplia e estamos num vilarejo calabrês em que a reportagem é exibida num televisor precário para o povo reunido na praça da igreja. É como se aquela aldeia parada na Idade Média fosse invadida abruptamente pela cultura urbano-industrial do século 20. Para os aldeões, porém, é uma imagem distante, de sonho, quase como se fosse um filme sobre a conquista da lua.

Tempos justapostos

É nesse contexto que chegam à localidade os jovens espeleólogos vindos do norte, para tentar o feito inédito de explorar e mapear integralmente a tal caverna. Quando eles começam seu trabalho, entra no filme (ou antes, volta a ele) um terceiro tempo, silencioso e profundo: o tempo geológico, mineral.

Reconstituindo o movimento do filme: primeiro veio a terra; em seguida, os animais; e só depois, o homem – que retorna às entranhas da terra como quem viaja ao princípio de tudo.

Com um estilo documental, lacônico e lacunar, Il buco dispõe essas três camadas justapostas de tempo de modo gracioso e envolvente. Do alto de uma colina, um velho camponês e seu burrico observam de longe a chegada dos forasteiros e a montagem de seu acampamento na planície, ao longe, onde as vacas pastam, indiferentes.

Há, portanto, simultaneamente, a história dos espeleólogos; a história do pastor e dos camponeses da região; e a história do planeta, contada nas camadas da caverna profunda. Tudo isso observado pelos animais: burro, bois, cachorros, pássaros.

Poucos são os momentos de interação ou intersecção entre esses mundos: o médico local que utiliza a lanterna de capacete dos espeleólogos para examinar a garganta dos meninos da aldeia, a vaca que introduz a cabeça na barraca de duas jovens exploradoras, os bois que mastigam os desenhos feitos por um dos espeleólogos. No mais, são universos paralelos.

É com grande argúcia e delicadeza que o filme observa essas diferentes realidades, ou diferentes camadas da realidade. Se as descidas ao fundo da caverna tomam boa parte da narrativa, não se deixa de lado o destino do velho camponês (Nicola Lanza), retratado com uma sensibilidade digna de um Ermanno Olmi. Todos os personagens são figuras anônimas, representadas por não atores.

Natureza viva

Em termos visuais, Il buco tira o máximo proveito da fantástica topografia da região e, sobretudo, da iluminação proporcionada pelas lanternas de capacete dos espeleólogos. A cada movimento de cabeça destes últimos o interior da caverna se reconstrói, por assim dizer. É um mundo em perpétuo movimento, um organismo vivo, pulsante.

Nessas profundezas imemoriais, esculpidas ao longo dos milênios pelo trabalho conjunto da água, do ar e dos deslocamentos tectônicos, causa uma ligeira vertigem ver uma capa de revista de variedades estampando os rostos de Kennedy e Nixon, concorrentes na eleição norte-americana do ano anterior. A explicação é prosaica: os espeleólogos queimavam páginas de revistas para lançar no buraco e sondar sua profundidade. Mas a invasão abrupta do momento histórico no tempo geológico tem um efeito poderoso, ao mesmo tempo irônico e dramático.

Na conjugação das três dimensões – a humana, a animal e a mineral – Il buco encontra a sua poética. “Aprendi com meu filho de dez anos/ que a poesia é a descoberta/ das coisas que eu nunca vi”, escreveu Oswald de Andrade. É esse, sem tirar nem pôr, o espírito do filme de Michelangelo Frammartino.

Um complemento luxuoso a Il buco poderia ser A caverna dos sonhos esquecidos (2010), o excepcional documentário de Werner Herzog sobre as cavernas de Chauvet, no sul da França, onde estão as pinturas rupestres mais antigas que se conhecem. Herzog descobre ali uma intenção de imagem em movimento que configura quase um proto-cinema. A imaginação humana atravessa os milênios e volta para o mesmo lugar.

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