MST: além dos trinta anos de luta

Análise da Comunicação produzida pelo movimento revela capricho ao disputar corações e mentes, construir identidades, produzir autonomia e multiplicar afetos

 

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Por Katia Marko | Imagem: João Roberto Ripper

 

No momento em que o MST completa 30 anos e realiza o seu VI Congresso Nacional, enfrentamos uma forte disputa de “visões de mundo” no Brasil. Parece ainda mais importante resgatar questões como o papel fundamental da comunicação produzida pelos movimentos sociais.

A história do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (JTST) confunde-se com a própria trajetória do movimento. O Movimento Sem Terra investiu em seu próprio veículo de comunicação mesmo antes de se tornar um movimento nacional em janeiro de 1984. Ele iniciou como um boletim mimeografado em maio de 1981 com o objetivo de divulgar as notícias da ocupação de Encruzilhada Natalino no Rio Grande do Sul. Já em 1982, após um encontro realizado em Medianeira (PR), o boletim passou a ser o órgão oficial de divulgação de cinco estados (RS, SC, PR, SP e MS), quando começou a nascer o Movimento Sem Terra da Região Sul.

De Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra, realizado por entidades de apoio, ele se transforma no Boletim Sem Terra, o Informativo dos Trabalhadores Rurais Sem Terra da Regional Sul, tendo estes agora a responsa­bilidade direta sobre sua edição. A sua impressão começou a ser feita em off-set, com a publicação de fotos e um projeto gráfico. Após o I Encontro Nacional do MST, em Cascavel (PR), no mês de janeiro de 1984, com a participação de doze estados, o movimento ganha dimensão nacional, assim como o seu veículo de comunicação.

Com o crescimento e a institucionalização do MST o Boletim Sem Terra virou Jornal (nº 36) – julho de l984 -, mas sua edição ainda permaneceu sob a responsabilidade da Regional Sul, sediada em Porto Alegre. Ele passou a ser denominado Jornal dos Trabalhadores Sem Terra. Em 85 o Jornal começou a ser feito em São Paulo, junto à Secretaria Nacional do MST que se instalou neste estado, onde está até hoje.

Este breve histórico demonstra a preocupação deste movimento de agricultores em repassar as informações relativas à sua organicidade. Mas a sua comunicação não se restringe ao Jornal. O movimento também publica uma revista, livros, produz cartilhas educativas, cartazes, programas de rádio e boletins estaduais. Também tem um site e atualmente está no Facebook.

Conforme um dos maiores estudiosos e teóricos da linguagem, o francês Roland Barthes, existem duas espécies de linguagem: uma mítica, utilizada para encobrir a realidade e constituir sujeitos a partir de uma falsa consciência. A outra linguagem, a denotativa, é necessariamente desveladora, desmitificadora, analítica e política. Busca construir uma visão articulada de mundo, expondo as conexões de causa e efeito, desmitificando o discurso da dominação.

Trata-se, aqui, da luta entre discursos. Um discurso de dominação — o hegemônico — em confronto com e confrontado por discursos que se lhe opõem, que buscam construir uma nova hegemonia. O jornal de um movimento popular precisa cumprir este papel de desmitificar a ideologia hegemônica e apontar formas diferentes de se colocar perante o mundo, pois, de outra forma, não estará contribuindo para a mudança de paradigmas da sociedade.

Juan Diaz Bordenave, por sua vez, considera a comunicação um processo de interação humana que se realiza mediante signos organizados em mensagens. Para ele, a função mais básica da comunicação talvez seja a menos frequentemente mencionada: a de ser o elemento formador da personalidade. Sem a comunicação, de fato, o homem não pode existir como pessoa humana.

O filósofo norte-americano George Herbert Mead já afirmava que a mente e a personalidade emergem na experiência social por meio da comunicação. Segundo Mead, “por meio da linguagem, o indi­víduo torna-se um objeto para si mesmo, no mesmo sentido em que os outros são objetos para ele, e, desta maneira, suas experiências sociais não são só privadas e psíquicas”. O indivíduo humano é uma pessoa somente porque pode tomar a atitude de outro para com ele. Para Mead, a sociedade existe na comunicação e por meio da comunicação, porque é através do uso de símbolos signi­ficativos que nos apropriamos das atitudes de outros, assim como eles, por sua vez, se apropriam de nossas atitudes.

Isto quer dizer que a personalidade é um produto social, gerado graças à interação com as demais pessoas. Em outras palavras, a comunicação tem uma função de identidade. Em síntese, a comunicação constrói a pessoa. Toda família, organização ou so­­ciedade que reprima o diálogo e desconfirme os homens pela indi­ferença radical, está conspirando contra a formação das persona­lidades.

Outra função essencial da comunicação, destacada por Bordenave, que segundo ele também é esquecida com frequência, é a função expressiva. As pessoas não só desejam e precisam receber comunicação, participar da comunicação, mas ainda mais basicamente desejam expressar suas emoções, idéias, temores e expectativas. A pessoa quer sair do seu mundo interior, do fechamento em si mesmo, e exteriorizá-lo quer por meio de simples conversação, expressão corporal, poesia, quer pelo canto e\ou dança, pelo ritual e pela liturgia, ou ainda pelo próprio silêncio partilhado.

Uma necessidade também básica do homem é vincular-se a um grupo mediante relações afetivas. Daí ser o relacionamento outra função fundamental da comunicação. A comunicação possui uma função informativa ou de conhecimento do mundo objetivo. Alguém poderia dizer que isto não é comunicação, mas apenas informação. Porém, se calcularmos quanto de informação do mundo chegou a nós através de outras pessoas ou de seus produtos (livros, história, imprensa, fotografias, etc.) veremos que a função informativa é uma função da comunicação.

Bordenave apresenta ainda outras funções que classifica de menos básicas que as mencionadas: vigilância e educação, articulação política de interesses e tomada de decisões, atribuição ou legitimação de status, imposição e manutenção de normas sociais, facilitação da troca de bens e serviços na atividade econômica, di­vertimento ou função lúdica e participação ou acesso ao diálogo e à cooperação.

Já Robert Merton distingue as funções deliberadas ou manifestas daquelas funções não intencionais ou latentes. Ele chama de disfunções às consequências indesejáveis e, neste sentido, todas as ações de comunicação podem ter efeitos funcionais e disfun­cionais. As funções de informação e de divertimento, por exemplo, podem ter consequências disfuncionais de “narcotização”, contri­buindo para a legitimação de regimes políticos opressores.

A função de vigilância dos eventos pode levar a uma função chamada pelos norte-americanos de “agenda setting” que consiste nos meios de comunicação determinarem a agenda da discussão pública, ao selecionar assuntos de maneira tendenciosa, favorável aos inte­resses das classes dominantes e dos próprios meios.

A percepção da comunicação como sistema permite compreender a relação deste processo com o jogo de poder na sociedade. Permite ainda desmitificar os meios de comunicação, que, numa visão mais ampla, revelam ser apenas instrumentos dos sistemas de que fazem parte.

A comunicação é, pois, um processo natural, uma tecnologia, um sistema e uma ciência social. Ela pode ser um instrumento de legitimação de estruturas sociais e de governos como também a força que os contesta e os transforma. Ela pode ser veículo de auto-ex­pressão e de relacionamento entre as pessoas, mas também pode ser sutil recurso de opressão psicológica e moral. Através da comuni­cação a humanidade luta, sonha, cria beleza, chora e ama.

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