Martírio: um filme que o Brasil precisa ver

Movimento “Vídeo nas Aldeias” busca financiamento coletivo para produzir obra sobre luta por sobrevivência dos povos Guarani e Kaiowa

Por Felipe Milanez, na Carta Capital

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Movimento “Vídeo nas Aldeias” busca financiamento coletivo para produzir obra sobre a luta por sobrevivência dos povos Guarani e Kaiowa

Por Felipe Milanez, na Carta Capital

A história dos povos indígenas guarani e kaiowa no Mato Grosso do Sul tem ganhado áreas dramáticos nos últimos anos, apesar de ser um longo sofrimento o contato desses povos com a sociedade nacional, especialmente as frente do agribusiness que se instalaram lá a partir do final dos anos 1970 e 1980. Com a chegada da monocultura da soja e da cana, sobrepostas à pecuária, a convivências dos índios com os fazendeiros se tornou um filme de terror. Lideranças são assassinadas anualmente, de forma sistemática. E o último caso que provocou revoltas nas redes sociais foi a invasão dos fazendeiros à sede da FUNAI, quando uma senhora grita: “Morram todos”. Para essa ameaça, os índios já deram resposta em carta que provocou comoção ano passado: “Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação/extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos”

Há um processo de genocídio em curso no Brasil. Em nenhum lugar do mundo tantos indígenas são assassinados, por conflito ecológico por acesso a terras e recursos, como no Mato Grosso do Sul. A luta pela sobrevivência se tornou um martírio. “Martírio” é, também, o título de um filme que o projeto Vídeos nas Aldeias, dirigido pelo indigenista Vincent Carelli, lançou recentemente para um projeto de financiamento coletivo.

O projeto se insere nesse seguinte contexto:

Os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul vivem um cotidiano de guerra civil. São o lado frágil de um conflito que vem se arrastando por décadas, e que tem no início do processo de construção da política indigenista brasileira sua origem. Nos últimos dez anos, as degradantes condições de vida e o confronto entre índios e grandes proprietários de terra se acentuaram de tal forma que a taxa de assassinatos de Kaiowás, somente na reserva indígena de Dourados, ultrapassa a de países em guerra e é 495% maior que a média brasileira. Associado a essa paisagem de violência, está o massacrante lobby ruralista, em defesa da manutenção dos grandes latifúndios, incorporado pela mídia e promovido por seus representantes no Congresso Nacional e por autoridades do governo. Tentando minar os direitos garantidos aos índios pela Constituição Federal, disseminam um discurso racista, anti-indígena, e fazem deste um embate de forças cada vez mais desiguais.

Carelli dirigiu o premiado Corumbiara, que pode ser assistido no youtube. Corumbiara é um filme realizado ao longo de mais de duas décadas, onde o Carelli acompanhou o trabalho de Marcelo dos Santos e sertanistas da Funai para investigar o genocídio de três povos indígenas em Rondônia, os Akuntsu, os Kanoe e o mistério do “índio do buraco”, último sobrevivente de seu povo. Ele filmou as evidências do genocídio, as expedições para encontrar os índios, o primeiro contato com esses povos, e depois ainda quem teria cometido o crime, que continua impune.

Trata-se de um soco no estômago que deveria ser amplamente visto no Brasil. Um filme extraordinário. Pessoalmente, para mim, foi um trabalho muito influente. Não apenas pela qualidade do filme, mas em razão de todo processo de sua realização, a importância de acompanhar uma história ao longo de mutos anos, sem nunca esquecer os dramas vividos para poder contar. Conheci Carelli antes dele terminar o filme, quando estive em Rondônia em uma expedição nessa região, enquanto eu trabalhava na Funai. A dedicação do diretor, que é também indigenista, em se entregar inteiramente para poder mostrar essa história para o Brasil é um ato admirável, e que merece servir de estímulo para quem está começando, estímulo a se engajar em contar ao Brasil sobre que o Brasil que os brasileiros insistem em não querer saber, em não querer encarar a dura realidade para transformá-la.

Martírio será um filme que segue essa perspectiva de Carelli, que destoa-se um pouco dos filmes sobre o caráter mais cultural (e político), da produção do Vídeo nas Aldeias. Segue a perspectiva pois é um filme que incomoda Carelli, perturba. Um filme que há necessidade de ser realizado.

Tonico Benites, o consultor do filme, é um grande intelectual kaiowa, antropólogo doutorando em Antropologia pelo prestigioso Museu Nacional (UFRJ) e professor da UFGD. Uma vez fiz uma entrevista com ele, durante reunião da Aty Guasu, após o assassinato do líder Nísio Gomes, ocorrido exatos dois anos atrás, em novembro de 2011, onde Tonico dizia que “o que vai resolver o conflito no Mato Grosso do Sul, é o diálogo“. O problema, o desafio, é convencer o governo, federal e estadual, da necessidade de atenção para os conflitos na região, e convencer alguns brutos fazendeiros a aprenderem a dialogar sem armas ou sem capangas.

