Green New Deal, inesperada invenção política

Será possível relançar luta contra o aquecimento global, combinando-a com vasto investimento em infraestrutura limpa e geração de empregos? Socialismo e ambientalismo se reencontrarão? Dois livros buscam resposta

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Por Zoe Williams | Tradução de Simone Paz Hernández

Como todo neologismo político, o “Green New Deal” (algo como Novo Pacto Verde) tornou-se obrigatório que já tem múltiplas variações, discípulos apaixonados, críticos (alguns moderados, outros ferozes) e milhares de palpites e sugestões antes que alguém pudesse dizer “em definitivo” o que significa.

O motivo era claro: após décadas da resposta clássica do mercado à crise climática, o movimento ambientalista estava mais ou menos unido em sua convicção de que seriam necessárias mudanças mais profundas do que suscitar preocupações e acreditar na definição de metas pelos governos. Havia um precedente histórico: o New Deal de Franklin Roosevelt, dos anos 30, com o qual os Estados Unicos conseguiram sair da Grande Depressão

Mas será que esta “versão verde” corresponderia, basicamente, à oferta que Jeremy Corbyn fez para a liderança do Partido Trabalhista em 2015? Equivaleria a criar um banco nacional de investimentos, somado a um milhão de empregos no setor da energia limpa, para qualificar a população e ao mesmo tempo reduzir a zero as emissões líquidas de CO². Ou seria a visão de Alexandria Ocasio de justiça ambiental articulada com justiça social — em que a iniciativa privada será supostamente varrida com a fúria de um estado radical? Será que é keynesianismo — só que, em vez de cavar buracos e contratar mão de obra para preenchê-los, colocaríamos árvores neles? Ou é um plano tão verdadeiramente pós-capitalista que nenhum dos termos antigos dá conta

Dois livros a respeito, recentemente lançados por Ann Pettifor e Naomi Klein, possuem títulos parecidos e são semelhantes, também, em relação à sua urgência. Pettifor nos brinda um relato conciso e técnico, porém, compreensível, da estrutura do pensamento que expôs há mais de uma década, em conjunto com um conjunto de economistas e ambientalistas — entre eles, Richard Murphy (o principal estrategista do programa de 2015 de Corbyn), Larry Elliott (o editor de Economia do The Guardian) e Jeremy Leggett (empresário do ramo de energia solar).

Foi concebido logo após o colapso financeiro global, e tinha dois objetivos óbvios: apresentar uma perspectiva internacionalista, já que, após 2008, os economistas estavam mais conscientes do que nunca da irrelevância das fronteiras; e colocar os holofotes diretamente sobre os sistemas, não nos agentes individuais.

Pettifor é bem direta: vivemos uma crise climática e pode ser tarde demais para evitá-la, mas render-se seria niilismo. Embora ela dê umas alfinetadas indiretas naqueles que negam a mudança climática, seu verdadeiro inimigo é o derrotismo. E ela é muito convincente nisso: seja ou não possível salvar o planeta, não temos outra alternativa senão tentar. Num contexto desses, o dinheiro nem entra em questão, e nem se trata de “o meio-ambiente não ter preço”. Tem mais a ver com o grito de guerra dos economistas heterodoxos, que ecoam Keynes e Roosevelt, através do premiado político norte-americano Demond Drummer, que diz: “podemos pagar aquilo que podemos fazer”.

O dinheiro não é um recurso natural não-renovável, gerado pelas montanhas ou pelos mares: é uma construção social baseada na confiança e na cooperação, criada através do crédito, que é apoiado pelo trabalho dos cidadãos de hoje e pelos cidadãos do futuro — ideia que a autora trabalha em seu mais recente livro, The Production of Money [“A produção do dinheiro”].

Entre os exemplos da infinitude do dinheiro, quando um governo realmente se preocupa com isso, Pettifor aponta para Roosevelt (que realizou um fascinante experimento de ambição social, com seu próprio elemento ambiental: nos nove anos do New Deal, 5% da população masculina total estava envolvida no Corpo de Conservação Civil, plantando, entre outras coisas, 2 bilhões de árvores).

