Relógio

“Relembro fantasia infantil de girar muitas vezes o ponteiro em sentido anti-horário, para apanhar em vida os que estão mortos”. Crônica de Priscila Figueiredo

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“Relembro a fantasia infantil de girar muitas vezes o ponteiro em sentido anti-horário, para apanhar em vida os que estão mortos”

Crônica de Priscila Figueiredo

Mais uma vez o meu relógio parou. E este achei que prestava, que não me deixaria na mão. É, verdade, comprado num brechó, mas de marca importante, não era uma réplica, e a vendedora me disse que dava dois dias para eu por a bateria e ver se funcionava para só então pagar. Mas esta já é a segunda vez que levo para consertá-lo, e o relojoeiro chinês me diz que a bateria costuma durar mais de um ano. Lembro-lhe que esta última deve ter durado três meses, que na verdade colocarei agora o que seria a terceira.

Sua cabine de trabalho é no cantinho de uma ótica modesta ali na Alameda Barros, onde também posso comprar lentes descartáveis por um preço menor que em outros lugares. Adquiro coisas importantes aí com uma quantia pequena, e, na verdade, se faço um discreto discurso de consumidor insatisfeito, sei que esta minha ida vai compensar. Mas talvez seja o relógio que, ao contrário do que eu pensava, não compensa, e começo a me sentir em terreno movediço, ou como se pudesse, sem aviso prévio, perder o chão ou o pé de uma hora pra outra, pondo em risco todo o meu plano de recuperar a disciplina e organização do tempo, este selvagem que subestimei tanto. Quando cheguei no jardim, vi as árvores peladas, sem os frutos firmes, e meus pés se moviam inseguros sobre a massa do que tinha sido.

Gosto de ver o relojoeiro levantar com a pinça a tampa do mostrador e então penetrar naquela casinha da máquina munido de seus óculos com lupa. É um pequeno labirinto, uma cidade, imagino, mas ele sabe se guiar ali. Seria bom descer nesses bastidores do tempo e da ordem, e então me ocorre a imagem, não sei se de sonho ou algum desenho animado, de Alice entrando no país das maravilhas pelas costas da televisão. Mas então devia ter me parecido um caminho sem volta, e minha forte noção de dever filial simplesmente nem me permitia colocar essa fuga como propósito.

A casa das máquinas –eu tinha o projeto de visitá-la no prédio em que morei quando criança. Mas, apesar de ser amiga das filhas do zelador, nunca expressei a este o meu desejo. Nem mesmo procurei saber se a porta ficava trancada ou tinha fechadura. Talvez eu nem tivesse visto a porta, para a qual levava apenas um lance de escada sempre sujo e mais estreito que o do prédio, pois ali o elevador não chegava. Esses últimos andares aonde o elevador não chega sempre falaram a minha imaginação muito mais do que a vida após a morte, que nunca me interessou realmente. Mas se faço essa comparação é porque de fato, vejo agora, para mim esses andares sobressalentes devessem ser a própria metafísica, que se dispunha no entanto em graus. E mesmo que eu conhecesse um deles, o apartamento do porteiro e suas filhas, o mistério não era com isso dissipado. Pois, como uma torre de marfim, havia ali algo de exílio, não apenas no espaço como no tempo –e não só o vazio de elevador ali, mas a falta de um comando correspondente ao seu andar me causavam essa impressão. Ou talvez porque, visto de fora e de frente, o prédio tinha sete andares, e não nove. Os dois a mais não possuíam uma aparência, não se mostravam ao mundo por nenhum índice (como no placar dentro do ascensor), e no entanto sabíamos que existiam. O curioso é que essa “inaparência” não deixava de se imprimir nos gestos do zelador, mas sobretudo de sua família, ali sem função e por causa disso intimidada no uso do prédio, de tal forma que parecia escapar ao menor titubeio e ante a impossibilidade de ser realmente invisível.

O fato é que, no que diz respeito à casa das máquinas, talvez por medo de que houvesse algum alçapão –não tinha a menor ideia de como era seu interior – ou, o que é quase o mesmo, de cair num túnel sem fim e não voltar a ver meus pais, tinha se inibido em mim o ímpeto exploratório e deixava apenas que a fantasia agisse em torno dela. Na verdade ela era para mim antes a “máquina-matriz das casas”, e, apesar do meu receio de desaparecer ou cair noutra dimensão caso eu viesse a entrar ali, sentia também que se tratava de uma espécie de protetorado, um antes de tudo, do qual eu podia me valer se corresse algum risco.

Impossível agora sustentar a fantasia infantil de voltar no tempo e de que, girando muitas vezes o ponteiro em sentido anti-horário, eu conseguiria apanhar em vida os que agora estão mortos. Mas, vendo o chinês tão à vontade com o mecanismo do relógio, lembro com tristeza dessa fantasia e não deixo de sentir que ele entrou nos domínios de um antigo bosque sagrado, onde o mago Merlin deve estar dormindo e se recupera da enorme fadiga que as últimas estripulias com o tempo lhe valeram.

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3 comentários para "Relógio"

  1. Luiz Roncari disse:

    Priscila, cara, essa sua ânsia de invadir e mexer nas casas das máquinas, do relógio e do elevador, além de sacrílega é dessacralizadora. Ela faz parte do seu esforço de crítica de por fim aos mistérios do mundo, de saber o que o move, por um lado. Por outro, como compensação que trai a sua fantasia literária, quer rodar os ponteiros ao contrário para realizar o milagre, reviver os mortos. Taí, é um paradoxo ambulante, que tive muita satisfação em ler e conhecer.

  2. Luiz disse:

    Depois de ler esse texto, ouça Time por Pink Floyd

  3. Ao chegar em casa, sexta-feira ensolarada, encontro esse texto bonito, quase intangível, tal qual poesia. Obrigado!

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