Segundo os organizadores, a razão para o financiamento independente é “a tomada de posição e colaboração da sociedade civil como atos de resistência”. O Valor a ser captado será de R$80 mil, equivalente a metade do orçamento, pois o Vídeo nas Aldeias já adiantou R$ 90 mil para captação de imagens.

Já não é sem tempo de a sociedade civil no Brasil financiar a produção de sua memória. Não será uma lei de incentivos, com patrocínio de grandes empresas do agronegócio, que irão fazer isso. Também não cabe delegar a outros países pedidos de doações. Martírio é um filme que merece ser custeado por quem quer registrar a resistência indígena ao genocídio em curso. Para que se chegue ao fim desse processo violento.

Conversei com Vincent Carelli sobre o projeto. A entrevista segue abaixo. E doei 50 reais para que Martírio seja realizado.

Por que um financiamento coletivo para realizar um filme sobre os guarani e kaiowa?

Essa é minha primeira experiência na área do crowdfunding, foi a nossa única saída. Depois do desmonte da política revolucionária do Gil e Juca no Ministério da Cultura ficamos com o varejo dos editais de companhias, que certamente não vão financiar um filme como esse. Começamos por conta, mas já gastamos muito e acabaram-se nossos recursos e ainda tem muito trabalho pela frente. E não é só o filme “Martírio” , a proposta é equipar os acampamentos em situação de risco e permanente ameaça, para que eles possam revelar para o Brasil o que eles estão passando. Agora tem outro aspecto muito interessante, foi a sociedade civil que levou o governo a uma tentativa de negociação com os ruralistas. A grande corrente que se formou nas redes sociais em torno da causa Guarani Kaiowa, e de tantas outras pelo Brasil afora, Belo Monte, Terena, Munduruku, Tupinambá, é uma coisa inédita. E o crawdfunding é justamente isso, estar informando essa rede do que acontece no Brasil profundo, fazer com que ela participe, porque não podemos mais contar com a grande mídia que defende a ideologia das elites e é profundamente anti-indígena.

Após dirigir o premiado Corumbiara, sobre o genocídio em Rondônia, agora volta ao tema da violência contra os povos indígenas em Martírio. Qual a conexão entre essas histórias?

O que está acontecendo no Mato Grosso do Sul também é um genocídio, mas desta vez não é com um grupo isolado, a população Guarani Kaiowá é de mais de 50 mil, estamos assistindo ao enfrentamento da classe mais reacionária do pais com a população indígena mais resistente, numa luta profundamente desigual. Estou trabalho como voluntário na Comissão Nacional da Verdade, porque é fundamental o estado brasileiro reconhecer a sua responsabilidade neste caso, pois foi a política indigenista equivocada do governo no período que a comissão está investigando que gerou esta situação.

Por que filmes sobre a violência contra os índios, em meio a tantos filmes realizado em conjunto com os indígenas com uma perspectiva mais sobre as suas culturas?

Quando comecei o Vídeo nas Aldeias, foram os índios que me apontaram esse caminho, do uso do audiovisual para valorizar suas culturas. O fascínio deles pela possibilidade da apropriação da imagem foi para mostrar as coisas belas de suas culturas, tanto para as novas gerações indígenas, como para o mundo que os ignora. Eram histórias de retomada cultural, reconquista da autoestima, do orgulho de ser. Fiz muitos filmes, e hoje eles mesmo fazem muitos filmes também, sobre histórias para cima, para irradiar ânimo, esperança para outros povos abatidos pela opressão da sociedade envolvente. Uma vez fui aos Makuxi convidar uns jovens para fazerem uma oficina de vídeo e eles me responderam que não podiam naquele momento porque estavam na luta pela reserva de Raposo Serra do Sol, mas queriam muito que eu fizesse um filme sobre essa luta. Aceitei imediatamente o desafio e fiz “Ou vai ou racha, 20 anos de luta” que ajudou na campanha pela demarcação desta área. Corumbiara foi a aventura mais emocionante e desafiadora, e no final a mais triste da minha vida. O processo de filmagem ajudou muito para mobilizar a justiça federal para protegê-los. Como não conseguimos incriminar os culpados, abandonei o filme. Passaram-se muitos anos e você fica com aquela coisa dentro de vc. Um dia criei coragem e disse, Vincent você não pode levar essa história contigo, é preciso contar essa história. As novas gerações saberão o significado da palavra genocídio. Agora com essa tragédia com os Guarani Kaiowa, é preciso fazer algo, e o cinema é uma ferramenta poderosa, aprendi isso com Corumbiara. Não é por gosto que tenho tratado do tema da violência contra os índios, é por imposição dos acontecimentos.