Ela também cita o Plano Marshall, o pouso do homem na Lua — e todos esses exemplos clássicos do tipo que trazem esperança — porém, com um foco específico na questão da catástrofe climática. Se pudemos, como espécie, reunir todo esse esforço, iconoclastia e obstinação apenas para chegar na Lua, imagine do que somos capazes quando a vida de nossos filhos está em jogo.

Porém, nada será possível enquanto o sistema não mudar: o problema não é só “que as empresas privadas vêm há anos desbancando os governos comercializando água, transporte, educação, moradia, serviços ambientais e saúde”, é que assim elas roubam o poder e a atuação dos políticos eleitos, e fazem com que o eleitorado clame por políticos com maior força (daí a inexorável ascensão dos líderes autoritários).

Não se trata somente de que os governos sejam cada vez mais impotentes diante do “capitalismo financeiro dolarizado e deslocado para o exterior”; impotentes diante das finanças especulativas que exigem altos retornos com pouco esforço e que, portanto, são extrativistas por essência. O bloqueio a qualquer avanço é a soma de todas essas coisas, sustentado por algo mais fundamental ainda: como disse George Lakoff em certa ocasião, não podemos colocar a questão do lucro numa análise de “custo-benefício” contra a natureza.

Pettifor consegue realizar uma abordagem sofisticada, radical e complexa, que explica com enorme entusiasmo os efeitos potencialmente transformadores de um imposto global sobre transações, controles de capital, gerenciamento de taxas de juros por autoridades públicas ou uma alternativa ao padrão dólar. Ela consegue convencer o leitor, só de encostar o olho numa página, a esquecer do crescimento como objetivo, para, no lugar, adotar a ideia de uma economia de “Linha Plimsoll” (a Linha Plimsoll é uma marcação pintada no casco dos navios mercantes, que indica o limite de peso que o navio pode carregar em segurança, sem afetar a navegação). O livro tem como finalidade ser muito mais do que um manifesto pelo clima, ao mostrar quais elementos — da forma em que eles existem no mundo — são incompatíveis com mudanças mais profundas, e quão administrável (embora não necessariamente fácil) é derrubá-los. Citando o abolicionista norte-americano, Frederick Douglass, Pettifor aponta: “O poder não dá nada sem pedir algo em troca”

O livro de Naomi Klein, On Fire, uma coleção de seus ensaios sobre o meio-ambiente escritos ao longo de toda a década passada, segue os mesmos princípios. Há diferenças de ênfase entre o Green New Deal inglês e o estadunidense — o britânico possui uma orientação mais internacional, enquanto que a versão americana procura o modelo de transformação de Roosevelt, por meio da justiça social e do exercício da democracia, que, por definição, é limitada por fronteiras.

Entretanto, as prescrições de ambas são fundamentalmente as mesmas, e a profundidade e singularidade do trabalho de Klein está nos seres humanos que ela traz à cena: filósofos, vítimas de alagamentos, estudantes, conservacionistas. Ela possui um estilo único de reportagem que ganhou em tantas décadas de ativismo: todas as vozes ganham a mesma dignidade e importância. Essa pluralidade por si só já apresenta um vasto horizonte de possibilidades, um sentido de energia criativa infinita, com todas as opções envolvidas na mesma causa. Nenhum de nós está sozinho, e também não precisamos deixar todo o peso sobre as costas da Greta Thunberg. De certa forma, isso ameniza e adoça o que de outra forma seria uma pílula amarga, num mundo que conhece o perigo, mas não consegue responder. Das inundações da ponte Hebden aos incêndios da Austrália, do derramamento de óleo no Golfo do México às minas de cobalto na República Democrática do Congo, quanto mais você olha, mais existem motivos para se desesperar.