E por que os guaranis e os kaiowa? O que moveu a fazer Martirio?

Sempre tive fascínio pelos Guarani. Quinhentos anos de contato e eles ai, falando sua língua, praticando seu religião, fiéis a sua filosofia de não violência, resistindo, apesar das agressões sofridas ao longo dos séculos de colonização, de um processo contínuo de expropriação e exclusão. Conheci povos na Amazônia que perderam a sua língua em menos de trinta anos! Quem me levou ao Mato Grosso do Sul em 1988, quando ainda estava engatinhando com o Vídeo nas Aldeias, foi o Celso Aoki que trabalhava com eles em roças comunitárias. E nessa época o bicho já estava pegando por lá. Naquele momento os rezadores estavam tomando a frente da resistência, já que os cacique tinham se tornado “gatos” (contratadores de mão de obra) das grandes usinas de cana de açúcar do estado de São Paulo. Ganhavam comissão por cabeça de índio que eles mandavam para este trabalho escravo, não defendiam o clamor das comunidades para reaver suas terras. Então na época filmei as grandes rezas, juntavam muitas comunidades num grande páteo e cada rezador colocava seu altar, eram rezas polifônicas. No dia seguinte discussões políticas sobre sua situação. Daí nasceu a organização política da Assembléia Geral Guarani Kaiowa, a ATY GUASU que hoje conduz a resistência e as negociações, desde que elas sejam sinceras. Os Guarani Kaiowa lutam numa perspectiva pacifista, budista mesmo. O enfrentamento nunca é para matar o inimigo, mas amolecer seu coração, fazê-lo entender, cooptá-lo como amigo, aliado, seduzi-lo com a inspiração de Deus. É a religião que sustenta esse povo.

Há muito material produzido sobre os guaranis, literatura, filmes, teses. O que Martírio traz de novo? E por que agora?

Quando assisto nos noticiários de TV “Os índios invadem não sei o que…” fico revoltado de ver um jornalismo irresponsável e criminoso como esse. Será que esse país não tem memória caramba! Será que jornalista não tem que estudar o assunto para fazer matéria? A questão é justamente essa, restabelecer a memória que esse país omite. Em cada pedaço de chão que os índios estão retomando, correu sangue, porque foram despejados dali com violência e eles passaram décadas tentando retornar ao preço de muitos assassinatos. Tenho matérias de TV das décadas de 80 e 90 com reportagens sobre despejos. Tenho filmagens desta época com grandes cerimoniais que hoje não acontecem mais por falta total de condições. É muito interessante traduzir os cantos Guarani Kaiowa, falam da paz, da luz resplandecente, da belezas das flores e da harmonia com a natureza, é uma poética religiosa, é preciso trazer tudo isso à tona.

Acho que é preciso mostrar os dois lados da coisa. De um lado temos o cínico teatro do lobby ruralista no congresso nacional, sustentada pela grande mídia, e do outro a dura realidade dos índios. Colocar estas duas realidades justapostas é chocante, bem editado nem precisa dizer muito. Filmamos a feira do agronegócio em Dourados, um rodeio, e ainda vou filmar a colheita de soja. Enquanto isso tenho filmado as retomadas. São ameaças diárias, um clima de terror permanente, muitas mulheres e crianças, para não falar da fome. Quero trabalhar este contraste de riqueza e miséria, poder e exclusão. Botar a situação neste contexto nacional.

Porque agora? Porque desde novembro de 2011, quando seis homens encapuçados mataram o cacique Nísio no acampamento Guaviry na frente de toda a aldeia, filhos , mulher, parentes, e ainda sumiram com o corpo, que isso não me sai mais da cabeça. E depois disso veio uma enxurrada de assassinatos e isso não para nunca. É desesperador. Que cada um contribua nas suas áreas de competência, mas temos que agir. Temos que dar um basta nisso!

Qual vai ser a participação dos índios nesse filme?

Meu trabalho sempre foi com os índios e para s índios, e esta iniciativa é mais uma parceria com os índios . A ATY GUASU está à frente do movimento, os aliados ajudam no que podem. Este trabalho vem se somar a outras iniciativas de apoio aos índios, do Ministério Público, da Universidade Federal da Grande Dourados UFGD, da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG. Uma das coisas belas que está acontecendo, é a criação de uma Faculdade Guarani na UFGD. Queremos levar todo o material histórico que filmamos no passado para um centro de documentação desta Faculdade, para que os jovens Guarani Kaiowa possam pesquisar, ver imagens do passado. É preciso que os jovens enxerguem que há um futuro para eles, e estancar esta taxa monstruosa de suicídio de adolescentes! Na semana passada o próprio Lula advertiu a Dilma: é preciso resolver a questão indígena na paz porque na guerra vai ser muito caro!

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