Klein não encontra esperança em grandes afirmações motivacionais, mas nos detalhes: por isso, cita o geofísico Brad Werner, que palestrando para uma audiência a partir de seu computador, concluiu que “o capitalismo global tornou o esgotamento dos recursos tão rápido, fácil e conveniente, que os ecossistemas estariam se tornando perigosamente instáveis em resposta”.

Quando pressionado por um jornalista a responder com clareza à pergunta “estamos fodidos?”, Werner deixou os jargões de lado e respondeu: “mais ou menos”. Todavia, espere: existe uma fonte de atrito que pode desacelerar e até atrapalhar a máquina — são os movimentos de resistência em massa. A ação direta de ambientalistas; ou, digamos, o ataque de centenas de milhares de estudantes escolares; a resistência não é apenas pertinente à dinâmica, é uma poderosa força de contrapeso.

Este não é um livro sobre heróis: Klein tem um ouvido e um olhar igualmente perspicazes para os negacionistas, derrotistas, obstaculistas e defensores do status-quo. Ela cria retratos vívidos e aterrorizantes da indústria de combustíveis fósseis que segue a todo vapor; do Partido Republicano completamente subserviente a ela (isso parece novo e Trumpiano, mas não é: Newt Gingrich revelou o slogan “Perfure Aqui, Perfure Agora, Pague Menos” em 2008); e das vítimas desse descaso corporativo e dos catastróficos acontecimentos climáticos.

Klein consegue afundar nossos espíritos com uma analogia: ela traça um paralelo entre o perigo de extinção por causa da “incompatibilidade” — o processo pelo qual “o aquecimento faz com que os animais desapareçam junto com uma fonte crítica de alimentos” — e nossa própria incompatibilidade cultural, onde a maior ação coletiva é exigida de nós, que estamos no nosso estado social mais reduzido. Porém, ela consegue nos trazer de volta à superfície com metáforas, parábolas, o avistamento de uma baleia ou a sensação do vento na cara.

Pettifor trabalha com esmero na descrição dos mecanismos pelos quais o capitalismo e as corporações geraram a crise climática e, mais recentemente, a devastação da política democrática. Klein é mais ousada, rasgando essas ideias — da relação entre “crise climática, concentração de riqueza e violência racial” e da “violência dos outros num mundo em aquecimento” — para chegar numa questão mais urgente e mais produtiva: os locais de resistência e como cada grão pode se transformar em areia suficiente para parar a máquina. Esses Green New Deala encaixam-se tão bem quanto os trabalhos complementares que parecem projetados para serem lidos juntos. Ou será que simplesmente estamos falando de uma ideia cuja hora ideal chegou — nem tão cedo, nem tarde demais?

The Case for the Green New Deal (“O caso do Green New Deal”, em livre tradução) é publicado pela editora Verso; On Fire: The Burning Case for a Green New Deal (“Em chamas: O argumento decisivo para um Novo Acordo Verde”, em livre tradução), é publicado pela Allen Lane. Ambos ainda não possuem uma edição brasileira ou em português.

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Um comentario para "Green New Deal, inesperada invenção política"

  1. josé mário ferraz disse:

    É mais importante argumentar sobre o porquê de ser a vida um total desatino do que argumentar sobre esta realidade uma vez que a ninguém mais é dado o direito de desconhecer a realidade de ter a vida se tornado um total desatino. Uma vida saudável é o desejo de todas as pessoas sensatas. Acontece que quem dita como deve ser o mundo são pessoas insensatas, verdadeiros monstros de cuja boca escorre baba de dragão para os quais a única coisa importante é outro monstro chamado mercado onde não se compra apenas aquilo de que se necessita, mas o que os monstros ajuntadores de riqueza precisam vender a fim de satisfazer sua insaciável sede da riqueza da riqueza que produz água, ar e comida envenenados. O agribiuzinesse é um exemplo exemplar desta realidade. A troco de salário mentes prostituídas juram de pés juntos haver maravilhas na exportação de bilhões de quilos de grãos, embora junto com cada um desses quilos vão a água e a fertilidade do nosso solo que faltarão para as futuras gerações.

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